“Tu jogas à defesa, eu ao ataque.” A estratégia foi definida em segundos para dar início a uma partida de matraquilhos, porém podia ser apenas mais um dia normal na campanha do Chega para as eleições europeias. Apesar de Tânger Corrêa ser o cabeça de lista, é Ventura quem comanda — e mesmo nos momentos em que o candidato não marca presença esse não é motivo de embaraço. Bola para a frente: “Houve um imprevisto, mas está aqui o líder do partido.”
Com o líder do partido à frente da comitiva não há problemas, nem quando os imprevistos acontecem. Mas há perguntas e Ventura preferiu chutar para canto ao dizer que “a campanha não pára mesmo que o candidato tenha debates” e na verdade Tânger Corrêa só tinha tido um imprevisto de saúde que esclareceu logo que chegou à ação da tarde: “Acha que foi uma dissensão com o presidente do partido? Não foi, foi uma capa de um dente que me caiu, que me estava a causar dores terríveis, e que tive de ir arranjar.”
No dia anterior não foi bem assim: o cabeça de lista faltou a um jantar-comício no Algarve para marcar presença no debate a oito na televisão e a campanha seguiu indiferente à ausência — sendo que a data do debate já era conhecida há semanas e mesmo assim o jantar foi ali e àquela hora. Por tradição, os líderes partidários vão-se juntando às ações de campanha durante o período eleitoral, há dias em que estão presentes, outros nem tanto, mas o foco é sempre o mesmo: o candidato. Na caravana do Chega não é assim: Ventura está em todo o lado, não há campanha sem ele, e se Tânger falhar, fica tudo igual: Ventura continua em todo o lado. A estratégia há muito está montada, apenas é seguida à risca.
A insistência no tema chateia o presidente do partido, que não dedica grande tempo ao assunto, e foi preciso o regresso do próprio cabeça de lista para vir dizer o óbvio (aparentemente sem pudores nem ressentimentos): “Quem é a melhor pessoa para fazer campanha? É André Ventura, não tenham dúvidas sobre isso. Em termos mediáticos estou a combater com ex-ministros, com ex-presidentes de partidos e comentadores políticos com perfil mediático alto, o meu perfil mediático é baixo. Qual é o problema de fazer campanha com o partido?”, atirou em jeito de murro na mesa para pôr fim à questão e reconhecendo que a presença de Ventura é fundamental porque “pode não alcançar os objetivos previstos sozinho“.
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Na rua, Tânger vai dispensando as atenções e deixando que o presidente faça o seu trabalho, neste caso capitalizar eleitorado. Chega antes de Ventura, deixa o palco e as câmaras para o presidente do partido e segue na segunda linha. À entrada do quartel de Bombeiros de Mourão, esperou o líder do partido mais de meia hora e quando Ventura saiu do carro inverteram-se os papéis. Um a um, o presidente do Chega cumprimentou os bombeiros que ali o esperavam e Tânger ficou atrás. Não se chega à frente nem para a fotografia, simplesmente acaba por se deixar estar e por ver o líder fazer aquela que, por tradição, é a função do candidato. Ventura é mais do que um candidato-sombra, que não larga Tânger, é mais uma espécie de candidato-sol que ofusca todos— é impossível brilhar ao seu lado e Tânger está a senti-lo na pele, o que alegadamente não o tem preocupado.
O “cheque em cinzento” que não dá certezas sobre o futuro
Tânger Corrêa está bem com a divisão de funções: Ventura fala (e muito) de temas de política nacional (“Se há quem conheça os problemas nacionais é ele”), o candidato fica com os temas internacionais. E se mesmo em debate tem sido tímido em ataques, ao terceiro dia de campanha e perante as constantes críticas de que tem sido alvo não poupou ninguém: “Se houver problemas internacionais cá estou eu para responder. E não gosto nada de dizer isto, mas notei uma total impreparação dos cabeças de lista dos partidos com representação parlamentar para irem representar Portugal no âmbito internacional. Não sabem o mínimo dos mínimos do que é fundamental para proteger Portugal”, afirmou o cabeça de lista do Chega.
