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Foi numa colónia penal na localidade de Iamália-Nenétsia, no Círculo Polar Ártico, que o principal opositor ao regime russo, Alexei Navalny, passou os últimos dias da sua vida. O desaparecimento do dissidente político que mais incomodou o Presidente russo motivou uma reação de vários líderes estrangeiros que responsabilizaram Vladimir Putin pelo sucedido. A morte do homem de 47 anos já saiu das fronteiras da Rússia e causou uma onda de solidariedade em todo o mundo — aliás, em várias capitais realizaram-se, na tarde desta sexta-feira, marchas em memória daquele que foi o líder da oposição do regime russo.
No Kremlin, por mais estranho que pareça, reina algum desalento. Várias fontes ligadas à presidência russa contaram ao jornal independente Meduza que a morte de Alexei Navalny terá um “efeito extremamente negativo” na imagem da Rússia entre os países do Ocidente. “O Presidente vai ser chamado ditador e assassino outra vez“, desabafa uma fonte, que considera que o desaparecimento do opositor prejudicará os esforços de Moscovo — como a entrevista de Vladimir Putin ao antigo apresentador da Fox News, Tucker Carlson — em aproximar-se de algum público do Ocidente.
A notícia da morte de Alexei Navalny acontece numa altura em que o Congresso norte-americano está a debater um pacote de ajuda que — a ser aprovado — vai alocar 60 mil milhões de dólares (cerca de 56 mil milhões de euros) para a Ucrânia, uma ajuda essencial para o esforço de guerra de Kiev. Apoiado pelo setor mais à direita do partido, o líder dos republicanos na Câmara dos Representantes, Mike Johnson, tem bloqueado a iniciativa.
Contudo, após a morte de Alexei Navalny, o bloqueio pode terminar. O Presidente norte-americano, Joe Biden, frisou novamente esta sexta-feira no argumento que a “História está a julgar” os republicanos por obstaculizarem a aprovação do pacote de ajuda financeiro. E vários setores mais moderados do partido já vieram a público pedir que seja dada luz verde ao apoio a Kiev.
Ainda que possa ter um efeito nos Estados Unidos (e também no seio da União Europeia), a situação na linha da frente da guerra não deverá alterar-se. Em declarações ao Observador, Volodymyr Dubovyk, diretor e investigador do Centro de Estudos Internacionais de Odessa, acredita que a morte do principal opositor russo “não muda nada da guerra”. Não obstante, os ucranianos também não olhavam para Alexei Navalny como um aliado: “Não era definitivamente visto como um amigo da Ucrânia pelos ucranianos. Ele era visto como um tipo de marca diferente do nacionalismo russo”, realçou o docente universitário ucraniano.
O abalo no mundo ocidental e as críticas norte-americanas
Joe Biden confessou “não estar surpreendido, mas revoltado” pela morte do opositor. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, disse tratar-se de um “lembrete sombrio” da natureza do regime russo. O chanceler alemão, Olaf Scholz, sublinhou que esta é uma prova de que a Rússia se afastou de um rumo “democrático há muito tempo”. O chefe de Estado ucraniano, Volodymyr Zelensky, assinalou que o líder russo “faz tudo para ficar no poder”, incluindo “matar quem quer seja”. Restam poucas dúvidas de que o Kremlin está a ser duramente criticado pela morte do dissidente político.
Nos Estados Unidos, a morte do opositor russo ganhou uma maior amplitude. Por vários motivos: as primárias republicanas, a dura reação da Casa Branca, o impasse sobre o pacote de ajuda financeiro para a Ucrânia, um clima de pré-campanha entre Joe Biden e o ex-Presidente Donald Trump e as declarações do magnata no último fim de semana, em que antigo chefe do Estado disse que “encorajaria” Moscovo a invadir um Estado-membro da NATO que não cumprisse com as metas financeiras da aliança.
A republicana Nikki Haley, que defronta o antigo Presidente nas primárias, não poupou o adversário. Na sua conta pessoal do X (antigo Twitter), a antiga governadora da Carolina do Sul acusou Vladimir Putin de ter matado o opositor. “O mesmo Putin que Donald Trump aplaude e defende“, insinuou, lembrando ainda as palavras do magnata sobre o chefe de Estado russo de que não “via Putin a matar pessoas”.
