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Na batalha “David vs. Golias”, a Ucrânia intensifica ataques em território inimigo. Linha entre vítima e agressor pode esbater-se?

A Ucrânia contornou limitações das armas do Ocidente e apostou no armamento próprio para atacar para lá das linhas inimigas. Está mais audaz, mas poderá esta estratégia ter consequências negativas?

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“Foi como o som de um trovão. Por um momento é como se estivéssemos num filme de terror.” Podiam parecer palavras que, ao longo de mais de um ano de guerra, têm sido repetidas por centenas de civis afetados pelos recorrentes ataques russos que atingem bairros residenciais, espaços culturais e até locais de culto um pouco por todo o território ucraniano. Mas o jogo inverteu-se. A frase é proferida por Andrei, um residente de Moscovo, depois de uma das mais recentes incursões com drones supostamente lançados pelas tropas de Kiev ter levado as linhas de conflito para lá da fronteira Rússia-Ucrânia, até à porta dos que na capital se julgavam em segurança.

É apenas um dos múltiplos ataques denunciados pelas autoridades russas como “atos de terrorismo” das tropas ucranianas e que se têm vindo a intensificar ao longo das últimas três semanas, numa altura em que a dinâmica das ofensivas e contraofensivas está a produzir resultados pouco visíveis. O que significam? Uma mudança na narrativa que o Kremlin quer passar de que o conflito se delimita nas fronteiras do território ucraniano, resume o major-general Arnaut Moreira, especialista em geopolítica, em declarações ao Observador.

“Não é possível ganhar esta guerra, como se está a ver, sem que a Rússia sinta que no seu território existe um alastramento do conflito e, portanto, a criação de condições de insegurança”, considera. A Ucrânia, defende, procura assim não vantagens de natureza militar, mas políticas, através de ações de tal maneira visíveis, mesmo que pouco significativas, que tornem impossível para o Kremlin disfarçar que o território russo está a ser alvo de ataque. E não é só na capital, mas também nas águas do Mar Negro sobre as quais mantinham até agora um domínio. Mas que tipo de ofensivas são estas, que estão a pôr a descoberto as fragilidades russas? E pode esta mudança de atitude de Kiev turvar as linhas entre “agressor” e “vítima” que, de modo geral, se estabeleceram após a invasão de 24 de fevereiro?

[Já saiu: pode ouvir aqui o primeiro episódio da série em podcast “Um Espião no Kremlin”. É a história escondida de como Putin montou uma teia de poder e guerra, do KGB à Ucrânia]

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O “exército de drones” ucranianos que atinge Moscovo para lá das linhas inimigas

A primeira madrugada do mês de agosto começou para os moscovitas em sobressalto. Um ataque com drones ucranianos, pelo terceiro dia consecutivo, danificou um edifício de escritórios na capital russa e obrigou mesmo ao encerramento, ainda que temporário, do aeroporto internacional de Vnukovo. Foram abatidos dois drones, segundo o Ministério da Defesa russo, e um terceiro foi hackeado e acabou por cair numa área não residencial. Não houve mortos ou feridos, ao contrário das mais mortais ofensivas russas com drones iranianos Shahed que ao longo dos últimos meses têm provocado inúmeras vítimas na Ucrânia.

Os ataques não são novidade, mas têm vindo a intensificar-se, apesar dos cerca de 400 quilómetros que separam Moscovo da fronteira com a Ucrânia. Esta quinta-feira, por exemplo, a Defesa russa disse ter destruído 11 destes equipamentos que sobrevoavam a Crimeia – península ucraniana anexada pelo Kremlin em 2014 – e outros dois que se dirigiam para Moscovo. Assumindo uma postura cuidadosa e silenciosa, não muito diferente da que antecedeu o início da contraofensiva, Kiev prefere não reivindicar responsabilidade na maior parte dos incidentes, ainda que não se mostre desiludida com os resultados. Na verdade, deixa claro, e a várias vozes, o que os russos podem esperar de futuro: “A Ucrânia está a ficar mais forte e a guerra está a regressar gradualmente ao território russo. É inevitável, natural e absolutamente justo”, como sublinhou há dias o próprio Presidente Volodymy Zelensky.

