O objetivo era anunciar uma “grande mudança de filosofia” na política de segurança de Lisboa. No entanto, transformou-se rapidamente num caso bicudo, com Carlos Moedas no centro do furacão e Governo, Rui Moreira e oposição autárquica metidos ao barulho. Tudo somado, a “ordem” que Moedas disse ter dado há um ano para que a Polícia Municipal detivesse suspeitos pode não ter sido afinal uma ordem e também pode não ter surtido qualquer efeito. Ao mesmo tempo, a intenção de Moedas seria, afinal, muito menos abrangente do que se supunha — e, mesmo assim, há quem entenda que a lei já a prevê. No meio de tudo isto, a ministra Margarida Blasco, que torceu o nariz à ideia de Moedas, arrisca-se a ter de ir ao Parlamento de urgência explicar o que se passa.
A polémica começou na segunda-feira. Em declarações à SIC Notícias, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa afirmou que tinha dado “ordem” ao comandante da Polícia Municipal para fazer detenções e que “essas detenções já estão a acontecer”. Mesmo sublinhando que existem “questões jurídicas” a tratar com o Ministério da Administração Interna, o autarca defendia a posição da Câmara: “Tem sido uma grande mudança na filosofia de atuar na cidade.” Um dia depois, na terça-feira, Carlos Moedas acrescentaria um novo dado: essa orientação tinha sido dada há um ano ao comandante da Polícia Municipal.
O Observador procurou perceber o porquê de a tal “ordem” a que Moedas se referiu ter sido dada “há um ano” e só agora a autarquia estar a pedir uma “clarificação jurídica” ao Governo. O motivo estará relacionado com o próprio calendário político: António Costa demitiu-se em novembro de 2023, as eleições legislativas foram em março deste ano e a ministra está em funções há relativamente pouco tempo. Esta sequência de eventos terá tornado difícil dar a pretendida celeridade à clarificação da lei, ainda que Moedas tenha admitido já ter levado a questão a José Luís Carneiro, na altura em que o socialista tutelava as polícias.
Ainda assim, segundo apurou o Observador junto de fontes da Polícia Municipal, nada de substancial mudou na atuação daquela polícia ao longo deste último ano — e há mesmo quem questione o facto de Moedas ter dado ou não uma “ordem”. Isto porque continua a ser entendimento da Polícia Municipal que os agentes estão impedidos de fazer uma detenção porque não está nas suas competências — o que podem fazer, sim, é “entregar sob detenção” às autoridades competentes (previsivelmente, à PSP ou à GNR) alguém que seja apanhado a cometer um crime.
A diferença nos termos aqui é relevante. Exemplo prático: quando um agente da Polícia Municipal interceta alguém a cometer um crime pode deter essa pessoa, mas tem de pedir a intervenção da PSP. Porque, de acordo com a interpretação que é feita da lei, esse agente está impedido de colocar a pessoa num carro da própria Polícia Municipal e de a transportar até a uma esquadra da PSP. É por isso que se diz que a Polícia Municipal está autorizada a “entregar sob detenção” e não a fazer uma “detenção”.
“O Presidente da Câmara não dá ordens para deter”
Ora, se as declarações iniciais de Carlos Moedas pareciam ter um alcance muito mais abrangente, as de hoje, quarta-feira, são mais limitativas. Inicialmente — e foi essa a interpretação da oposição na Câmara, mas também de figuras como Rui Moreira, presidente da Câmara do Porto. Moedas estaria a defender, por exemplo, que a Polícia Municipal, que tem, segundo a lei, uma vocação essencialmente administrativa, pudesse passar a dar sequência a um determinado processo, ir buscar suspeitos a casa ou a conduzir uma investigação criminal. A ideia do autarca é esta: se é certo que os agentes da Polícia Municipal de Lisboa (tal como os do Porto) são ‘recrutados’ na PSP, então não há motivo para que não possam fazer o mesmo que um agente da PSP faz quando identifica a prática de um crime — deter e conduzir à esquadra para identificação. “A PSP e a Polícia Municipal têm de trabalhar lado a lado, até porque ambos são PSP. Eu digo isso há dois anos”, sublinhou esta terça-feira.
“Sou muito a favor do Estado moderno — que tem o monopólio do uso da força, quer na defesa das fronteiras quer na segurança interna. E isso não pode ser distribuído através de 308 municípios, não faz sentido nenhum. Nem que houvesse regionalização estaria de acordo em que se descentralizasse essa competência. Porque senão estamos a avançar para o modelo americano dos xerifes. Ou vamos ter um exército privado também”, reagiu Rui Moreira, em declarações ao Diário de Notícias.
Esta quarta-feira, Carlos Moedas, na já referida reunião da Câmara, disse uma coisa diferente: “Ninguém percebe, e todos devíamos lutar para mudar a lei, que um polícia municipal apanhe alguém que está a roubar na rua e que tenha de ficar à espera de um PSP [Polícia Segurança Pública] para poder levar essa pessoa para a esquadra“, explicou. Esta primeira ideia está em linha com o que se passa no terreno, como confirmou o Observador juntos de agentes da Polícia Municipal.
No entanto, na mesma intervenção, Moedas acrescentou outro argumento: “Se um Polícia Municipal vir alguém a roubar na rua, que [o] detenha — claro que dei essa ordem. É a minha função como presidente da Câmara”. Esta afirmação levanta dois problemas: em primeiro lugar, a lei já autoriza um agente da Polícia Municipal a deter, identificar e revistar alguém que seja apanhado a cometer um crime — os agentes não estão obrigados a ficar a assistir passivamente a um crime em curso.
