Era tabu, motivou um embaraço interno na Aliança Democrática, foi desfeito publicamente e acabou por ser recuperado durante a maratona de debates. Luís Montenegro continua sem dizer se viabiliza ou não um governo minoritário do PS caso venha a ficar em segundo lugar nas próximas eleições legislativas e, mesmo assim, exista uma maioria de direita no Parlamento — cenário perfeitamente possível atendendo à generalidade das sondagens entretanto publicadas. Ora, acontece que Montenegro disse que não viabilizaria um governo socialista há menos de um mês. O problema é que admiti-lo agora seria reintroduzir o tema das alianças com o Chega na campanha eleitoral — e isso o PSD não quer.
A 30 de janeiro, em entrevista à CNN, conduzida pelo jornalista Anselmo Crespo, à pergunta sobre o que faria o PSD se ficasse em segundo e existisse uma maioria de direita no Parlamento, o líder social-democrata foi taxativo: “Não vejo forma de os deputados da Aliança Democrática viabilizarem uma governação do PS, tal qual está representada”, sublinhou Montenegro, chegando a enumerar as divergências insanáveis entre os programas dos dois partidos — em matéria de impostos e de visão do Estado Social, por exemplo — como motivo de base para essa recusa.
Nessa sequência, Montenegro foi desafiado a esclarecer se apresentaria então uma moção de rejeição ao governo minoritário de Pedro Nuno Santos. Sem o dizer de forma cristalina, o líder social-democrata insistiu que, por uma questão de “relação de confiança e de lealdade”, tinha de ser claro: “Não seremos nós a viabilizar um governo que é contra aquilo que defendemos”. Convidado mais uma vez a esclarecer se apresentaria ou votaria uma moção de rejeição, Montenegro limitou-se a dizer que os deputados da Aliança Democrática atuariam em “conformidade“.
A questão torna-se um bocadinho mais bicuda porque Luís Montenegro já disse, por diversas vezes, que, mesmo existindo uma maioria de direita, não governaria se ficasse segundo lugar. Logo, nesse quadro, em teoria, seria inútil apresentar uma moção de rejeição porque o líder do PSD não estaria disponível para ser primeiro-ministro. A única alternativa seria ser outra pessoa do partido a oferecer-se para levar a Marcelo Rebelo de Sousa uma proposta de Executivo — uma hipótese que há muito circula nos bastidores sociais-democratas, mas que é altamente improvável— ou esperar por novas eleições, que só poderiam acontecer depois de agosto — e aí o PSD teria de se reorganizar.
Nesta entrevista da CNN, emitida há menos de um mês, Montenegro é confrontado com esse cenário: como é que o partido reagiria se, existindo uma maioria de direita, o líder do PSD desperdiçasse a oportunidade de governar. “O PSD é muito maior do que eu, não há dúvida nenhuma. Não tenho nenhuma tentação de me fazer maior do que o PSD. Não acredito em super-heróis. São uma ficção. O PSD é uma grande instituição. E decidirá sempre aquilo que entender. Agora, o PSD não está a ser enganado por mim. Nem o PSD, nem o país”, sugeriu o líder social-democrata.
A frase tem amplitude suficiente para que se depreenda daqui que Montenegro sairá da frente se o partido entender que deve aproveitar uma maioria de direita mesmo ficando em segundo lugar. Ora, assumir isto relançaria uma questão que o líder social-democrata quer enterrar: uma eventual aliança com o Chega. Isto porque os sociais-democratas só conseguiriam derrubar Pedro Nuno Santos se votassem ao lado de André Ventura uma eventual moção de rejeição. Mesmo que depois não fizesse um acordo formal com o Chega, seria o suficiente para que a esquerda dissesse que o PSD está mortinho para se entender com Ventura e contribuir para a instabilidade política — e reintroduzir o tema do Chega na campanha é tudo o que Montenegro não quer neste momento.
Além disso, vem nos livros: falar de um cenário de derrota não é recomendável para quem não quer que o eleitorado perca o foco. Na maratona de debates, o líder social-democrata teve três oportunidades para reiterar aquilo que dissera em entrevista à CNN. E não o fez. No debate com Paulo Raimundo, que fez à distância, Montenegro ficou em silêncio largos segundos e depois não esclareceu. No frente a frente com Ventura, já presencial, fugiu à pergunta apesar da insistência do moderador. No duelo com Pedro Nuno Santos, resistiu a todas as investidas e recusou responder à pergunta. Daí para cá, e apesar das perguntas diárias dos jornalistas, Montenegro manteve a não-resposta: só está focado na vitória.
