Aprender a resistir às “forças repressivas“, estudar o enquadramento legal dos crimes que podem cometer e até aprender dicas úteis para o momento em que forem detidos ou identificados pela polícia. Os ativistas pelo clima portugueses que estão dispostos a infringir a lei nas suas manifestações mais radicais têm, desde este ano, um manual elaborado pelo movimento ambientalista Climáximo, elo de ligação do Extinction Rebellion em Portugal, para os ajudar na preparação de protestos que possam terminar com a detenção dos ambientalistas — como já aconteceu uma vez em Portugal, em setembro, e várias vezes em países como o Reino Unido ou a Alemanha.
Com o título “Manual de Apoio Legal”, o documento foi feito por advogados e juristas amigos do movimento “pela justiça climática”, está publicado no site do Climáximo e propõe-se “dar algum apoio e dicas às pessoas que possam querer participar em ações de desobediência civil“. Logo na introdução, o manual apresenta o adversário: as autoridades. Ou, como lhes chama o documento, as “forças repressivas”. Lê-se: “Não podemos garantir que todas as nossas respostas para todos os casos sejam ‘à prova d’água’ porque a repressão nem sempre é previsível e depende das tácticas das forças repressivas”. Mais à frente, acrescenta-se: “Temos que dizer desde logo que, muitas vezes, a polícia e a segurança não conhecem o enquadramento legal ou escolhem ignorá-lo“.
Depois, o documento continua com conselhos gerais aos manifestantes, descreve o enquadramento legal de uma dezena de crimes que podem ser cometidos durante os protestos e termina com um capítulo exclusivamente dedicado à “possibilidade de detenção”.
PSP retira à força ativistas do clima que cortaram Av. Almirante Reis em Lisboa. Há um detido
Ao Observador, um dos membros do Climáximo — movimento que se apresenta como apartidário, mas que tem ligações ao Bloco de Esquerda, que publica, por exemplo, as suas ações no seu portal de notícias, o Esquerda.net — explica que o manual foi criado já este ano e que as ações de desobediência têm sempre, como base, o objetivo de mudar as lei, que consideram erradas.
“Nós queremos obedecer a outro tipo de leis, que são superiores às escritas por empresas e governos. Queremos obedecer a leis que achamos que são humanistas”, diz Sinan Eden. É por isso que, garante, é necessário, por vezes, “parar o dia-a-dia das pessoas” — com cortes de estrada, por exemplo —, mas isso é “uma expressão de amor e cuidado” porque “é preciso entender que é preciso mudar”.
“Nunca falar com a polícia”
O primeiro conselho deixado aos ativistas que levem a cabo ações de desobediência civil — que incluem marchas, ocupação de edifícios, interrupção de eventos, entre outros — é o de que devem “optar pelo silêncio“.
“Nunca falar com a polícia” é o conselho, mas com uma exceção: “Se achares que isso te acalmaria, podes ponderar limitar-te a repetir uma frase pré-definida durante a ação (dependendo da ação)”. Antes de elencar os vários crimes de que os ativistas podem ser acusados com as ações de protesto, o manual apela à não-violência e ao respeito pelo património. “Evitar comportamentos violentos ou comportamentos de resistência” e, “no caso de stencil, graffitis, colagens de cartazes: evitar arquitectura histórica, monumentos, locais de culto”.
O manual inclui ainda conselhos relativos a um dos tipos de ações mais comuns entre os ambientalistas: a ocupação de edifícios. Em Portugal, ativistas do Climáximo e de outros grupos que gravitam em torno deste grupo já invadiram um jantar-comício do PS, a sede da Nestlé, um hotel lisboeta onde o ministro do Ambiente discursava, os estúdios da CMTV, a redação do Observador, uma loja da H&M e a sede da EDP.
No documento, porém, o Climáximo alerta que os ativistas que invadam edifícios devem “optar por não obstruir as entradas do edifício, pois isso pode ser interpretado legalmente como uma forma de ‘rapto’ (das pessoas que se encontrem dentro do edifício)/privação de liberdade”. Além disso, “no caso de ações que incomodam privados”, os ativistas devem “considerar a opção de fazer a ação a partir do exterior, no passeio público” — evitando assim ser acusados de invasão de propriedade privada.
Segue-se, no manual, uma análise extensiva do Código Penal relativamente aos vários crimes que os ativistas podem cometer durante as ações de protesto. O segmento começa com um alerta: “No geral, quando se fazem ações diretas, e dependendo do teor das ações previstas, o crime de desobediência previsto no artigo 348º Código Penal (CP) será (quase) sempre tido em consideração por parte de forças de autoridade/justiça. Tem em atenção que as consequências se agravam no caso da pessoa ter histórico”.
O crime de desobediência, avisa o manual, pode “resultar numa pena de prisão até 1 ano, ou pena de multa até 120 dias“.