Continuando ao ataque, Nikki Haley confessou ter estranhado que Donald Trump “não tenha dito uma palavra” sobre a morte de Alexei Navalny, principalmente após o magnata ter dito que “encorajaria Putin a invadir os aliados”. “Ele fez, no entanto, mais de vinte publicações nas redes sociais sobre o seu drama legal e sondagens falsas”, notou a republicana. Na Truth Social, rede social que detém, o ex-Presidente nunca mencionou diretamente o nome do opositor russo.
Putin did this. The same Putin who Donald Trump praises and defends.
The same Trump who said:
“In all fairness to Putin, you’re saying he killed people. I haven’t seen that.” https://t.co/o1v3wBz1t7— Nikki Haley (@NikkiHaley) February 16, 2024
Entre os republicanos, surgiram igualmente algumas vozes críticas de Vladimir Putin. O antigo vice-presidente Mike Pence descreveu o Chefe de Estado russo como um “criminoso de guerra” que só “entende o poder da força”. “A invasão ilegal da Ucrânia pela Rússia matou e feriu milhares de ucranianos. A brutalidade da Rússia deve ser combatida com a força norte-americana. Não há lugar para apologistas da Rússia”, escreveu o ex-braço direito de Donald Trump no X num recado para algumas fações do Partido Republicano, instando ainda que o pacote de ajuda destinada à política externa avaliada em 95 mil milhões de dólares (aproximadamente 88 mil milhões de euros) seja aprovado.
Por sua vez, Mike Johnson não teve dúvidas em chamar ao líder russo um “ditador cruel” que está “provavelmente relacionado com a morte súbita” de Alexei Navalny. Num comunicado citado pelo Washington Times, o líder da Câmara dos Representantes que tem bloqueado o pacote de ajuda pediu aos congressistas de ambos os partidos para “fazerem uma oposição unida” a Vladimir Putin. “Enquanto o Congresso debate a melhor forma de apoiar a Ucrânia, os Estados Unidos e os nossos parceiros devem usar todos os meios disponíveis para cortar a habilidade de Putin financiar a sua guerra na Ucrânia.”
Numa perspetiva mais isolacionista, alguns republicanos próximos de Donald Trump mantêm a narrativa de que é necessário focar nos problemas dos Estados Unidos. “Talvez eu fique mais entusiasmado com o que está a acontecer na América, não porque acredite que seja pior do que a Rússia ou qualquer outro país, mas porque é a minha casa”, escreveu o senador J.D. Vance no X.
Apesar do debate ainda prevalecer no Partido Republicano, o antigo jornalista e analista ucraniano, Viktor Kovalenko, assume ao Observador que a morte de Alexei Navalny pode mudar as ideias a vários republicanos. E isso pode originar a aprovação do pacote de ajuda económica, assim como que seja dada luz ao 13.º pacote de sanções desde o início da invasão pela União Europeia.
Tudo isto não mudará, porém, a “postura agressiva de Putin contra a Ucrânia e o Ocidente”, ressalva Viktor Kovalenko, que também é categórico neste ponto: “Não há qualquer maneira de a morte de Navalny parar a guerra na Ucrânia”.
“A sociedade russa não via Alexei Navalny como um líder pelo qual valesse a pena lutar. Era publicitado pelas elites russas no Ocidente como uma alternativa a Putin. Mas Putin usou-o como uma ‘oposição confortável’ para enganar todos [ao tentar mostrar] que a Rússia é uma democracia”, explica Viktor Kovalenko, clarificando um segundo ponto: “O povo russo está demasiado assustado e subjugado para forçar Putin a resignar, independentemente de quem é o líder da oposição”.
Deste modo, a guerra da Ucrânia nunca terminará por vontade de quem está à frente da presidência russa, uma vez que Vladimir Putin se mantém convicto da necessidade do conflito e não haverá ninguém suficientemente capaz de lhe fazer frente. Ainda assim, o antigo jornalista ucraniano concebe que “alguns grupos dentro da Rússia podem usar a morte de Navalny como uma forma de tentar obter uma vantagem em relação a Putin”.
