Foi por um triz que, a 22 de janeiro, as caravanas do PS e PSD não se cruzaram em Espinho, na reta final da campanha para as legislativas. Foi uma daquelas ironias do destino: quase à mesma hora, António Costa e Rui Rio passaram pela cidade de braço dado (mais um que outro) com o futuro mais ou menos próximo dos respetivos partidos. Luís Montenegro recolheu as armas e lá apareceu ao lado de Rio e Pedro Nuno Santos cumpriu ao enquadrar Costa na moldura socialista que a reputação de coqueluche no distrito (e não só) lhe exigia. Os dois homens de Aveiro cumpriram missões, ambos com os olhos postos no mesmo futuro — e na última semana esse futuro esteve na génese da crise do despacho revogado.
Montenegro não alimentou divisões que lhe pudessem ser atribuídas no day after das legislativas, onde já via caminho para se posicionar como líder do PSD. E Pedro Nuno, já depois de Costa ter abandonado Espinho, seguiu de bandeira socialista em riste pela marginal com uma longa comitiva atrás a caminho do PS do futuro: não só do futuro dia 31 de janeiro, como daquele que constrói há anos e que tem agora como data de possível concretização o ano de 2026. Com ou sem sobressaltos no poder, é provável que os dois se encontrem nessa frente de combate, como líderes dos dois principais partidos. E essa luta dos dois homens do distrito de Aveiro já arrancou.
Naquela tarde de janeiro, os socialistas remexeram sobretudo no fantasma da troika — que nem era propriamente um fato que assentasse em Rio, caía melhor em Luís Montenegro que fez parte da tropa passista desse tempo, como líder da bancada parlamentar. Já o social-democrata, quando questionado se sucederia a Rio em caso de derrota nas legislativas atirou: “O PSD vai ganhar as eleições, essa pergunta tem de ser colocada a Pedro Nuno Santos, a Ana Catarina Mendes, a Fernando Medina ou a Mariana Vieira da Silva. Eles é que vão ter um problema de sucessão.”
Pedro Nuno acelerou aeroporto (também) por desconfiar de Montenegro
Quem teve — como se esperava — problemas de sucessão foi mesmo o PSD. O problema do PS chegou mais tarde e foi inesperado: uma decisão unilateral de Pedro Nuno Santos caiu no pano da maioria absoluta e muito por causa da irritação que Montenegro gera no socialista. A história já se conhece: António Costa queria esperar pelo congresso do PSD para chamar o novo líder e discutir o novo aeroporto de Lisboa, Pedro Nuno considerou que dessa frente não viria qualquer diálogo construtivo.
Aliás, a sua linha perante diálogos PS/PSD é antiga. Em 2018 engoliu a contragosto o acordo entre os dois partidos para a descentralização e os fundos comunitários — o homem da “geringonça” de esquerda aparecia ironicamente enquadrado bem no centro da imagem do aperto de mão entre os dois líderes. É um crente na negociação na frente oposta, aquela que liderou durante mais de três anos, como secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares de Costa, com a esquerda à esquerda do PS.
Na questão do aeroporto de Lisboa, Pedro Nuno Santos via nas reações de Montenegro ao convite de Costa apenas e só picardia política e zero abertura negocial. Foi com isso em mente que seguiu para as televisões de peito feito, afirmando que o novo líder do PSD “não demonstra disponibilidade para fazer parte da solução. O governo foi acusado de incompetente, incapaz de decidir, num registo que nem é — julgo eu próprio — de um líder da oposição e portanto pôs-se de fora. Era preciso decidir”, afirmou.
E ainda carregou nas tintas da urgência da questão. “Não é uma decisão unilateral. Nós já andamos há anos demais a decidir. Já chega. O país está sistematicamente a discutir localizações para o aeroporto. Já chega. Não havia nenhuma decisão, nenhuma escolha que não fosse ser alvo de críticas, o que é preciso é o Governo decidir e o Governo decidiu. Vamos avançar. Já estamos atrasados. Já é tempo demais.” Quem o conhece diz ser impossível não lhe reconhecer razão nessa afirmação, “o aeroporto está um caos e tem de ser resolvido”. E também que “não é louco” e que se avançou foi porque sentiu a mesma impaciência de Costa em relação ao PSD. É “impetuoso e voluntarista” mas “não desprovido de inteligência”, dizem sobre si.
A verdade é que o episódio maculou o seu percurso ao lado de António Costa, de quem já tinha ouvido uma reprimenda pública que fez correr tinta no Congresso do PS na Batalha, em 2018. Apareceu apostado em marcar terreno interno e Costa disse-lhe sem meias palavras que ainda não tinha “metido os papéis para a reforma”. Meses depois, o líder promoveu-o a ministro, manteve-o na coordenação política do Governo, mas a relação passou para outra fase. Respeitam-se mutuamente, mas também no centro do Governo se reconhece o tal carácter “impetuoso” de Pedro Nuno, que não raras vezes explode, desdobrando-se em explicações de seguida.
Também se aponta a irritação que Pedro Nuno Santos evidencia com Montenegro em quem vê um líder mais apostado em “arrastar o debate político para a lama”, conforme descrevem no seu círculo mais próximo. Não reconhece no opositor um político de “ideias e de propostas, mas sim de provocações e de cinismo”. Embora não lhe apontem segundas intenções políticas com esta questão do polémico despacho — e isso tenha sido uma atenuante no julgamento que Costa fez deste episódio — a marcação a Montenegro começou a ser feita. E Pedro Nuno Santos espera ter agora no desenvolvimento desta negociação com o PSD um argumento a seu favor. “Vamos ver como corre a negociação com o PSD”, comenta um dirigente socialista.
