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Tornou-se uma das surpresas do último dia da primeira semana do julgamento do processo principal do caso Universo Espírito Santo, um dos maiores casos da justiça portuguesa. Os procuradores Carla Dias, César Caniço e Sofia Gaspar, que representam o Ministério Público, surpreenderam os advogados dos arguidos ao anunciarem nos autos que irão solicitar na justiça cível “a instauração oficiosa de processo de maior acompanhado” para Ricardo Salgado, devido à doença de Alzheimer.
Mas o que significa este instituto criado em 2018? E que implicações tem no processo penal aberto contra Salgado — que está a ser julgado por ter liderado uma associação criminosa que levou o Banco Espírito Santo (BES) à resolução decretada pelo Banco de Portugal e o Grupo Espírito Santo (GES) à ruína?
Procuradoria-Geral da República diz que processo contra Ricardo Salgado não será suspenso ou extinto
O que pediu o Ministério Público (MP)?
Requereu, por escrito, a “emissão de certidão integral dos documentos numerados de 1 a 12, inclusive, entregues pelo arguido Ricardo Salgado com a sua contestação, bem como certidão do teor integral do interrogatório realizado no dia 15/10/2024, destinando-se as mesmas à instauração oficiosa de processo de maior acompanhado”, lê-se no requerimento divulgado pela CNN Portugal e ao qual o Observador também teve acesso.
A documentação em causa refere-se a perícias já realizadas no Instituto Nacional de Medicina Legal em diversos processos e a outros relatórios médicos relacionados com a doença de Alzheimer.
Os três procuradores solicitaram ainda ao tribunal coletivo que está a julgar Ricardo Salgado e os restantes 16 arguidos individuais que o “presente requerimento” se mantenha “sob reserva e de acesso limitado”.
O MP quer suspender ou arquivar o processo?
Não. Fonte oficial da Procuradoria-Geral da República garante ao Observador que a “anomalia psíquica superveniente não é, na ordem jurídica portuguesa, fundamento para a extinção do procedimento criminal. Igualmente não é causa de suspensão. As que existem são taxativas e a anomalia psíquica não está entre elas. Essa foi a posição defendida pelo MP no julgamento e o Tribunal acolheu-a e indeferiu o requerido pelo arguido, razão pela qual deu início ao julgamento”.
A mesma fonte oficial esclarece que não se trata de uma “questão penal.”
O que é o Estatuto do Maior Acompanhado?
Trata-se de um regime jurídico criado em 2018 para substituir os institutos da interdição e da inabilitação criados em 1966, ainda no regime do Estado Novo. Na prática, significa uma ação interposta na jurisdição cível que implica avaliar a capacidade de alguém para gerir o seu património e a sua própria pessoa.
Regra geral, é um tipo de ação que costuma ser interposta pela família (apesar de o MP também poder ser o autor da mesma) e implica que, em caso de deferimento, o tribunal cível que vai avaliar o pedido do MP pode declarar Ricardo Salgado como incapaz para tomar as suas próprias decisões patrimoniais. E se assim for, deverá nomear uma espécie de tutor para representar o ex-banqueiro.
Um facto relevante: nunca a família de Ricardo Salgado requereu este tipo de ação.
O regime do estatuto de maior acompanhado é muito flexível e menos exigente do que, por exemplo, comprovar a existência de incapacidade judiciária. E permite a criação de um plano pessoal adaptado a cada pessoa, consoante as respetivas necessidades.
Como Ricardo Salgado mora em Cascais, deverá ser para a jurisdição cível do tribunal daquela vila que a certidão requerida será enviada. A última palavra para instaurar o processo de maior acompanhado pertencerá assim aos magistrados do MP neste tribunal.
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O requerimento causou polémica?
Sim. Os três procuradores referem expressamente no último parágrafo do seu requerimento que “mais se requer que o presente requerimento se mantenha sob reserva e de acesso ilimitado”. Isto é, e como se tratava apenas de uma solicitação de certidão para a emissão de cópias, o MP queria manter a mesma confidencial. Contudo, foi a própria magistrada do MP que submeteu o requerimento por via informática e cometeu o lapso de o publicar em formato aberto.
