“Meu Deus, alguém acredita no número 63? O prédio foi completamente destruído.” Nina Vernykh é russa. Tal como os seus compatriotas, é nas redes sociais — no VKontakte ou no Telegram — que expressa desconfiança sobre o número oficial de soldados russos mortos no ataque ucraniano a Makiivka, posteriormente revisto para 89. Passava um minuto da meia-noite e a televisão russa transmitia a mensagem de Ano Novo do Presidente Vladimir Putin. Numa localidade de Donetsk, onde parte do território ucraniano está ocupado por Moscovo, centenas de soldados reuniam-se na Escola Profissional n.º 19, na Rua Kremlevskaya. Nesse primeiro minuto de 2023, as ruas tremeram, os prédios abanaram e a escola ficou completamente destruída. Ainda há corpos por encontrar nos destroços.
O ataque foi confirmado por Kiev e pelo Kremlin. A Ucrânia avançou que o número de mortos rondaria os 400, enquanto que Moscovo deu um primeiro número exato de vítimas: 63 russos perderam a vida no ataque com HIMARS, um sistema norte-americano que lança seis rockets de uma só vez ou um MGM-140 ATACMS, um míssil superfície a superfície. Mais ao final do dia, a contagem oficial subiu para 89.
A admissão de vítimas, do lado da Rússia, é pouco usual. Neste caso, fica a dúvida se o número apresentado não peca por defeito, mesmo que os números ucranianos possam também pecar, mas por excesso. A perplexidade sente-se nos comentários de muitos milblogers russos — autores de blogs especializados em guerra —, alguns deles conhecidos propagandistas do regime de Putin. É o caso de Semyon Pegov, fundador do projeto WarGonzo.
“Apesar da declaração oficial do Ministério da Defesa, o número exato de vítimas ainda é desconhecido.” As palavras de Pegov, publicadas num vídeo de 5 minutos onde fala sobre a “tragédia de Makiivka”, correram as redes sociais russas. Não é para menos. Pegov é um dos mais conceituados milbloggers do país e recebeu, em novembro passado, um prémio das mãos de Putin — a Ordem da Coragem “pela bravura e abnegação demonstradas no desempenho do dever profissional”, enquanto correspondente de guerra.
“Na medida em que podemos confiar nas nossas fontes, que estão a trabalhar no local onde a tragédia aconteceu, elas ainda estão, neste momento, a desenterrar escombros. Infelizmente, o número de vítimas desta tragédia — o ataque de HIMARS aos quartéis dos militares recém-mobilizados e em serviço, incluindo a Guarda Nacional — pode ser maior”, afirmou Pegov perante a câmara.
As dúvidas de Pegov têm eco noutras figuras próximas de Putin. “Ainda não há números finais sobre o número de vítimas, já que muitas pessoas estão desaparecidas”, escreveu Igor Girkin, veterano de guerra russo, também conhecido por Strelkov.
No Ocidente, Girkin ficou conhecido por ser um dos três homens condenados pela queda do voo 17 da Malaysia Airlines na Ucrânia em 2014 (julgamento ao qual não compareceu). Na Rússia, é reconhecido pelo papel central que teve na anexação da Crimeia e por ser organizador de grupos militares na auto-proclamada República Popular de Donetsk, onde chegou a ser comandante militar de facto de todas forças separatistas do Donbass.
O nacionalista russo, como o próprio milblogger se descreve, não tem poupado críticas às Forças Armadas da Rússia pela sua “incompetência”. E é Girkin quem dá detalhes sobre o que se passou no número 48 da Rua Kremlevskaya. No edifício destruído “estava localizada a unidade N, quase toda composta por cidadãos mobilizados”, ou seja, russos sem o treino militar profissional.
“Quase todo o equipamento militar que estava perto do prédio, sem qualquer camuflagem, também foi destruído”, escreveu Girkin, detalhando que este não é o primeiro incidente do género, já que os batalhões ficam muitas vezes na zona de alcance dos HIMARS (300 km). E revela um último pormenor. “De qualquer forma, o número de mortos e feridos é de muitas centenas (há números aproximados de “200”, mas não os divulgarei).”
Em jeito de crítica, Girkin sublinha que os generais russos preferem ficar longe da linha da frente, fora do alcance dos mísseis do inimigo.
Versão oficial: havia demasiados telemóveis ligados
No relatório de 2 de janeiro, o Instituto para o Estudo da Guerra (ISW) analisa o que se passou em Makiivka, a 13 quilómetros da linha da frente, frisando que o “devastador ataque” gerou “críticas significativas” à liderança militar russa. Entre os mortos — “algumas fontes russas afirmaram que 600 militares estavam no prédio” — estão habitantes do oblast russo de Samara, escreve o ISW, citando o governador da região. Dmitry Azarov esteve esta terça-feira em Moscovo para discutir o ataque com membros do Ministério da Defesa russo e garantiu que serão dadas informações sobre cada soldado às respetivas famílias.