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Os ataques ucranianos no interior da Rússia estão a tornar-se mais comuns

Anadolu Agency via Getty Images

Porquê agora? Esta parece ser a questão que se impõe perante o crescente número de ataques por trás das linhas inimigas e que têm vindo a expor as fragilidades da Rússia. Há para isso uma explicação simples. Foi só agora, depois de mais de um ano de combates, que a Ucrânia conseguiu garantir as capacidades necessárias para lançar ataques no território russo sem para isso recorrer às armas enviadas pelo Ocidente, cuja utilização vinha com condições impostas pelos parceiros, explica o major-general Arnaut Moreira. “Os equipamentos ofensivos que têm sido fornecidos vêm todos eles com asteriscos, isto é, um conjunto de limitações à sua utilização. O Ocidente não pretende que as armas que entrega à Ucrânia acabem por provocar, por ação deliberada ou não, vítimas entre a população civil da Federação Russa”.

Com uma panóplia de equipamento moderno ocidental ao seu dispor, e com um alcance cada vez maior, a Ucrânia viu-se assim impossibilitada de o usar em ataques no interior da Rússia. Certos equipamentos, como alguns dos poderosos Himars (sigla para High Mobility Artillery Rocket System), chegaram mesmo a ser secretamente modificados para impedir que fossem usados contra o país vizinho, como chegou a noticiar o Wall Street Journal. A Ucrânia recorreu então à produção própria de drones, mas também à adaptação de equipamentos da esfera civil.

“Alguns drones custam milhares de dólares. Em alternativa, a Ucrânia foi buscá-los ao mercado civil — drones utilizados para diversão, para filmar eventos, que custam muito pouco dinheiro — e adaptou-os para transportarem cargas explosivas”, refere, acrescentando que existem neste momento mais de 10 mil operadores de drones formados. “É um número absolutamente extraordinário, um verdadeiro exército de drones“, sublinha. O futuro da Ucrânia está, em parte, nas mãos desta força, como já chegou a defender o ministro da Transformação Digital, que tem gabado as suas capacidades. É o caso dos drones R-18 que, avisou, podem “voar de Kiev a Moscovo e voltar”.

A ameaça “surpresa” que questiona a supremacia da Rússia no Mar Negro

Não é só Moscovo que está na mira dos drones ucranianos. São também os portos e a frota russa no Mar Negro. Foi o próprio Kremlin que precipitou esta ameaça quando, em meados do mês passado, anunciou a suspensão do acordo de cereais, que segundo a ONU permitiu a Kiev exportar em segurança cerca de 33 milhões de toneladas métricas destes alimentos e aliviar a fome em países como o Afeganistão, no Corno da África e no Iémen, e começou a lançar ofensivas sobre importantes portos ucranianos, como os da região de Odessa e de Mikolayiv.

Num só ataque, que atingiu um terminal ucraniano em Odessa um dia depois da retirada russa do acordo, foram destruídos mais de 60 mil toneladas de cereais, segundo denunciou o ministro da Agricultura ucraniano. Kiev prometeu retaliação e está a fazer valer a promessa. Há duas semanas dois drones de superfície não tripulados foram destruídos num ataque ao porto naval russo de Novorossiysk, à beira do Mar Negro. Dias depois um segundo ataque atingiu o navio petroleiro ‘Sig’, uma “poderosa” embarcação russa sancionada pelos Estados Unidos e que, segundo detalhou uma fonte do Serviço de Segurança da Ucrânia à AFP, transportava combustível para as tropas russas. É a própria soberania russa no Mar Negro que “está a ser questionada”, define o major-general Arnaut Moreira.

