Três participações olímpicas. Uma medalha de prata logo na estreia, em 1960, nos Jogos Olímpicos de Roma, na classe Star, ao lado do seu irmão, Mário Quina. E depois um 17.º lugar no México em 68 (também na classe Star) e um 11.º em Munique em 72 (já na classe Finn). Em dia de corrida para medalha dos portugueses Carolina João e Diogo Costa, o velejador José Manuel Quina, (que era também irmão do banqueiro Miguel Quina, poderoso banqueiro durante o marcelismo), recorda as aventuras da sua conquista de há 64 anos.
Passados 64 anos da medalha de prata em Roma que conquistou com o seu irmão, a memória dessa prova ainda está bem viva?
Está, está viva. Apesar de ter amigos espanhóis que têm mais consideração por eu ter ganho uma medalha do que aqui em Portugal. É engraçado.
Vamos voltar atrás no tempo até 1960, até Nápoles, onde conquistou esta medalha com o seu irmão. Quando chegou à baía de Nápoles, como estavam as condições antes de começar a prova?
Estavam normais. O sistema era diferente de hoje. Hoje vai-se para a medal race com os 10 primeiros, após uma série de regatas. Naquela altura era uma série de 7 regatas, em que nós podíamos deitar uma regata fora, o pior resultado, e pronto. Correu tudo normalmente, as regatas correram bem.
Quando começou a prova, a ideia de conquistar uma medalha já estava nos vossos planos?
Sabe que nunca peguei na regata com a ideia de perder, mas sempre com a ideia de ganhar. Treinámos muito, mesmo muito, antes de ir para os Jogos Olímpicos. Nós não tínhamos treinadores, não tínhamos facilidades nenhumas nessa altura, era tudo por nossa conta e risco, e esforçámo-nos o máximo possível.
Como não tínhamos treinador, primeiro líamos tudo o que havia sobre a vela e sobre a tática. Além disso, todas as manobras que fazíamos quando estávamos a treinar eram cronometradas para vermos se melhoráramos ou se não melhorávamos. Tudo entre nós. Eu fui três vezes aos Jogos Olímpicos e fui sempre com o intuito de ter uma boa classificação e correu bem. Tínhamos concorrentes, por exemplo o italiano era oficial da marinha e foi transferido para Nápoles para poder estar os quatro anos antes dos Jogos Olímpicos a treinar — mas ficou em quarto.
A vela é um desporto em que também há um pouquinho do fator sorte, como em tudo na vida. Quem ganhou foram os russos, depois ficámos nós e depois os americanos. Eu até brincava e dizia que nós estávamos no meio, para aliviar a tensão entre a Rússia e a América. Não estávamos numa vila olímpica, os velejadores estavam distribuídos por hotéis de cinco estrelas, em que nos tratavam o melhor possível. Já não me recordo bem se era o presidente, que era um general, (já não me lembro o nome), foi ter connosco ao hotel antes do início dos Jogos Olímpicos. Foi a única pessoa que quis que nós lanchássemos bem na inauguração, é curioso. De resto não havia ajuda nenhuma.
Onde esteve a chave para conseguir o segundo lugar?
Aquilo era uma série de 7 regatas e cada regata tem a sua pontuação. Nós fomos vendo a pontuação que íamos adquirindo e chegámos a uma dada altura em que os russos ganharam duas regatas fazendo um percurso completamente diferente do nosso, o percurso não é aquele que é estabelecido, é entre as bóias, cada um pode ir para o lado que quiser. Eles foram sempre para o lado contrário de todos os outros e ganharam duas regatas, foi uma coisa incompreensível.
Mas isso ajudava a afastar-se dos restantes velejadores?
Nós fazemos as regatas contra o vento, portanto ou pode ir para o lado direito ou para o lado esquerdo e depois tem de mudar com os saltos de vento, porque o vento não é fixo numa direção. O vento pode variar 10, 15, 20 nós e portanto tem de se aproveitar esses saltos de vento, isso significa avanço ou retrocesso. A eles correu muito bem e a nós também, porque ficámos em segundo. Só havia uma medalha de prata olímpica em Portugal, que era dos irmãos Belo em 1948, depois havia uma de Fiúza e Mourinho, de bronze.
E depois vieram os irmãos Quina…
A seguir foi em 1996 o Hugo Rocha e o Barreto, que ficaram em terceiro na classe 470, como agora será a “medal race”. Desde aí não houve mais nada.
O barco da dupla Quina chamava-se ‘O Má Lindo’. Era mesmo o barco mais lindo da prova?
[Risos] Isso tem uma razão. O primeiro barco que comprámos, em segunda mão, chamava-se ‘O Má Lindo’, era do João Quito. O meu irmão achou piada e resolveu manter sempre o nome de ‘O Má Lindo’. Portanto, os outros barcos com que nós fomos aos Jogos Olímpicos ficaram com esse nome.