A questão que se debate na Rússia, nas redes sociais e nos blogs de guerra, é como é que foi possível acontecer um ataque assim. A primeira versão aponta o dedo aos próprios mobilizados: tinham demasiados telemóveis ligados no mesmo local, o que permitiu ao exército ucraniano detetar a sua presença. A imprensa russa, que cita autoridades de Donetsk, escreve que “o uso de telemóveis” foi a causa do ataque, já que permitiu, com a ajuda do Echelon — uma rede de vigilância global e de espionagem —, detetar a atividade e a localização das comunicações móveis.
“O Ministério da Defesa russo está, provavelmente, a tentar desviar a culpa pela sua fraca segurança operacional para os oficiais da República Popular de Donetsk e para as forças mobilizadas”, lê-se no relatório do ISW, que avança que as autoridades pró-russas da região disseram “que o ataque ocorreu quando soldados russos violaram a segurança operacional usando telemóveis pessoais, permitindo que as forças ucranianas conduzissem um ataque de precisão”.
A partir daí, segundo os analistas do ISW, jornais e bloggers controlados pelo Kremlin “ampliaram a afirmação, afirmando que as forças russas não deveriam subestimar a capacidade ucraniana de explorar as más práticas” nas linhas da frente. Foi, inclusive, pedido ao Kremlin que introduzisse “diretrizes mais rígidas sobre o uso de telemóveis” entre militares.
A seguir, foi pedida a cabeça de Denis Pushilin, líder da República Popular de Donetsk, e do comandante que decidiu usar a escola como quartel-general.
Versão não oficial: prédio era armazém de munição e estava ao alcance dos HIMARS
A ideia de que a culpa é de soldados mobilizados, com pouco ou nenhum treino militar, foi mal recebida por vários milbloggers e até por alguns políticos.
Foi o caso de Andrei Medvedev, vice-presidente da Duma, segundo a imprensa ucraniana. “Bem, claro. A culpa não é do comandante que mandou colocar o pessoal no prédio. Não é de alguém que não tratou da camuflagem. A culpa não é de quem não mandou os soldados para os porões. Ao que parece, um simples soldado com um telemóvel é o culpado pelo problema”, ironizou.
No Telegram, uma das maiores contas pró-guerra, Rybar, culpou o líder do regimento pelo sucedido, mas não por ter mantido os seus homens lado a lado com um armazém de munições. “A culpa do coronel reside apenas no facto de ele ter seguido cegamente as instruções das autoridades superiores e de não ter conseguido alterar a localização da unidade que lhe foi confiada de acordo com a realidade da linha da frente.”
Por outras palavras, abrigar soldados a 13 quilómetros da linha da frente quando se sabe que o inimigo está equipado com sistemas de mísseis que atingem alvos com precisão a uma distância de 300 quilómetros é uma aberração militar. Entre o Grupo Wagner, grupo de mercenários que lutam pela Rússia e que têm conseguido melhores resultados do que as Forças Armadas do país, as críticas foram rápidas.
“Milbloggers afiliados a Wagner afirmaram que o comando militar russo tornou mais fácil para as forças ucranianas atacar várias centenas de militares num local, apelidando de mentira a explicação sobre o uso do telemóveis.”, escreve o ISW no seu relatório diário. A explicação, para eles, é outra: “As forças russas armazenaram munição no porão da escola, permitindo o ataque devastador.”
Já Yevgeniy Prigozhin, o milionário que criou e financia o Grupo Wagner, fez um comentário vago sobre o sucedido. No Telegram publicou um poster da época soviética onde se lê a mensagem: “Até as paredes têm ouvidos, não fale”, no que parece ser uma alusão ao silêncio que os soldados deveriam manter, evitando comunicações.
“Estes profundos fracassos militares continuarão a complicar os esforços de Putin para apaziguar a comunidade russa pró-guerra e manter a narrativa dominante no espaço de informação doméstico”, escrevem os analistas do Instituto para o Estudo da Guerra. Para breve, o Presidente russo espera respostas que expliquem o sucedido. No imediato, foi criado um Comité de Investigação ao incidente com um curtíssimo prazo para trabalhar: os resultados têm de ser entregues até 6 de janeiro. Até lá, dificilmente todos os corpos terão sido retirados dos escombros da Rua Kremlevskaya.
Texto atualizado a 4 de janeiro com o número de mortos reconhecido pela Rússia, que subiu de 63 para 89.