Costa queria, mas Pedro Nuno recusou sair. As horas quentes da primeira crise da maioria
Os dois já se enfrentaram no passado, nas legislativas de 2015 em que Montenegro era cabeça de lista do PSD por Aveiro e Pedro Nuno pelo PS. Nesse combate, o social-democrata ganhou, por larga margem, ao socialista. A Coligação Portugal à Frente (que juntava PSD e CDS) obteve 48% dos votos e o PS 27,91%, ficaram dez deputados contra cinco.
No programa Vichyssoise, na rádio Observador, o antigo líder do PSD apontou, no entanto, um problema ao futuro de Pedro Nuno Santos — e independente desta questão. “O PS tem em António Costa uma mais-valia. Ele vale mais do que o Partido Socialista. Ora, nas próximas eleições não há António Costa“. Além disso, acrescentou ainda o comentador político, “as próximas eleições já vão ser ao fim de muitos anos do PS no poder, podem ser quase 11 anos o que é muito tempo, em política é uma eternidade, suscita desgaste, erosão e, portanto, perda de votos”. Mendes antevê que o próximo ciclo político — seja a meio caminho ou só em 2026 — possa, por tudo isto, ser favorável ao PSD.
Montenegro arrancou com ataques a Pedro Nuno Santos
Nas hostes sociais-democratas, incluindo em alguns dos mais próximos de Luís Montenegro acredita-se que o próximo combate eleitoral será com Pedro Nuno Santos e não com António Costa. “Muito dificilmente o confronto será com António Costa e é preciso ter isso em conta”, diz um dirigente nacional do PSD ao Observador. A opinião está, aliás, na mesma linha da do ex-líder do PSD, Marques Mendes.
Mesmo que a estratégia de oposição nestes primeiros anos seja a de continuar a desgastar o atual primeiro-ministro, Montenegro já começou as picardias dirigidas a Pedro Nuno Santos — qual pugilista a provocar o adversário na conferência de imprensa antes de um combate do século. Em cinco dias, o novo líder do PSD atacou o potencial sucessor de António Costa por três vezes, naquelas que não foram referências inocentes.
No abertura do Congresso da sua entronização, Luís Montenegro classificou o episódio entre Pedro Nuno Santos e António Costa como “a mais inusitada, a mais estranha e a mais mal explicada entre um primeiro-ministro e um ministro de toda a história democrática.”
O líder do PSD tenta depois pôr em confronto o seu sentido de Estado (“o atual líder do PSD não lida com leviandade com estas questões”) com uma garotice do ministro das Infraestruturas: “Já não há dúvidas da leviandade, da infantilização que este processo trouxe ao Governo e às instituições democráticas.”
Nada meigo para Pedro Nuno Santos (nem para Costa), Montenegro disse mesmo que Costa foi “complacente, fraco e inconsequente” com “o ministro que terá traído a sua posição assumida politicamente”.
Luís Montenegro não sairia do discurso sem visar de forma ainda mais direta Pedro Nuno Santos, ao defender que este se devia ter demitido e que só o poder que tem no aparelho socialista o segurou no Governo. “O que eu vou dizer pode parecer uma graçola, mas não é: é uma coisa séria. Acho que o ministro Pedro Nuno Santos finalmente conseguiu pôr as pernas a tremer a alguém, mas não foi a nenhum credor, foi ao primeiro-ministro porque não há explicação para ele continuar no Governo depois de ter feito aquilo que fez.” Estava terminado o primeiro round ao seu potencial adversário em 2026.
Dois dias depois, no encerramento do Congresso, Luís Montenegro voltaria ao ataque. Quando escreveu o discurso, o novo líder do PSD colocou duas referências a Pedro Nuno Santos para o colar à solução geringonça, que uniu o PS a “extremistas”. Neste caso, juntou-lhe os outros membros do “grupo dos quatro”. Lembrando a “geringonça”, Montenegro disse que “António Costa, Pedro Nuno Santos, Fernando Medina, Mariana Vieira da Silva, Ana Catarina Mendes, e por aí fora, violaram os princípios do socialismo moderado para evitar a reforma política antecipada do atual primeiro-ministro.”
Montenegro prosseguiu a dizer que o PS se aliou a “partidos anti-nato, ou anti-UE, ou anti-euro, ou anti IPSS, ou anti misericórdias, ou anti setor privado da saúde, ou mais flagrante ainda, partidos pró-russos no contexto da guerra da Ucrânia”. Em vez de atribuir essa ligação apenas a António Costa, juntou-lhe os tais sucessores, onde também está o ministro das Infraestruturas: “Quem fez tudo isso tem rosto e tem nome: António Costa, Pedro Nuno Santos, Fernando Medina, Mariana Vieira da Silva, Ana Catarina Mendes, e por aí fora.”
Mas não haveria duas sem três. Já esta terça-feira, no fim da primeira audiência com o Presidente da República em Belém, voltou a referir — mesmo que as perguntas não fossem especificamente sobre isso — que o caso “retirou autoridade política ao ministro”.
Luís Montenegro tem como alvo diário António Costa — por ser o primeiro-ministro em funções –, mas já começou o tiro aos adversários que potencialmente enfrentará nas urnas. E, entre os quatro, há um a quem nestes primeiros dias de mandato se tem dedicado mais. Luís Montenegro não esconde ao que vai e, apesar de o seu mandato terminar em 2024, no site do partido (tal como tinha acontecido no ecrã digital do Congresso) essa meta está escrita com as letras todas: “Montenegro 2026”. Embora não esteja textualmente vertido, na cabeça do ministro Pedro Nuno Santos, numa ambição que não esconde, estará igualmente “Pedro Nuno 2026”.