Em segundo lugar, são os próprios agentes a questionar o facto de Moedas ter dado uma “ordem” para atuar nessas circunstâncias — até porque já o fazem. “O Presidente da Câmara não dá ordens para deter. Quem dá ordens é a lei. Os polícias, os órgãos de polícia criminal, as polícias municipais, seja quem for, quando faz as detenções, faz porque deteta um crime em flagrante delito. Porque é assim que a lei o obriga“, afirmou Pedro Oliveira, do Sindicato dos Polícias Municipais, em declarações à Rádio Renascença.
Lei já prevê e obriga Polícia Municipal a atuar em flagrante delito
A afirmação de Pedro Oliveira tem sustentação legal. De acordo com decreto-Lei n.º 13/2017, de 26 de janeiro, que regula o regime especial das polícias municipais de Lisboa e do Porto, esta força policial tem competência para proceder à “detenção e entrega imediata, a autoridade judiciária ou a entidade policial, de suspeitos de crime punível com pena de prisão, em caso de flagrante delito, nos termos da lei processual penal”.
Portanto, para todos os efeitos, a Polícia Municipal tem competência e obrigação legal de entregar sob detenção qualquer suspeito apanhado em flagrante delito às autoridades competentes (daí a expressão “entrega imediata” inscrita na lei). Qualquer agente que extravase essas funções pode incorrer num crime de sequestro, abuso de poder e detenção ilegal, e toda a operação pode ser considerada nula pelo Ministério Público.
De resto, foi essa a reação do Ministério da Administração Interna (MAI) ao pedido público de Carlos Moedas. Numa nota enviada a vários órgãos de comunicação social, o gabinete de Margarida Blasco informou que as questões levantadas pelo autarca “estão previstas na lei aplicável”. Apesar de tudo, acrescentava fonte oficial do MAI, a “matéria está a ser analisada do ponto de vista técnico-jurídico”. O Bloco de Esquerda já veio exigir uma audição parlamentar com carácter de urgência da ministra da Administra Interna.
Ou seja, genericamente, tanto o Governo, como Rui Moreira (a Polícia Municipal tem regimes especiais para as cidades do Porto e de Lisboa, daí a reação do portuense ser tão relevante) e a oposição autárquica a Carlos Moedas (o PS acusou o social-democrata de desconhecer a lei, tal como o BE e o PCP) entendem que a lei-quadro da Polícia Municipal é suficientemente clara e não deve ser alterada. Aliás, há quem argumente que uma eventual alteração do regulamento municipal seria suficiente para dissipar qualquer dúvida que pudesse existir.
De acordo com este regulamento, aprovado em 2018, a Polícia Municipal tem como competência, entre outras coisas, “cooperar na manutenção da tranquilidade pública e na proteção da comunidade local, exercendo funções de segurança pública, na vigilância de espaços públicos ou abertos ao público”. Também se diz que “os casos omissos e as dúvidas suscitadas na aplicação do presente regulamento serão resolvidas pelo Presidente da Câmara, mediante parecer fundamentado do Comandante da Polícia Municipal”.
Atendendo a isto, entre a oposição a Carlos Moedas na Câmara de Lisboa, há quem defenda que uma alteração ao regulamento — que teria de ser necessariamente aprovada com votos de uma maioria que o autarca não tem — seria suficiente para sanar qualquer dúvida que pudesse subsistir. Ao Observador, fonte do executivo de Moedas defende que não, que uma simples alteração ao regulamento não deverá ser suficiente quando existe uma lei que não é suficientemente clara.
Depois, e este argumento também é utilizado, uma vez que a Polícia Municipal tem sempre de pedir a intervenção da PSP no local, existe, no fundo, uma duplicação de recursos. Se, como pretende o autarca, a Polícia Municipal pudesse fazer uma detenção no sentido mais literal do termo, a PSP seria dispensada de se deslocar ao local e de transportar o suspeito até a uma esquadra.
Este argumento tem sido rebatido publicamente pelos sindicatos da PSP ou, por exemplo, por Rui Moreira: a Polícia Municipal foi criada, essencialmente, para libertar a PSP do trabalho administrativo e de fiscalização; não para se subsistir à PSP em matéria criminal.
Existe também um plano político. Há muito que Carlos Moedas vem defendendo um reforço da segurança em Lisboa, criticando a falta de agentes da PSP e da Polícia Municipal. Segundo apurou o Observador, o presidente da Câmara Municipal entende que, perante a insuficiente presença de agentes da PSP na rua, a Polícia Municipal deve ser mais proativa, ter mais visibilidade na cidade e atuar sempre que esteja em causa a segurança dos cidadãos.
Esta quarta-feira, na mesma reunião da Câmara, tendo sempre como pano de fundo o aumento da insegurança em Lisboa, Moedas voltou a dizer que era incompreensível que a Polícia Municipal “não pudesse atuar num caso de um assalto”. Mais uma vez, esta afirmação não está inteiramente correta: um agente da Polícia Municipal que assista a um assalto tem competência e obrigação de atuar. Apesar das dúvidas, e até ao momento, o autarca não esclareceu que tipo de clarificação jurídica pretende junto do Governo.