Assim, todos os envolvidos ficaram a saber que o MP estava a abrir um novo caminho processual para Ricardo Salgado.
Por outro lado, a polémica também nasceu do facto desta decisão dos procuradores Carla Dias, César Famas Caniço e Sofia Gaspar seguir uma prática diferente da que foi seguida pelo seus colegas nos outros oito processos criminais que envolvem Ricardo Salgado – e em quase todos eles existem provas periciais que constatam a doença de Alzheimer. Em todos eles, e em diversas instâncias judiciais, o MP tem pugnado pela ideia de que Ricardo Salgado estava são aquando da prática dos crimes, logo não é inimputável e o processo deve continuar até existir uma decisão transitada em julgado.
Fonte oficial da PGR esclarece que essa posição estrutural do MP, de que Ricardo Salgado deve ser julgado porque a lei portuguesa não admite a suspensão ou a extinção do procedimento criminal em caso de anomalia psíquica, não mudou. Simplesmente os três procuradores do julgamento do caso BES entendera que “era sua competência e dever dar conhecimento ao MP competente para eventual instauração oficiosa de processo de maior acompanhado” nos termos Código Civil.
Justiça Cega. “Ricardo Salgado deve cumprir pena de prisão em casa ou num hospital”
“Perante uma pessoa”, como Ricardo Salgado, “com documentação clínica que comprova que tem pelo menos capacidade diminuída, tem o Ministério Público o dever funcional de assegurar que os seus direitos e interesses sejam protegidos. Pois, é esse o escopo do regime do maior acompanhado”, assegura a mesma fonte.
O Ministério Público tem algo a ganhar com esta diligência?
Estando obrigado a seguir princípios como o da legalidade e o da objetividade, o MP está simplesmente a cumprir os seus poderes. Deve ter sido precisamente por isso que Carla Dias, César Famas Caniço e Sofia Gaspar solicitaram a interposição desta ação cível.
Contudo, existem vários riscos associados a esta estratégia. Desde logo, o facto de o MP admitir implicitamente que Ricardo Salgado tem uma incapacidade judiciária — algo que o MP nunca afirmou e que não está demonstrada em nenhuma das perícias que foram feitas até ao momento, como poder ler aqui.
Por outro lado, existe um risco (reduzido) de o tribunal cível que vier a decidir sobre o requerimento de maior acompanhado poder determinar que é necessária uma nova perícia, que poderá confirmar um grau mais avançado da doença de Alzheimer.
Várias fontes do MP defendem que esta estratégia seguida pelos três procuradores pode servir para esvaziar a forte mediatização que a defesa de Ricardo Salgado tem promovido.
Para já a estratégia seguida por Proença de Carvalho e Squilacce de ‘agitar as águas’ surtiu efeito quando menos se esperava.
O que vai acontecer agora?
Em primeiro lugar, é preciso esperar para ver se os três procuradores vão mesmo enviar a certidão para o Tribunal Cível de Cascais. E depois se os seus colegas dão seguimento ao requerimento ou se o arquivam.
Se a jurisdição cível determinar que Ricardo Salgado deve ter um cuidador formal, que o substitua na gestão do património, terá de o indicar, sendo a mulher, Maria João Bastos Salgado, a hipótese mais provável. Até porque, como Proença de Carvalho disse na tarde desta sexta-feira, já é a cuidadora informal.
Sendo este um instituto da jurisdição cível, que implicações tem no processo penal em curso?
Todas as fontes contactadas pelo Observador, entre juízes, procuradores e advogados, entendem que não terá nenhuma consequência. E fonte oficial da PGR confirma isso mesmo — ler perguntas e respostas anteriores.
O que decidiu o tribunal sobre o requerimento de suspender ou arquivar os autos?
