Mais do que para efeitos práticos, uma iniciativa para marcar posição. Será esse o objetivo da moção de censura ao Governo apresentada pelo Chega, cujo destino, a menos de 24 horas de ser debatida no Parlamento, já é conhecido: o chumbo, já que o PS tem a maioria dos deputados. A intenção do partido de André Ventura não seria, no entanto, à partida nenhum outro que não o que já conseguiu: obrigar os partidos concorrentes da direita a definirem-se — e, assim, sentenciar já à partida que Luís Montenegro não será mais do que um Rui Rio 2.0 aos comandos do PSD.

A intenção ficou clara olhando para as declarações do próprio André Ventura, que ainda esta terça-feira dizia estar expectante quanto à posição que o PSD, agora na era Montenegro — que promete uma oposição mais acutilante do que a do antecessor, Rui Rio — iria assumir. Poucas horas depois, e depois da primeira reunião da Comissão Permanente (o núcleo mais restrito da direção) de Montenegro, o PSD confirmava laconicamente, numa nota enviada à imprensa: “Informa-se que a bancada do PSD se irá abster na votação da moção de censura que será discutida esta quarta-feira”.

Ventura não perdeu tempo: a meio da tarde, aos microfones da RTP, já reagia com “enorme frustração e desilusão” ao anúncio do PSD. E sentenciava: “É não só uma traição ao que ele [Luís Montenegro] disse no congresso, como mostra que provavelmente vamos ter uma versão 2 de Rui Rio”.

Ventura alimentava, ainda, uma hipótese improvável: “Espero que nas próximas horas, não só com os contactos entre os partidos mas sobretudo com a consideração do que foi dito no congresso, e os motivos desta censura, possam levar o PSD a reconsiderar esta posição”.

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PSD aprovou moções do CDS no tempo da geringonça

O PSD não explicou, na nota que emitiu, as razões da sua decisão, que poderá ter por base o facto de o Governo ter tomado posse há apenas três meses ou de esta moção ter por fim certo o chumbo, mas uma coisa é certa: desde que António Costa é primeiro-ministro, os sociais-democratas alinharam sempre nas moções de censura, votando a favor desses documentos e contra toda a esquerda.

Com uma diferença de fundo: essas moções de censura, votadas em 2017 e em 2019, foram ambas apresentadas pelo antigo parceiro do PSD — o CDS, quando o Chega ainda não tinha assento no Parlamento. Nesses casos, o PSD não deixou de votar a favor dos documentos, apesar de também na altura ser improvável que a votação tivesse alguma consequência, uma vez que a geringonça ainda servia de base ao Governo.

O PSD poderá, por isso, não querer ser arrastado pelo Chega para uma iniciativa sua — mas também não quererá ficar nesta fotografia ao lado do Governo. E a Iniciativa Liberal, que anunciara o seu sentido de voto horas antes, decidiu no mesmo sentido: abstenção. “A IL está preocupada com as políticas, não basta mudar pessoas”, justificou o líder parlamentar, Rodrigo Saraiva, referindo-se ao facto de a moção do Chega se basear muito em críticas a ministros específicos (Marta Temido e Pedro Nuno Santos e, numa ocasião, Fernando Medina).

Por isso, mesmo considerando que “há muita coisa para criticar, sobretudo em relação à degradação generalizada das políticas públicas”, a IL acabou por concluir que a moção “é inconsequente” e não passa de “uma corrida de 100 metros, como o partido Chega nos tem habituado”. À direita, o Chega ficará, esta quarta-feira, a votar favoravelmente sozinho — mas poderá usar esse argumento para se apresentar como a oposição mais dura a António Costa.

Esquerda demarca-se da “manobra” do Chega

Da parte da esquerda, o Chega só ouviu ‘negas’ — mesmo com críticas ao Governo, seria muito improvável que os partidos quisessem associar-se a uma iniciativa do partido de Ventura. Para o PCP, e apesar de também reconhecer que há problemas urgentes no país que o Executivo não está a “querer” resolver, a iniciativa do Chega não passa de uma “manobra” que não vem mudar nada.