Esta quinta-feira, aliás, em entrevista ao Observador, no programa “Vichyssoise”, José Pedro Aguiar-Branco, cabeça de lista por Viana do Castelo e putativo candidato da AD ao cargo de presidente da Assembleia da República, também procurou evitar a questão, deixando claro, ainda assim, que entende que, num cenário de derrota, não haveria ninguém com legitimidade para substituir Montenegro e assumir a função de primeiro-ministro à frente de uma maioria de direita (com votos do Chega).
“Não sou dirigente do PSD e, portanto, a minha opinião só me compromete a mim. E entendo que, se uma circunstância dessas ocorresse, não deve haver uma outra alternativa interna que vá ao encontro do que está a dizer. Porque em Portugal a legitimidade é parlamentar, mas também está muito associada ao protagonista e àquilo que é a candidatura a primeiro-ministro. [Seria preferível novas eleições?] Estamos a entrar terrenos que são sempre suscetíveis de interpretações muito equívocas. Depois o título diz ‘Aguiar Branco defende novas eleições em caso de…’ Peço desculpa, mas já ando nisto há muitos anos”, rematou.
Melo e Pedro Duarte escorregaram
De resto, a entrevista de Luís Montenegro à CNN surgiu depois de Nuno Melo, também em conversa com Anselmo Crespo, a 17 de janeiro, ter cometido aquilo que o núcleo duro do PSD considerou uma “infantilidade” absoluta e um erro tremendo precisamente por ter admitido que deveria governar quem ficassem em primeiro lugar.
“Se o PS vencer as eleições, quem vence deve governar. É isso que é suposto. Aplico aos outros aquilo que reclamo para nós. Falo por mim enquanto presidente do CDS. Tento ler a política dentro da normalidade possível e a normalidade possível diz-me que quem vence deve governar. Outros entendem que não é assim. Logo se verá”, foi repetindo o líder democrata-cristão.
Como explicava o Observador, as declarações de Nuno Melo apanharam muita gente de surpresa no PSD e no CDS. “Terá ensandecido?“, perguntava, com espanto, um destacado um dirigente social-democrata ao Observador. André Ventura chamou-lhe um figo, marcou uma conferência de imprensa e atirou-se às canelas de Montenegro.
“A AD assume que viabilizará um governo PS, mesmo que haja uma maioria Chega, PSD e IL no parlamento. Este facto motivou nas últimas semanas um enorme sentimento de revolta em muitas hostes de PSD, IL e CDS. É natural que uma grande franja dos homens e mulheres destes partidos se sintam desiludidos, incapazes de construir alternativa ao PS e frustrados com um sentimento ‘de bengala’ que a AD diz querer ser em relação ao PS”, argumentou o líder do Chega.
Dias depois, na convenção da Aliança Democrática, no Estoril, Melo foi obrigado a fazer um ato de contrição. Depois de ter sido obrigado a escrever um comunicado a esclarecer que os deputados da coligação não viabilizariam um governo minoritário de Pedro Nuno Santos, o líder do CDS aproveitou o discurso a partir da “Convenção por Portugal” para tentar fazer esquecer o deslize anterior. “Para que fique claro, o único governo que a AD vai viabilizar depois de 10 de março vai ser o governo da AD quando vencermos as eleições, contados todos os votos. Vai ser o único governo que vamos viabilizar”, reiterou o líder do CDS.
Mais recentemente, foi a vez de Pedro Duarte, próximo de Montenegro e presidente do Conselho Estratégico Nacional do PSD, tropeçar nas palavras, defendendo, em declarações à Rádio Renascença, que o partido deveria viabilizar um governo socialista minoritário. “Se olharmos para o histórico do PSD na nossa democracia, o PSD sempre teve o sentido de responsabilidade de colocar os interesses nacionais acima dos interesses partidários. Não tenho dúvidas que vai voltar a acontecer quando um cenário dessa natureza se voltar a colocar no futuro, seja quando for”, defendeu Pedro Duarte.
Em cima disso, Pedro Duarte ainda admitiu que Luís Montenegro poderá deixar a liderança do partido caso venha a perder as próximas eleições legislativas. “Enquanto líder do PSD não pode vincular o partido a uma posição no dia a seguir em que — ele não pode dizer, mas eu posso dizer — não sabe sequer se continua como presidente do PSD”, argumentou.
Horas depois, Pedro Duarte aproveitaria o Twitter para lamentar ter sido mal compreendido e alegar total sintonia com Luís Montenegro. A tentativa de gestão de danos foi encarada como indispensável pelo núcleo duro do PSD, mas ninguém, nem mesmos os mais próximos do líder social-democrata, compraram a tese de que Pedro Duarte tenha sido mal interpretado — o dirigente do PSD disse o que disse e foi muito mais longe do que, aos olhos da direção do partido, deveria e poderia ter ido. Não é altura para cometer erros — e é para não cometer erros que Montenegro renovou o tabu.
“Infantilidade” de Melo causa embaraço a Montenegro. “Caiu na casca de banana”