O especialista em geopolítica está entre os defensores da ideia de que o Ocidente e a NATO não estiveram suficientemente atentos ao que se passava há anos na região, permitindo que numa primeira fase a Rússia se considerasse “dona do Mar Negro” e mais tarde se sentisse no poder para definir as zonas de guerra, os corredores de seguranças e determinar um regime de inspeção de embarcações. Mas o domínio da frota russa, que tem tido um papel “absolutamente determinante” nos bombardeamentos com mísseis cruzeiro que levam o “inferno à Ucrânia”, está em risco.

“É muito novo, até quase de surpresa, que a ameaça sob a frota do Mar Negro venha exatamente pelo desenvolvimento de protótipos de natureza de drones de superfície, que a ameaça à supremacia da Federação Russa seja feito com equipamentos que custam apenas alguns milhares e poucos de dólares“, aponta. É que nestes veículos aéreos não tripulados — feitos de matérias sintéticas e pintados de escuro para reduzir o efeito de reflexo dos sistemas de radar, que atuam à noite, sobrevoando a centímetros da linha da água — seguem alguns quilos de explosivos que já se mostraram suficientes não para afundar, mas para causar estragos e prejuízos significativos que podem obrigar a imobilizar navios durante muito tempo.

"É uma guerra completamente assimétrica. Equipamentos de poucos milhares de dólares podem mandar para estaleiro, para reparação, navios que custam muitos milhões cada um."
Major-general Arnaut Moreira, especialista em geopolítica

A Ucrânia declarou guerra aberta à Rússia no Mar Negro e todos os navios, incluindo os que transportem petróleo para a Europa, são alvos a atingir como parte do esforço para enfraquecer a máquina de guerra do Kremlin. “Tudo o que os russos estiverem a mover para trás e para a frente no Mar Negro são para nós alvos militares válidos”, avisou Oleg Ustenko, conselheiro económico do Presidente ucraniano, numa entrevista esta semana ao jornal Politico. “Esta história começou com a Rússia a bloquear os corredores de cereais, a ameaçar atacar os nossos navios e destruir os nossos portos”, acrescentou, num sinal de que Kiev não tenciona abrandar as suas ofensivas. O próprio líder ucraniano avisou que a Rússia “poderá ficar sem navios” se os ataques aos portos ucranianos continuarem.

Arnaut Moreira destaca que estamos a assistir a “uma guerra completamente assimétrica”, em que equipamentos de poucos milhares de dólares podem mandar para reparação navios que custam muitos milhões cada um. “Isto é um desafio para o qual ninguém estava preparado. Nem a Federação Russa nem nenhuma marinha do mundo (…). Isto vai ser uma revolução para todas as marinhas, que estavam habituadas a reagir a outras marinhas, a serem confrontadas com um tipo de armamento ou um tipo de navio de superfície de grandes dimensões e não drones”.

Há uma linha que separa vítima e agressor. Pode a imagem da Ucrânia estar em risco?

A Rússia contabilizou no ano passado um número recorde de explosões no seu território que provocaram algumas dezenas de mortos e centenas de feridos. Não é claro, no entanto, quais resultaram de causas naturais e quais foram provocadas pela ação ucraniana ou de grupos de sabotadores anti-regime, que têm atuado principalmente em áreas junto à fronteira da Ucrânia e da Rússia. No total, foram 83 as explosões que atingiram edifícios residenciais, armazéns e carros em 2022, de acordo com um relatório do Ministério de Situações de Emergência, citado pelos jornais Moscow Times e Verstka. O número é significativo tendo em conta que, nos últimos dez anos, o número de casos registados pelas autoridades não ultrapassou os 25. Há dois anos, por exemplo, foram apenas 20.