A juíza presidente Helena Susano decidiu no dia 12 de outubro, três dias antes do início do julgamento, indeferir o requerimento dos advogados Francisco Proença de Carvalho e Adriano Squilacce para a “extinção ou suspensão do processo em razão da situação clínica” do arguido Ricardo Salgado. E porquê?
- Na esteira de todas as decisões tomadas por outros tribunais, a juíza presidente Helena Susano cita os professores Maria João Antunes e Paulo Pinto de Albuquerque para afirmar que o “processo penal português não reconhece qualquer autonomia quanto à forma do processo, nem efeito suspensivo ou extintivo, à circunstância de o arguido não estar em posse de todas as suas faculdades mentais, sendo o processo tramitado independentemente de o arguido ser portador de uma anomalia psíquica que lhe diminua ou exclua a capacidade de participar de forma constitutiva na declaração do direito do caso”.
- A juíza presidente defende ainda que isso mesmo é reconhecido indiretamente na lei, “não apenas à aplicação de medidas de segurança [o internamento compulsivo, por exemplo, caso de perigosidade] a portadores de anomalias psíquicas coetâneas com a prática dos factos”, como prevê “soluções de internamento e de suspensão da execução da pena de prisão para anomalia psíquica sobrevinda”. Isto é, o “ordenamento jurídico-penal não prescinde de fazer prosseguir o processo contra um dado arguido, em razão ou apesar da anomalia psíquica de que sofra.”
E conclui de forma taxativa: “O reconhecimento da figura da incapacidade judiciária no atual paradigma processual penal significaria a supressão de uma parte das reações criminais previstas no ordenamento jurídico, sem um único subsídio normativo que o justifique”.
Dito de outra forma, não há na lei nada que permita afirmar que o processo tem de ser arquivado ou suspenso devido ao desenvolvimento, por exemplo, da doença de Alzheimer quando o arguido não é inimputável. Ou seja, estava são no momento da prática dos crimes.
A juíza presidente Helena Susano diz mesmo que a lei impõe este entendimento, “independentemente do resultado de qualquer exame pericial que se possa vir a realizar”.
Este despacho da juíza presidente foi confirmado dias depois por um segundo despacho do coletivo que está a fazer o julgamento.
O que têm dito as perícias já realizadas?
Os relatórios das perícias produzidos a 27 de novembro de 2023 e a 21 de dezembro de 2023 são os mais relevantes. O primeiro foi assinado por um colégio de peritos composto por Fernando Vieira, psiquiatra forense e um dos grande especialistas nacionais na área, Camila Nóbrega (neurologista) e Henrique Saraiva Barreto (neuropsicólogo). O tribunal que requereu o exame foi o Tribunal Cível de Cascais, na sequência de um processo que tem Ricardo Salgado e a sua mulher como réus.
Já a segunda perícia é mais recente e foi feita por especialistas do Instituto Nacional de Medicina Legal de Coimbra, sendo o colégio de peritos liderado por Joaquim Cerejeira e Isabel Santana. Neste caso, o requerente foi o tribunal da comarca de Lisboa que julgou o caso Manuel Pinho, no qual Ricardo Salgado foi condenado a uma pena de prisão de seis anos e três meses por ter corrompido o ex-ministro de José Sócrates.
Os juízes que ordenaram as perícias queriam saber se Ricardo Salgado tem a doença de Alzheimer, como argumenta a sua defesa desde há vários anos, e se estava em condições de testemunhar em tribunal.
A segunda perícia é mais explícita quanto às capacidades do ex-presidente executivo do Banco Espírito Santo poder depor em tribunal: “O arguido [Ricardo Salgado] mantém uma boa capacidade de interação pessoal, compreensão e expressão verbal, raciocínio e um estado emocional que, no nosso entender, não impedem que seja submetido a um interrogatório judicial na qualidade de arguido”, lê-se no relatório a que o Observador teve acesso.
Contudo, os peritos de Coimbra avisam o tribunal de que Salgado pode “apresentar défices de memória”, não sendo por isso “possível garantir o rigor” das respostas que dará.
