Mais de 30 propostas para seduzir o PS, 13 para convencer o Chega, seis para piscar o olho à IL, três mais três para conversar com o Bloco de Esquerda e Livre, duas medidas do PAN e uma do PCP. Luís Montenegro repescou 60 medidas eleitorais de cada partido com assento parlamentar para tentar dar um sinal de “diálogo” e espírito de compromisso. Atendendo às reações dos vários partidos, o novo Governo não foi particularmente bem sucedido. Mas, para já, o objetivo estratégico a que se propunha Montenegro foi alcançado: criar a narrativa de que a Aliança Democrática está disponível para conversar com “todos, todos, todos”.
Resultado prático: todos os partidos criticaram aquilo a que chamaram simulacro de diálogo. Basta ver que o critério aparentemente seguido na distribuição de propostas repescadas foi o da representação que cada partido tem na Assembleia da República (exceção feita ao PCP) por ordem de grandeza, sem que tivesse existido uma preferência clara pelo parceiro natural (a IL), uma preferência pelo partido à direita que pode salvar este Governo (o Chega) ou uma procura evidente pelo PS — apesar de ser o maior beneficiário líquido desta operação de charme, mantêm-se no Programa do Governo uma série de reversões de medidas que o governo de António Costa tomou, da Habitação ao Trabalho.
No essencial, o documento apresentado esta quarta-feira acompanha o programa eleitoral da Aliança Democrática durante as legislativas, com duas nuances que podem ter um grande impacto político: uma eventual alteração em relação ao ritmo da redução do IRS e a a desconstrução da ideia do excedente orçamental.
O primeiro caso é aquele que é politicamente mais sensível porque traz alguma sombra ao prometido choque fiscal da Aliança Democrática. O Governo mantém a intenção de reduzir as taxas marginais do imposto até ao 8º escalão entre 0,5 pontos percentuais e 3 pontos percentuais face ao que se pagava em 2023, mas com uma diferença substantiva: no programa eleitoral, Montenegro comprometia-se a fazê-lo já em 2024, com efeitos retroativos, mas agora não fala em datas.
Há uma explicação possível e é a que está a ser mais repetida entre sociais-democratas: esta medida (como outras) será apresentada no Parlamento (no âmbito do Orçamento do Estado para 2025 ou não) para obrigar os restantes partidos a tomarem uma posição sobre o tema — e serem responsabilizados pelas decisões que tomarem. Ou seja, a intenção é manifestada no Programa de Governo, o tema vai ser levado a debate, a proposta será apresentada, mas a calendarização não é feita para já de forma a colocar a pressão também do lado dos partidos da oposição.
De resto, há uma série de propostas com impacto orçamental que não estão calendarizadas — sobretudo no que diz respeito às revisões salariais das carreiras da Administração Pública — e que terão de ser discutidas mais à frente. Tudo isto terá de ser traduzido no Orçamento do Estado para 2024 ou através de autorizações extraordinárias de despesa que implicarão votações cruzadas entre AD, PS e Chega. De uma ou de outra forma, a oposição terá de se pronunciar sobre estas matérias.
No segundo caso, a Aliança Democrática, que se comprometia em manter excedentes (0,8% em 2024, algumas variações positivas, e, finalmente, 0,2% em 2028), deixa de fazer referência a esses valores e passa a falar apenas em “equilíbrio orçamental”. Mas diz-se mais: “O excedente orçamental de 2023 não deve criar falsas ilusões de prosperidade nem alimentar a ideia de que todos os problemas podem ser imediatamente solucionados”.
O aviso é claro: “Existe uma necessidade urgente de transformar a economia e o Estado, até porque as circunstâncias que determinaram o superavit de 2023 são, não só difíceis de replicar, como também altamente indesejáveis, pois implicariam manter a carga fiscal em máximos históricos, prolongar a degradação dos serviços públicos e perenizar a tendência negativa do investimento público. E tudo isto num contexto em que a despesa com juros da dívida pública ainda beneficiou da política monetária do BCE. O excedente de 2023 permitiu reduzir circunstancialmente mais a dívida publica, mas não é uma garantia estrutural para os anos seguintes.”