Segundo noticiou o Moscow Times e o Verstka no final da última semana, do total contabilizado este ano cerca de metade envolveu bombas, rockets, minas e granadas. Entre estas inclui-se o ataque do ano passado à ponte de Kerch, que liga a península da Crimeia à Rússia, um ataque no qual a Ucrânia confirmou recentemente o envolvimento. Nas 83 explosões registadas morreram pelo menos 55 pessoas e 10.647 ficaram feridas, referem os jornais, notando que na última década nunca se registou mais de 500 vítimas anualmente entre mortes e feridos.

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Uma explosão provocada por um drone atingiu um edifício na capital russa

SOPA Images/LightRocket via Gett

Não sendo claro que vítimas das explosões, algumas das quais as autoridades russas atribuem às forças ucranianas outras a incidentes, resultam de ataques deliberados, certo é que se trata de um número residual quando comparado com os 9.287 civis mortos e 16.384 feridos na Ucrânia contabilizados pela Organização das Nações Unidas (ONU) no marco dos 500 dias de guerra. Esta diferença é precisamente o que leva vários especialistas a afirmarem que mesmo os ataques ucranianos em território russo não alteram a imagem da Ucrânia enquanto vítima da invasão russa, porque não se comparam em termos de escala.

“Acho que a maior parte das pessoas vai continuar a ver a Ucrânia como tal, uma vez que a Rússia está claramente a ocupar partes do território ucraniano e a provocar deslocamentos massivos, destruição e perda de vidas”, diz ao Observador Joanna Szostek, associada do programa Rússia e Eurásia, do think tank Chatham House. A investigadora, que conduziu uma extensa investigação sobre a Ucrânia e a Rússia, com foco nos média e opinião pública, considera porém que essa visão pode tornar-se “negativa” se ataques ucranianos como os que têm chegado até Moscovo provocarem um número substancial de baixas civis. “Isso pode minar a imagem da Ucrânia como um país que se está a defender legitimamente”, aponta.

De modo semelhante, Arkady Moshes, diretor do programa de investigação sobre a Rússia, vizinhança Oriental da UE e Eurásia, no Finnish Institute of International Affairs (Fiia), não tem dúvidas de que a a imagem da Ucrânia não vai sofrer. Quer no Ocidente, onde reúne um maior número de apoios, quer no Sul Global — que inclui a América Latina, África e a grande parte do continente asiático –, onde deverá manter as simpatias dos países. “A minha visão é muito simples: é uma batalha de David contra Golias”.

"A imagem da Ucrânia permanece a de um país que luta pela sua independência e sobrevivência. Isso não pode ser alterado.”
Arkady Moshes, investigador do Finnish Institute of International Affairs

O especialista em relações internacionais sublinha que, desde o início e do ponto de vista legal, é a Rússia que tem sido o Estado agressor e conduzido a uma escalada do conflito. “Vemos isso se ao olharmos para trás falarmos da anexação ilegal da Crimeia, mas é a mesma história agora. São as tropas russas que ocupam uma parte significativa do território ucraniano, que enviam todas as noites centenas de drones e dezenas de mísseis contra as pacíficas cidades ucranianas”.

A Ucrânia, refere, responde como pode e com o que pode, mas os danos que os drones ucranianos provocam em território russo “são incomparavelmente menores” em comparação com o que a Rússia faz. A imagem da Ucrânia, defende, permanece a de um país que luta pela sua independência e sobrevivência. “Isso não pode ser alterado”.

Ucrânia contornou “asteriscos” do Ocidente. Pode sofrer consequências?

A Ucrânia não vai procurar atingir na Federação Russa o setor populacional civil. Esta é a convicção do major-general Arnaut Moreira e é precisamente o cenário que o Ocidente procurava evitar ao impor limitações ao uso de certas armas. Não quer isto dizer que Kiev não vá causar estragos no país vizinho. “Vai certamente procurar infraestruturas ou prédios simbólicos ou instalações simbólicas ligadas ao Kremlin, como ministérios, sobre os quais possa fazer incidir um conjunto de ações”, antecipa.