E onde está ‘O Má Lindo’?
‘O Má Lindo’ está num museu na marinha perto de Leiria. A última vez que o vi estava maltratado, cheio de pó, nem sei porque é que querem os barcos para os museus se os tratam mal.
Quando terminaram a regata, já sabiam que tinham ganho a medalha?
Houve uma coisa curiosa: na véspera da última regata nós podíamos ficar em terceiro, era natural que ficássemos em terceiro ou segundo. Mas foi anunciado na imprensa em Lisboa que nós já tínhamos ganho a medalha de prata — e ainda nem tínhamos acabado a regata. Fomos para a última a regata a dizer que tínhamos de ficar em segundo porque já tinham anunciado que tínhamos ficado em segundo. Foi um lapso.
E se tivessem ganho o ouro?
A imprensa portuguesa devia bater com a mão no peito e dizer: “Enganámo-nos, demos uma notícia antes de os jogos acabarem.”
Como é que foi a cerimónia do pódio?
Foi muito simples. Foi em Nápoles, no clube. Com espaço para os velejadores, para os atletas. Era 2 no meio, 2 na ponta, mais 2 na outra ponta. Passaram-se 64 anos, as coisas mudaram muito. Quando nos quiseram fazer uma entrevista para a televisão, fomos à rádio italiana e a bobine veio de avião para Lisboa para passar na RTP. Agora vê-se ao momento, naquela altura não. Era por telefone. Mas correu tudo bem.
Onde é que guarda a medalha?
Não guardo. Já a ofereci.
A quem?
Tenho 5 filhos… A que filho é que dava? Se desse a um, outro podia reclamar: “Porque é que deu àquele?”. Graças a Deus, para me resolver esse problema nasceu-me um neto há dois anos, que é filho do meu filho mais novo, Rodrigo, e eu disse: “Aqui está, é o único neto que tem o meu nome, Quina, porque os outros têm o nome dos pais, dos maridos das mulheres”. Então este é o meu continuador e dei-lhe a medalha, todos concordaram. Resolveu-me um problema. Quando nasceu ofereci-lhe logo a medalha. Ah, e ele chama-se José Manuel Quina. Tem o mesmo nome que eu.
Esteve em mais duas edições dos Jogos Olímpicos.
Fui a três Jogos Olímpicos. No México [1968] correu muito mal porque houve uma alteração de mastros e velas de que não tivemos conhecimento, nem nós nem os russos. Ficámos para o fim da tabela, os russos e nós, que tínhamos ganho medalha de ouro e prata nos outros Jogos em Roma.
Mas não havia nada a fazer, naquele tempo as notícias corriam devagar e nós não estávamos a par dessas coisas. Além disso também havia uma coisa: é que agora pagam-lhes tudo. Querem barcos, querem velas, querem treinos, querem viagens. Nós não tínhamos nada disso. Eram outros tempos. Quando fui aos jogos olímpicos na Alemanha [Munique, 72] em Kiel havia quatro barcos portugueses e nós éramos o único país que não tinha um barco de apoio para as regatas, todos os outros países tinham.
Foi preciso falar com o almirante Henrique Tenreiro [presidente da Junta Nacional de Fomento das Pescas e uma das figuras mais influentes do Estado Novo], para ver se ele autorizava ou arranjava dinheiro para alugarmos um ou dois barcos, eram quatro campos de regata. Barcos de apoio são absolutamente necessários, nem que seja para dar água. Lá se resolveu e correu tudo bem.
Avancemos para estes Jogos Olímpicos em Paris. Tem acompanhado a prestação portuguesa nestes jogos?
Mal, porque tenho visto muita natação, muito atletismo, vela praticamente nada. Tenho pena. Hoje em dia, com a tecnologia, aliás as filmagens eram ótimas, via-se perfeitamente. Estava com esperança de ver a medal race dos 470, mas como não houve vento foi adiada, não sei para quando. Mas parece que podem alcançar a medalha de bronze.
A dupla Carolina João e Diogo Costa na Classe Dingue e Misto pode ter uma palavra a dizer em relação a medalhas? Pode haver aqui algum tipo de surpresa?
Acho que podem ter ainda a medalha de bronze. Não fiz contas, não sei o resultado que tiveram, mas disseram-me que ainda podem obter a medalha de bronze. A de prata já não podem alcançar. Era bom que conseguissem, mas não sei.
Mudou muito a vela?
As pessoas é que mudaram [risos]. A vida serve para um bem maior. A vela mudou muito, os barcos, as velas, as técnicas, eles todos têm treinadores. Tem todo o apoio, o apoio médico, todos os apoios que são necessários para um atleta olímpico. Os tempos evoluíram, nós não tínhamos nada na altura. Aliás, há uma grande diferença, eles são profissionais, nós fomos sempre amadores. Nunca ganhámos um tostão a fazer vela, pelo contrário, gastávamos.
Por José Rafael Lopes