Ucrânia olhava com desconfiança para Navalny — e não espera grande mudança
Em outubro de 2014, sete meses depois de a Rússia anexar a Crimeia e ter começado uma guerra civil russa no leste da Ucrânia, Alexei Navalny surpreendia o mundo durante uma entrevista: “A Crimeia é do povo que vive na Crimeia”. Ainda que tenha reconhecido que a anexação da península se tratou de uma “violação flagrante de todas as normas internacionais”, o opositor do Presidente russo mandou um recado aos ucranianos: “A Crimeia vai manter-se parte da Rússia e nunca será integrada na Ucrânia num futuro próximo”.
Confrontado sobre o que faria se um dia chegasse ao presidência da Rússia, Alexei Navalny não deixou margem para dúvidas de que não cederia a Crimeia à Ucrânia. “A Crimeia é o quê, uma sandes com salsicha para ser trocada?”, questionou. Mais tarde, numa entrevista em 2017, moderou o discurso, garantindo que ia “realizar um referendo justo” na península. “Vou tentar normalizar a situação e vou tentar envolver a Ucrânia no referendo, juntamente com a União Europeia.”
O mal estava feito. A Ucrânia nunca perdoou Alexei Navalny. Viktor Kovalenko esclarece que a sociedade ucraniana “nunca esperou” que o opositor russo normalizasse “relações entre a Rússia e a Ucrânia”. “Ele era um nacionalista russo, como Putin, que se sentiu melindrado porque a Rússia estava a perder controlo sobre uma colónia antiga”, lamentou o analista, lembrando ainda que o dissidente ao regime da Rússia chegou a lamentar que a Igreja Ortodoxa Russa “tenha perdido influência na Ucrânia”.
“Além disso, Alexei Navalny repetiu a mentira de Putin de que o povo russo e ucraniano eram o mesmo, o que é uma justificação para a ideia imperialista de os ucranianos ficarem sob controlo Moscovo novamente”, prossegue Viktor Kovalenko, que destaca, porém, que houve uma mudança de atitude por parte do dissidente. “Só quando Putin o prendeu, é que Navalny abandonou os seus sentimentos antiucranianos e começou a pedir que a Rússia parasse a guerra e retirasse as tropas de território ucraniano.” Quando a invasão de larga escala à Ucrânia começou, em fevereiro de 2022, Navalny já estava a cumprir pena — e criticou-a em tribunal, descrevendo-a como “uma guerra estúpida” e “construída com base em mentiras”.
Mesmo assim, no portal do governo ucraniano Visit Ukraine, lê-se que maioria dos ucranianos considerava que a sua postura “era pouco firme” e “excessivamente evasiva” ao “condenar a agressão russa”. “As suas relações com a Ucrânia mantiveram-se problemáticas e nunca atingiram um estado de confiança e compreensão”, realça aquele site, concluindo: “É impossível dizer que a Ucrânia e a sociedade ucraniana viam Navalny como um bom russo”.
Não sendo um “bom russo” para os ucranianos, Volodymyr Dubovyk nota que havia “algo positivo”: o facto de “fazer algum tipo de oposição a Putin”. “Mas nós, ucranianos, rapidamente nos demos conta de que a oposição não era capaz de fazer nada para parar ou minar a guerra russa na Ucrânia”, concluiu o docente da Universidade de Odessa.
Lamentando a morte de Alexei Navalny — mas nunca lhe prestando homenagem diretamente — a presidência da Ucrânia preferiu demonstrar que esta é uma prova de que o Estado russo é controlado por um autocrata que leva sempre a um “derramar de sangue”, sendo impossível chegar a acordo com um regime com esta génese. No X, o conselheiro de Volodymyr Zelensky, Mykhailo Podolyak, sugeriu que é impossível negociar com a “morte” e com “um ditador sanguinário”.
Vladimir Putin tentou, ao longo dos últimos anos, silenciar o seu principal opositor. Contudo, a morte de Alexei Navalny pode enviar uma mensagem estrondosa a todo o mundo: de que o regime russo não é confiável. No Kremlin, já existe surpreendentemente essa perceção; a Ucrânia espera que esta seja mais uma prova da real natureza do Estado contra o qual está em guerra.