Após mais de um ano de combates, a Ucrânia encontrou a solução para o problema de não poder atacar territórios russos com armas dos aliados ao desenvolver os seus próprios equipamentos, mas não quer isto dizer que tenha o seu apoio. Os Estados Unidos, o principal aliado, não se têm mostrado a favor da ideia. “Não estamos a encorajar ou a permitir que a Ucrânia ataque além das suas fronteiras. Não vamos enviar à Ucrânia sistemas de rockets que atinjam a Rússia”, chegou a escrever o líder norte-americano, Joe Biden, num ensaio publicado no New York Times.

Joe Biden e Volodymyr Zelensky, visita a memorial em Kiev a 20 de fevereiro de 2023

Presidência da Ucrânia

A retórica, porém, tem vindo a alterar-se, ainda que se mantenham as precauções. Os EUA têm vindo a equipar a Ucrânia com sistemas com sucessivo maior alcance e há pouco tempo mostraram-se favoráveis ao envio dos letais caças F-16 para a Ucrânia. Sobre se os ataques em território russo podem significar um travão no apoio do Ocidente, o especialista em geopolítica antecipa que não. “Os aliados, seja a NATO, os EUA ou outros não vão nunca dizer que a Ucrânia não pode atacar o território da Federação Russa, nunca vão tomar uma posição muito clara sobre esse assunto. Não vão dizer que Kiev está proibida de atacar, como também, em sentido contrário, não vão sugerir que a Ucrânia deve atacar o território da Federação Russa”, afirma.

“A Casa Branca até pode não ser a favor dos ataques da Ucrânia contra objetos no território internacionalmente reconhecido como russo, mas há um entendimento implícito de que só está a fazer o que pode para se defender. O apoio não vai parar por causa disso”, defende também Arkady Moshes.

Sobre uma potencial escalada do conflito, o especialista em relações internacionais assume que é uma possibilidade, mas que tem sido a Rússia a dar esse passo em inúmeras ocasiões. “Cada vez que um objeto civil ucraniano é atingido aumenta o apoio da opinião pública em relação à Ucrânia. Cada vez que as equipas de resgate estão a intervir e eles voltam a atacar nesse momento [tática que a Rússia tem usado frequentemente], isso prejudica a imagem russa”.

As relações russas em mínimos históricos

Desde o início da invasão, que o Kremlin continua a descrever apenas como uma “operação militar especial”, a Rússia tem pintado Kiev como um regime de “nazis” que oprime os povos nos territórios separatistas, como o Lugansk e Donetsk, que anexou unilateralmente no ano passado. Os ataques ucranianos na Federação Russa tornam-se, assim, argumentos para defender a tese de uma Ucrânia enquanto agressor, que as autoridades tentam incutir nas gerações mais novas. Foi por isso que, com o aproximar do novo ano letivo escolar, anunciaram na última semana um novo manual de História para transmitir os objetivos da guerra, que dizem ser a “desmilitarização e a desnazificação”. Estas narrativas, porém, parecem ter pouco efeito fora da Rússia, como têm vindo a defender vários especialistas.

“A tentativa russa de pintar Kiev como um agressor só funciona realmente na própria Rússia, onde a máquina de propaganda russa tem vindo a pintar o país e os russos como vítimas durante anos”, começa por elaborar Joanna Szostek, também professora de comunicação política na Universidade de Glasgow. O maior risco poderá estar em algumas audiências na Europa, que garante não passarem de minorias, mas que estão mais recetivas às narrativas russas sobre a guerra. “Os ataques ucranianos no país vizinho até podem reforçar visões negativas sobre a Ucrânia nesses grupos, mas duvido que mudem a perceção generalizada“.