Questionado pelo Observador, o partido argumentava esta tarde que, embora a atual situação do país “exija soluções para resolver os problemas que afetam os trabalhadores e o povo”, a moção de censura “não propõe soluções para esses problemas”. E criticava: “O Chega utiliza os problemas reais não com o objetivo de dar resposta aos trabalhadores e às populações, mas com projetos e políticas que só contribuem para os agravar”.

Os comunistas tinham, de resto, marcado uma interpelação ao Governo sobre o aumento do custo de vida e a perda do poder de compra para esta quarta-feira, que acabou por ser adiada para quinta-feira por causa do agendamento da moção de censura.

Do lado do Bloco de Esquerda, a mesma conclusão: à saída da reunião da Mesa Nacional do partido, no domingo, Catarina Martins arrumava a questão argumentando que “as críticas que o Bloco de Esquerda faz ao Governo não se confundem em nada com as estratégias mais ou menos oportunistas do Chega”.

O Livre também se colocou de fora: numa nota enviada aos jornalistas, nesta quarta-feira, o partido informou que o seu grupo de contacto (a direção do partido) decidiu unanimemente votar contra, classificando a moção como “um ato mediático e performativo” em que nem o próprio Ventura acredita. E essa, diz o partido, é a “chaga do populismo”: “Desvalorizar o valor da palavra, dos gestos políticos e dos próprios atos parlamentares”. Mas, e apesar de reconhecer problemas na governação, também aponta o dedo à posição do resto da direita — ” Fica já claro que a direita democrática parlamentar se escusa a essa responsabilidade mantendo uma ambiguidade estratégica em relação a futuras alianças com a extrema-direita”.

Do lado do PAN, sintonia absoluta: “Não é com este tipo de jogos ou números políticos que se faz o escrutínio necessário ou que se dão as respostas de que o país precisa”, argumentou, também esta quarta-feira, a líder do partido, Inês Sousa Real, acrescentando que a maioria do PS foi votada de forma democrática ainda em janeiro.

“Absoluta confusão” e “grau zero de credibilidade”

No texto da moção de censura, entregue no Parlamento esta terça-feira, o partido aponta para uma “absoluta confusão institucional” que coloca o Governo no “grau zero de credibilidade institucional e política” e “sem condições para governar”.

Tem por base o “caos na Saúde” — dando o exemplo dos encerramentos de urgências de obstetrícia por todo o país –, o aumento dos preços de combustíveis e bens essenciais e o confronto entre Pedro Nuno Santos e António Costa que acabou com um despacho sobre o novo aeroporto de Lisboa revogado em menos de 24 horas.

Chega lembra Sampaio e Santana Lopes para justificar moção de censura. Governo atingiu “grau zero de credibilidade”

No texto, o Chega lembra, aliás, as palavras do antigo Presidente da República Jorge Sampaio em 2005, quando dissolveu a Assembleia da República para fazer cair o Governo de Pedro Santana Lopes. À época, recorda o partido, Sampaio explicava que uma série de “incidentes, declarações, contradições e descoordenações” tinha “ensombrado decisivamente a credibilidade do Governo” e imposto a avaliação de conjunto que o levava a dissolver o Parlamento.

Agora, diz o Chega, a situação é bem mais grave e a “credibilidade do primeiro-ministro e do Governo” está gravemente comprometida, sobretudo por constatar que Costa não tenciona demitir nenhum dos ministros em causa (Marta Temido e Pedro Nuno Santos, da Saúde e das Infraestruturas e Habitação, são referidos como principais responsáveis “pela situação do país e pelo caos governativo em curso”, mas também responsabiliza Fernando Medina pela falta de medidas que combatam o aumento dos preços).

Nesse mesmo texto, o Chega assume que a sua intenção é “liderar a oposição”. Até ver, votará a favor do documento sozinho.

Texto atualizado no dia 6 de julho com a posição do Livre e do PAN.