O Programa do Governo também não reflete a ambição em matéria de crescimento económico definida pela Aliança Democrática no programa eleitoral: para 2024, o cenário macroeconómico da AD previa um avanço de 1,6% do PIB, taxa que acelera significativamente nos anos seguintes. 2,5% em 2025, 2,7% em 2026 e 3,0% em 2027, até chegar a 3,4% em 2028, fim da legislatura. Neste Programa do Governo, mantém-se apenas o seguinte compromisso: “O XXIV Governo constitucional tem como um dos seus desígnios a criação de condições para que a economia portuguesa se apresente como competitiva, próspera e equilibrada que sirva as pessoas, não deixando ninguém para trás. Um País com ambição e futuro”.
Por tudo isto, é preciso esperar pelas contas e metas que a Aliança Democrática ainda terá de apresentar no Parlamento — o Programa de Estabilidade que vai ser entregue a 15 de abril, na próxima semana, ainda não vai refletir o impacto orçamental das medidas do Governo — para se perceber exatamente a trajetória que o Governo pretende seguir, sobrando, mesmo assim, uma certeza: como têm vindo a insistir os responsáveis sociais-democratas desde a vitória a 10 de março, não vai haver dinheiro para pagar tudo; é preciso moderar as expectativas.
A única garantia que o Governo deixou, pela voz de António Leitão Amaro, ministro da Presidência, foi que “o momento e o calendário” da concretização das promessas de Governo acontecerá nos próximos dias, nomeadamente durante o discurso do primeiro-ministro, que acontecerá na discussão do documento na Assembleia da República, marcada para quinta e sexta-feira.
Houve outras medidas que constavam do programa eleitoral e que não foram incluídas no Programa de Governo, como a alteração às regras da nomeação dos reguladores ou a “profunda modernização e transformação da máquina da Segurança Social” e possível fusão com o Fisco, matérias que, pela sua complexidade, motivariam processos negociais difíceis e, porventura, inconsequentes.
Quanto ao mais, mantêm-se as grandes prioridades (11) de Montenegro: aumentar rendimentos (salário mínimo nacional para 1000 euros em 2028, por exemplo); melhorar as pensões (Complemento Solidário para Idosos em 820 euros também para 2028); reduzir impostos (IRS e IRC, ideia que o PS já disse rejeitar); proteger os mais jovens (à cabeça, IRS máximo de 15% para jovens até aos 35 anos); plano de emergência do SNS em 60 dias; na Habitação, “um grande programa de contratos de construção de imóveis para a classe média”, por exemplo; enfoque na Educação, com destaque para a valorização da carreira dos professores; o acesso universal e gratuito às creches e ao pré-escolar; o combate à corrupção (legalização do lobbying e criminalização do enriquecimento ilícito); “dignificar” as forças de segurança e controlar efetivamente as fronteiras; e garantir incentivos à natalidade.
Apesar de tudo, o gesto de Montenegro não foi levado a sério pelos partidos da oposição. O PS, pela voz da nova líder parlamentar, Alexandra Leitão, lamentou a ausência de diálogo e assinalou de imediato uma medida que não constava do programa eleitoral da AD e que agora existe no Programa do Governo: “Revisitar a Agenda do Trabalho Digno, [uma vez que] um ano após a entrada em vigor do diploma impõe-se avaliar, designadamente na concertação social e com todos os parceiros, os resultados deste primeiro ano de implementação no terreno”. “O PS discorda frontalmente“, sentenciou a socialista.
O Chega, o único partido que, a par do PS, pode salvar o novo Governo, classificou o documento de “muito vago e pouco ambicioso”, nomeadamente em “em métricas, objetivos e no calendários” dos objetivos que estabelece — sobretudo no que respeita aos aumentos para várias carreiras, que para André Ventura ficam “muito aquém do prometido”.
Até a Iniciativa Liberal de Rui Rocha, um parceiro natural de Montenegro, não escondeu a desilusão com o documento que foi apresentando, dizendo que é “insuficiente para as transformações urgentes que o país precisa” e que “fica aquém das necessidades”, da descida dos impostos às soluções para a Saúde. Sem grande surpresa, os restantes partidos demarcaram-se por completo do programa de Montenegro. O embate segue dentro de momentos.