“Os ataques ucranianos no país vizinho até podem reforçar visões negativas sobre a Ucrânia nesses grupos, mas duvido que mudem a perceção generalizada.“
Joanna Szostek, investigadora associada do think tank Chatham House

“As pessoas conhecem os factos. Sabem quem começou tudo isto em 2014 [ano da anexação da Crimeia e do início dos confrontos no Donbass] e em 2022”, acrescenta Arkady Moshes. Um importante indicador disso, lembra o investigador do Finnish Institute of International Affairs, são as votações na Assembleia Geral da ONU para condenar a invasão da Ucrânia, em que Moscovo não consegue do seu lado mais do que cinco países — geralmente a Bielorrússia, Coreia do Norte, Síria, Eritreia ou Nicarágua. Mas a prova mais recente e evidente é mesmo a cimeira que juntou no fim de semana na cidade de Jeddah, na Arábia Saudita, 40 delegações oriundas de todos os continentes para discutir uma solução para a guerra na Ucrânia.

Se a Rússia ficou fora da lista de convites, marcaram presença países que tradicionalmente são apontados como mais próximos de Moscovo, como é o caso da China e da Índia, bem como países que mantêm relações de parceria, através do BRICS, por exemplo, o Brasil. “Mesmo que não tenham ido para aceitar completamente uma proposta de paz de dez pontos de Zelensky, concordaram participar num esforço diplomático que não inclui a Rússia, uma discussão que passa por cima da sua cabeça. Isto mostra a real atitude de parceiros russos quanto ao que se está a passar“, aponta Arkady Moshes.

epa10638696 A handout photo made available by the Saudi Press Agency (SPA) shows Deputy Governor of Saudi Arabia's Makkah Region, Prince Badr bin Sultan bin Abdulaziz Al Saud (R) greeting Ukrainian president Volodymyr Zelensky upon his arrival to attend the 32nd Arab League summit, in Jeddah, Saudi Arabia, 19 May 2023. Zelensky is on his first-ever visit to Saudi Arabia.  EPA/SAUDI PRESS AGENCY HANDOUT  HANDOUT EDITORIAL USE ONLY/NO SALES

A cimeira na Arábia Saudita juntou 40 delegações oriundas de todos os continentes para discutir uma solução para a guerra na Ucrânia

SAUDI PRESS AGENCY HANDOUT/EPA

Os exemplos não se ficam por aí. A própria reação de vários países africanos à saída russa do acordo de cereais do Mar Negro é outro indicador. Na cimeira Rússia-África, na última semana de julho, vários líderes foram vocais nas suas críticas, apesar do anúncio do Presidente Vladimir Putin de oferecer cereais gratuitos a seis países. O líder da União Africana, Azali Assoumani, considerou que as promessas “não são suficientes” e apelou ao fim da guerra na Ucrânia.

Não foi o único. O chefe de Estado do Congo, Denis Sassou Nguesso, afirmou que a iniciativa merece “a maior atenção” e fez um apelo “urgente” à paz. Também da África do Sul, país que vai receber no final de agosto a cimeira dos BRICS, em que Putin poderá não estar presente devido ao mandado de detenção do Tribunal Penal Internacional por alegados crimes na Ucrânia, veio uma mensagem clara. “Sentimos que temos o direito de pedir paz. O conflito em curso também nos afeta negativamente”, sublinhou na altura o Presidente Cyril Ramaphosa.

“É um sinal de que as simpatias pela Rússia são bastante baixas na maioria dos países. A disposição para estar ao lado da Ucrânia ou do direito internacional é mais forte do que a disposição de fazer alguns acordos económicos com a Rússia”, refere Moshes.

Zelensky “não é o melhor diplomata do mundo”, mas as suas críticas não abalam apoio Ocidental

Se o nível de apoio russo atingiu valores mínimos, a Ucrânia faz de tudo para reforçar as atuais relações e expandi-las. Mas todo o apoio conta e o líder ucraniano é, muitas vezes, crítico na forma como fala daqueles que não distinguem de forma clara entre o país agressor e agredido na guerra. Ao homólogo do Brasil já foi deixando alguns recados nesse sentido: “Espero que tenha uma opinião própria. Não me parece necessário que os seus pensamentos coincidam com os pensamentos do Presidente Putin”, atirou numa entrevista à agência EFE, referindo-se ao momento em que Lula da Silva o acusou “de ser tão responsável” pelo início do conflito como Vladimir Putin.