O documento avisa ainda os manifestantes de que “grupos de pessoas a difundirem mensagem política na rua sem terem avisado as autoridades com 48 horas de antecedência podem receber ordem de se retirarem ou dispersarem” — e, se não cumprirem, podem ser acusados do crime de desobediência. Entre os crimes elencados no manual encontram-se a introdução em lugar vedado ao público (no caso da invasão a edifícios); a perturbação do funcionamento de órgão constitucional (caso os edifícios sejam públicos); a coação contra órgãos constitucionais (se houver violência); o dano simples ou qualificado (no caso de pinturas e afixação de cartazes); a injúria (em situações de insultos às autoridades); a devassa da vida privada e a captação de gravações e fotografias ilícitas (quando os ativistas filmam ou fotografam e divulgam as imagens das ações de protesto em que sejam visíveis outras pessoas sem estarem em espaços públicos).
Sobre estes últimos crimes, o manual deixa uma nota importante para os ativistas estarem atentos: “Durante uma ação, os agentes da polícia não podem tirar o teu telemóvel ou copiar dados“.
“É muito provável que sejas constituído arguido”
A última secção do manual de apoio legal é dedicada ao contacto direto entre os manifestantes e a polícia — nomeadamente a possibilidade de os ativistas serem detidos para identificação. “Ninguém pode ser detido para identificação sem que existam fundados indícios de que a mesma poderá ter praticado um crime”, começa por alertar o documento, acrescentando que os agentes “têm de identificar-se como tais” e comunicar os “direitos e as circunstâncias concretas” na origem da necessidade de identificar alguém. Porém, continua o manual, pode ser necessário que o ativista se desloque à esquadra caso não seja possível identificá-lo apenas através de um documento de identificação. Nestas situações, o documento avisa que pode ser necessário realizar exames às impressões digitais ou ir com os agentes ao local onde os documentos estejam, mas sublinha que ninguém pode estar detido mais de seis horas para efeitos de identificação (ou três horas no caso de menores entre os 12 e os 16 anos).
Em caso de detenção, o manual aconselha os ativistas a “nunca resistir” e a “colaborar educada e pacientemente”, mantendo a calma e, acima de tudo, nunca prestar declarações. “Tens direito a fazer um telefonema, pelo que deves contactar alguém que saiba o que fazer, idealmente um advogado ou alguém da organização que possa agilizar o que for necessário”, lê-se no documento.
“Vai-te ser solicitado que prestes declarações”, continua o manual, avisando os ativistas: “Em princípio nunca deves prestar declarações“. A exceção é se estiver presente um “advogado que o recomende”. “Na dúvida, deves declarar que não pretendes prestar declarações”, continua o documento, antes de deixar outro alerta: “É muito provável que sejas constituído arguido. Se isso acontecer, ser-te-ão apresentados 3 documentos (constituição de arguido, termo de identidade e residência e informações sobre o apoio judiciário). Deves ler atentamente estes documentos, com especial atenção para os elementos de identificação, e deves assinar”.
O manual fecha com uma mensagem de alento aos ativistas que se preparem para integrar ações de protesto que possam ir contra a lei: “A desobediência civil é uma arma política, uma táctica e uma estratégia onde o limite das leis é permanentemente testado, o que significa que assumimos que as causas que defendemos são importantes o suficiente para que consideremos quebrar algumas leis hoje vigentes na sociedade“.
Mas estas não são as únicas dicas que o Climáximo deixa aos ativistas. Num outro documento, dedicado aos “grupos de afinidade” — pequenos grupos em que os ativistas se organizam para facilitar a execução dos protestos —, o movimento aconselha os integrantes de cada grupo a partilharem os dados pessoais uns com os outros “para o caso de lesão ou detenção” e a escreverem no corpo (porque um “papel pode ser perdido ou confiscado”) o número de telefone do advogado ou jurista a quem pretendem telefonar no caso de serem detidos.
O modelo dos “grupos de afinidade” foi testado recentemente no acampamento Camp-in-Gás, uma iniciativa contra a prospeção de gás natural que decorreu na freguesia de Bajouca, em Leiria, e consiste na criação de “grupos de confiança” compostos por dois ou mais pares de “buddies” — que devem ficar sempre juntos durante as ações de protesto. “Se forem do mesmo sexo é mais provável ficarem detidas juntas”, sublinha o guia, que, ao mesmo tempo, aconselhava os pares que compõem os grupos de afinidade a acordar “sinais” para usar durante os protestos e a aproveitar as ocasiões do acampamento Camp-in-Gás para praticar as “decisões por consenso” — por exemplo, “vamos dormir ou continuar na festa?”.