Já o colégio de peritos de Lisboa, liderado pelo psiquiatra forense Fernando Vieira, foi mais cauteloso. Afirma também que não existe real “impossibilidade” de Salgado “comparecer” no julgamento, mas admite claramente que, em termos médico-legais, podem estar “comprometidas as suas declarações” devido à doença de Alzheimer e à “situação que em si sempre será stressante para qualquer cidadão em abstrato, incluindo naturalmente o examinando em concreto”.
Nenhuma das perícias deixa dúvidas de que Ricardo Salgado padece de doença degenerativa, neste caso doença de Alzheimer.
Aliás, aconteceu um pormenor curioso aquando da ida de Salgado à audiência de julgamento do processo Manuel Pinho em fevereiro de 2024. Não só o ex-banqueiro corrigiu a juíza presidente quando esta disse mal o nome da sua mãe, como afirmou claramente que não queria prestar declarações por lhe ter sido diagnosticada a doença de Alzheimer.
Quantos testes foram feitos a Ricardo Salgado e houve algum que tenha detetado uma hipótese de simulação?
Foram feitos 17 testes, muito profundos e vastos. E houve um que levantou a hipótese de Ricardo Salgado estar a exagerar ou a simular sintomas compatíveis com a doença de Alzheimer.
O teste tem o nome técnico de SIMS – Inventário Estruturado de Simulação de Sintomas e visa detetar a “simulação de sintomas psicopatológicos e neuropsicológicos.” Na prática, é um teste que consiste em 75 “itens” de “resposta dicotómica (verdadeiro ou falso)” que pretende avaliar várias questões como “transtornos de memória”, “sintomas psicóticos inusitados ou extravagantes” ou “baixa inteligência”.
Neste teste, cuja “pontuação total obtida” por Ricardo Salgado foi “superior à recomendada” para “determinar a existência de simulação”, foi detetada uma contradição nas respostas.
Em primeiro lugar, a perita detetou que o “examinando responde frequentemente a itens referentes a sintomas atípicos em pacientes com distúrbios psicopatológicos ou neurocognitivos genuínos, o que levanta a suspeita que possa existir simulação”.
Por outro lado, “o perfil de respostas reflete um padrão focado na apresentação de sintomas neurológicos ilógicos ou muito atípicos e sintomas relacionados com distúrbios de memória que são inconsistentes com padrões de comprometimento produzidos por disfunção ou dano cerebral real”, lê-se na pág. 15 do relatório da perita Renata Benavente produzido a 4 de dezembro de 2023.
A perita diz que existe a hipótese de Ricardo Salgado ter promovido com as suas respostas ao teste um “exagero de um possível déficite intelectual ao falhar questões simples de conhecimentos gerais”.
Refira-se que apesar dos marcadores biológicos indicarem o diagnóstico de Alzheimer, os testes para despistar situações de simulação são sempre feitos, segundo um perito forense consultado pelo Observador.
Isso significa que a questão está encerrada?
Não. Em primeiro lugar, a doença de Alzheimer é uma doença evolutiva. Logo, tem de ser vigiada de forma regular para confirmar a sua evolução. Por outro lado, a defesa de Ricardo Salgado já requereu formalmente a realização de uma nova perícia no âmbito dos autos do principal processo do caso Universo Espírito Santo.
A juíza presidente Helena Susano respondeu que seria tomada uma decisão sobre no momento apropriado.
Por outro lado, está pendente um recurso no Tribunal Constitucional no âmbito do processo mais avançado de Ricardo Salgado — no qual está pendente a execução de uma pena de prisão de oito anos por três crimes de abuso de confiança. O Constitucional ainda não decidiu se admite o recurso, seis meses após o mesmo ter sido apresentado. Se for admitido, serão analisadas as alegadas violações das garantias de defesa que a defesa de Salgado argumenta desde há vários anos.
Texto alterado às 13h02 do dia 19 de outubro com a introdução das respostas oficiais da Procuradoria-Geral da República que fora recebidas na redação do Observador durante a manhã desse mesmo dia.