epa10760829 A handout photo made available by Agencia Brasil showing Brazilian President Luiz Inacio Lula da Silva during an announcement at the Planalto Palace in Brasilia, Brazil, 21 July 2023. Lula da Silva spoke about a set of measures to strengthen public security, including a specific plan to combat the growing violence in the Amazon, restrictions on the sale of weapons and more drastic regulations against armed attacks in schools.  EPA/Marcelo Camargo / HANDOUT  HANDOUT EDITORIAL USE ONLY/NO SALES/NO ARCHIVES

O Presidente do Brasil, Lula da Silva, acusou Zelensky "de ser tão responsável" pelo início do conflito como Putin

Marcelo Camargo / HANDOUT/EPA

Declarações com estas são já características do discurso de Zelensky, mas podem correr o risco de afastar alguns aliados? A investigadora do Chatham House Joanna Szostek considera que os principais parceiros da Ucrânia — Estados Unidos, Reino Unido, a União Europeia — vão permanecer fortes no seu apoio a Kiev, independentemente do que Zelensky possa dizer. A sua convicção é a de que este cenário se mantenha pelo menos até às próximas eleições norte-americanas, que “têm o potencial de vir a mudar o jogo consoante o vencedor”. Na corrida pelos republicanos estão nomes como o ex-Presidente Donald Trump e o governador da Flórida, Ron DeSantis, que não estão dispostos a manter o nível de apoio a que a administração de Joe Biden habituou a Ucrânia.

“Apoiar a defesa da Ucrânia é dos interesses dos seus aliados e qualquer tipo de vitória da Rússia seria desastrosa também para a sua segurança”, refere, notando contudo que algumas das palavras de Zelensky já têm provocado e podem continuar a provocar alguma “irritação” nos parceiros. Exemplo disso foi o episódio que valeu retorno do Reino Unido e dos Estados Unidos na cimeira de Vilinius, na Lituânia, numa reação à frustração da Ucrânia por não ver passos concretos para se juntar à Aliança Atlântica. Ben Wallace, ministro da Defesa britânico, deixou o recado de que Kiev deve deixar de tratar os parceiros como uma espécie de “Amazon”, enquanto o Conselheiro Nacional de Segurança dos EUA, Jake Sullivan, argumentou que “o povo norte-americano merece alguma gratidão”.

"Se alguém diz, por exemplo, que a guerra deve ser congelada onde as tropas estão agora, isso significa estar a apoiar a entrega do território ucraniano à Rússia, algo que o Presidente da Ucrânia não pode aceitar."
Arkady Moshes, investigador do Finnish Institute of International Affairs

Joanna Szostek recusa a existência de linhas vermelhas sobre o discurso de Zelensky e da Ucrânia e diz apenas que deve vigorar “o bom senso comum da diplomacia”. De modo semelhante, Arkadys Moshes desvaloriza a hipótese de as palavras de Zelensky ou das principais figuras da diplomacia ucraniana poderem vir a afastar aliados. “Não devemos ser muito sensíveis sobre isso porque os países e as lideranças políticas discordam e debatem publicamente temas sobre as quais discordam”. Argumenta mesmo que há uma lógica por trás do discurso do líder ucraniano.

“Se alguém diz, por exemplo, que a guerra deve ser congelada onde as tropas estão agora, isso significa estar a apoiar a entrega do território ucraniano à Rússia, algo que o Presidente da Ucrânia não pode aceitar”, afirma, acrescentando que isto se trata apenas de expressar um facto e não uma opinião. Apesar disso, destaca que o líder ucraniano pode, pelo contexto atual, expressar-se de forma diferente dos diplomatas clássicos. “O Presidente Zelensky pode até não ser o melhor diplomata do mundo, mas por outro lado é o líder de um país em guerra”.

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