Além disso, cada grupo de afinidade é aconselhado a nomear um porta-voz, ou delegado, para participar nos plenários realizados antes das manifestações, com o objetivo de fazer chegar a informação a todos os participantes nos protestos.
“Queremos obedecer a outro tipo de leis”
Estes documentos, frequentes em movimentos ambientalistas noutros países, são uma novidade em Portugal. Segundo explicou ao Observador o ativista Sinan Eden, membro do Climáximo, “um dos elementos do ADN do movimento é normalizar a desobediência civil como ferramenta” na luta climática. “Sempre que fazemos uma ação, preparamos os materiais, preparamo-nos politicamente e também em termos legais para qualquer consequência que possa ter“, sublinha este ativista, de nacionalidade turca, que se mudou em 2011 para Portugal para fazer um doutoramento em Matemática em Lisboa.
O manual surgiu no princípio de 2019, durante os preparativos para a “Semana da Rebelião”, uma semana em abril em que se multiplicaram os protestos e na qual se incluiu a célebre invasão no jantar-comício do PS.
“Mais recentemente, em 2019, começámos a convidar outras pessoas a tomar ação e pensou-se em fazer um manual antes da Semana da Rebelião de abril. O Climáximo fez uma ação em que entrámos na CMTV em direto e interrompemos uma discussão que não tinha nada a ver com justiça climática. Outras pessoas, do movimento Aterra, fizeram-no no jantar do PS. Na preparação disto, produzimos um documento, que depois foi melhorado na preparação do Camp-in-Gás, que organizámos em Bajouca, e em setembro fizemos algumas melhorias”, explicou Sinan Eden, esclarecendo que o manual foi “preparado por advogados que fazem parte ou são amigos do movimento, em coordenação com quem faz as ações, para explicarmos as coisas que podiam acontecer”.
“Este tipo de documentos existe a nível internacional“, continua o ambientalista, assumindo que noutros países, como a Alemanha ou o Reino Unido, são “mais detalhados” — até porque, ali, os movimentos ambientalistas têm dimensões maiores. O movimento internacional Extinction Rebellion, por exemplo, tem mesmo um departamento de apoio a detidos, em cuja página se sublinha como “a rebelião requer sacrifício” e se explicam todos os passos pelos quais um ativista deve passar para se preparar para ser detido — incluindo mesmo uma “divertida infografia de preparação para a detenção“.
A premissa é sempre a mesma: a desobediência civil com o objetivo de mudar a lei. “As leis são feitas por seres humanos, num contexto social e político de relações de poder. A escravatura era legal, a segregação era legal, o racismo era legal, muitas coisas que aconteceram eram legais. Umas pessoas lutaram contra estas leis, contra estas condições sociais e jurídicas. Nós queremos obedecer a outro tipo de leis, que são superiores às escritas por empresas e governos. Queremos obedecer a leis que achamos que são humanistas, que permitem a manutenção da civilização humana. Se existem hoje leis que disponibilizam espaço legítimo para as empresas destruírem um planeta inteiro, devem ser combatidas“, considera o ambientalista.
A compreensão da crise climática, defende Sinan Eden, pode ser suficiente para que haja ativistas dispostos a ir para a prisão. “Quando dizemos que a nossa casa está a arder, que temos cinco ou dez anos para mudar, temos mesmo. É preciso entender que é preciso mudar. É uma indignação que se produz nas pessoas”, sublinha. Embora os protestos em Portugal não tenham atingido a dimensão de outros em países como o Reino Unido, a verdade é que “desde abril já houve pessoas que foram identificadas”, uma foi detida em setembro e ainda há processos em curso. “Estes processos demoram muito tempo, ainda há coisas de abril que estão em curso“, diz Sinan Eden, detalhando que não tem números concretos devido à descentralização da organização das manifestações.
Embora o Climáximo afirme privilegiar estilos de manifestação que não afetem diretamente a vida quotidiana das pessoas, Sinan Eden admite que em certas circunstâncias é necessário “parar o dia-a-dia das pessoas” e que isto é “uma expressão de amor e cuidado”. “Quando uma casa está a arder, tudo o que as pessoas estão a fazer deve ser parado, porque tem uma irrelevância comparado com o que está a arder. A partir do momento em que a pessoa percebe a urgência, estas analogias ficam menos analogia e ficam mais verdadeiras. Eu não fico a jogar computador se houver um incêndio ao pé de minha casa. Sou avisado para sair de casa e se não sair, fico queimado”, defende o ambientalista. Por isso, considera Sinan Eden, “parar o dia-a-dia das pessoas é a forma de as engajar neste processo, numa discussão que tem de ser feita. É uma expressão de amor e cuidado. É como haver um incêndio e ir ao vizinho avisar.”
Com isto em mente, o risco de infringir a lei é elevado. É por isso que os movimentos ambientalistas assumem a missão de preparar os seus ativistas para os potenciais riscos que os protestos podem envolver. “Estamos a fazer uma coisa assustadora, não vamos fingir que não é. Não somos super heróis, somos pessoas com medos. Ter um grupo ajuda a ter uma rede de apoio imediato durante a ação”, explica Sinan Eden, valorizando a existência dos “grupos de afinidade” e dos “buddies“, ferramentas que procuram juntar pessoas com características semelhantes. “Os que conseguem correr e os que não conseguem correr; os mais calmos e os mais irritáveis. Este grupo pode ser permanente ou temporário: há grupos de afinidade que existem há anos e que vão às várias ações. Nós, no Camp-in-Gás, fizemos temporariamente, mas eles podem continuar.”
A disponibilidade dos ativistas pelo clima para serem detidos, ou mesmo presos, pelas causas que defendem não é uma novidade. Basta um par de exemplos para mostrar como, nas últimas décadas, os protestos contra as alterações climáticas têm chegado com frequência ao ponto de as autoridades retirarem à força os manifestantes: dos vários protestos da Greenpeace que resultaram na detenção de vários ativistas às manifestações em zonas de segurança de aeroportos, passando pela massiva detenção de 230 manifestantes durante a cimeira de Copenhaga em 2009, os célebres atos de desobediência civil têm tido um lugar cada vez mais central nos protestos populares no século XXI. Mais recentemente, a detenção de oito pessoas, em Londres, ligadas ao movimento Extinction Rebellion — depois de vários ativistas se terem colado aos comboios, perturbando o funcionamento do metro da capital britânica — levantou de novo a questão: até onde estão dispostos a ir os ativistas pelo clima?
O movimento descentralizado com ligações ao Bloco de Esquerda
É certo que, em Portugal, o histórico de detenções de ativistas não é extenso. Este ano, manifestantes ligados ao Extinction Rebellion cortaram a avenida Almirante Reis, em Lisboa, e tiveram de ser retirados à força pela polícia. Um deles acabou por ser detido. Mas os ativistas portugueses também estão preparados para a “desobediência civil” — e na maioria das ações de protesto é possível identificar elementos ligados ao Climáximo.
É um dos movimentos ambientalistas mais ativos em Portugal e, embora esteja quase sempre em confronto com a polícia, pode acontecer que os ambientalistas rebeldes sejam encontrados a colaborar com as próprias autoridades, como foi o caso da organização da chegada da ativista sueca Greta Thunberg a Lisboa.
O grupo, composto exclusivamente por voluntários, é uma das poucas organizações que é possível identificar no meio de um universo pouco organizado e completamente descentralizado. Por um lado, o Climáximo é um dos grupos que seguem em Portugal as indicações do movimento internacional Extinction Rebellion — que funciona também ele de forma descentralizada. Ou seja, o movimento tem um conjunto de princípios, recomendações e formas de ação que depois podem ser replicadas livremente por grupos locais, que usam inclusivamente o símbolo do Extinction Rebellion, sem que a estrutura central tenha conhecimento das ações de protesto levadas a cabo por cada grupo de ativistas. A título de exemplo, o XR Portugal (a versão portuguesa do Extinction Rebellion) tem um site alojado na plataforma do Climáximo.
O mesmo acontece depois a nível nacional. O Climáximo organiza várias ações de protesto ao mesmo tempo que desafia outras associações e cidadãos a título individual a levarem a cabo as suas próprias manifestações pelo clima, fornecendo recursos de apoio e depois partilhando fotografias e vídeos de todo o tipo de protestos nas suas redes sociais. É por isso que uma visita à página de Facebook do Climáximo revela partilhas de imagens relativas a dezenas de ações de protesto, das quais muitas não foram organizadas diretamente pelo grupo.
Além de ser um dos mais relevantes movimentos portugueses associados ao ambientalismo radical, o Climáximo tem também várias ligações ao Bloco de Esquerda. Apesar de se assumir como um movimento apartidário, o grupo conta com vários elementos que são membros do Bloco de Esquerda — entre os quais o dirigente João Camargo, um dos mais ativos do Climáximo. Em declarações ao Observador em abril, João Camargo negava a existência de uma “ligação direta” entre o movimento e o partido. Mas outra ligação parece ser evidente: a divulgação das ações de protesto e invasões no portal de notícias Esquerda Net, do Bloco de Esquerda.
Em abril, o Observador dava conta de uma série de publicações no site Esquerda Net relativas às manifestações, invasões e concentrações organizadas pelo Climáximo. Mais recentemente, o Esquerda Net publicou uma série de reportagens feitas em Madrid, na “contracimeira” que decorreu nas ruas da capital espanhola simultaneamente à COP25 — focadas exclusivamente na viagem e participação dos ativistas do Climáximo nos protestos.