Aproveitando o embalo, seguiu para dizer que “por muito burro que seja”, tem “40 anos de experiência internacional” e sabe “o que anda a fazer”. “E pelo teor das conversas e pela deriva não internacional que todos os meus opositores têm só resta uma razão: não sabem nada sobre assuntos internacionais.” Questionado sobre se se sente menosprezado nesta corrida eleitoral, Tânger Corrêa corrigiu, deixando claro que os adversários “têm medo, calam a boca e ficam de olhos arregalados” — “Tentam evitar que eu fale de assuntos internacionais.”
Um dos assuntos internacionais que Tânger Corrêa tem abordado é a questão da família política, tendo chegado a dizer, em entrevista ao Observador, que não podia garantir se o Chega iria “mudar ou não” de família política, mas deixando essa porta aberta ao não negar a hipótese. “Fazemos parte do ID, sim. Vamos ver quais vão ser os resultados nas próximas eleições e qual vai ser a constituição das várias famílias políticas. Sou a favor da negociação. Quando existem grupos que têm semelhanças, sou a favor de que esses grupos negociem a direção do voto, mas também algo mais do que isso, de forma a que as bases, eu não diria ideológicas, mas as bases funcionais sejam as mesmas”, explicou na altura.
Tânger Corrêa em entrevista: “Judeus podem ter sido avisados do 11 de Setembro”
Perante uma Europa em que reina a confusão entre os partidos conservadores, de direita radical e de extrema-direita — e ninguém sabe bem o que acontecerá às famílias europeias dos Conservadores e Reformistas Europeus (ECR, sigla em inglês) e do ID após o dia 9 de junho, principalmente por a primeira-ministra italiana e cabeça de lista pelos Irmãos de Itália, Giorgia Meloni, não esconde que mantém boas relações com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, do Partido Popular Europeu (PPE). E, dependendo do número de eurodeputados que as duas forças políticas conseguirem eleger, a líder italiana já admitiu que quer criar uma coligação “à direita” no Parlamento Europeu — o que poderia afastar o ID, deixando a família do Chega mais isolada.
Uma das grandes divisões entre as duas famílias têm sido as opiniões sobre a guerra na Ucrânia, em que o PPE é completamente a favor do apoio a Kiev, assim como grande maioria dos partidos do ECR. O mesmo não acontece com todos os elementos da ID, onde há uma maior divisão: há quem critique a invasão russa, mas também há forças políticas do ID, como o Partido para a Liberdade da Áustria (FPÖ), que têm lançado duras críticas à presidência ucraniana e à ajuda europeia a Kiev. O Chega nunca teve dúvidas no apoio à Ucrânia e, neste caso, até está mais próximo de alguns membros do ECR.
Assim, no dia seguinte, e perante os cenários que atualmente estão em cima da mesa, o Chega terá uma decisão a tomar: ficar no ID, alinhar no ECR, tentar contribuir para um sonho antigo do partido que incluía ser uma “ponte” entre os dois — um cenário cada vez mais imprevisível com a aproximação do ECR ao PPE, ou integrar uma outra família política, uma opção já levantada pelo próprio candidato do Chega. “E se de repente aparecer outra família política?”, questionou, frisando que “em política internacional o preto e branco não existe, existe o cinzento” e dizendo que não pode “aprofundar temas que não podem ser aprofundados” pela incerteza.
Questionado sobre se considera possível uma aproximação entre ID e ECR, Tânger reconhece que Le Pen entende que sim, mas, e também em nome presidente do Chega, diz: “Estamos a assistir de bancada ao que se está a passar. Quando chegar a altura de tomar decisões, nós tomaremos decisões.”
O candidato quer confiança e um cheque em “cinzento”, mesmo que não saibam nada sobre o que fará o Chega no dia seguinte sobre a família. “Trabalho há 40 anos no cinzento e nunca me dei mal, não há bom, não há mau, existe toda uma zona cinzenta em que nos mexemos”, argumentou. E quando questionado sobre se os portugueses não devem saber o que o Chega acha sobre a família política, Tânger Corrêa atirou: “Mas isso é importante para quem?”
“Os portugueses que votarem no Chega têm de ter confiança no Chega a todos os níveis”, realçou o candidato, frisando que não pede um cheque em branco, mas “pode ser um cheque em cinzento” porque “tem de haver um relação de confiança entre eleitorado e entre quem é eleito”.
Se é verdade que Tânger Corrêa tem deixado estas portas abertas, também é verdade que André Ventura, quando confrontado com o caso das buscas no Parlamento devido ao alegado envolvimento de um funcionário numa operação de propaganda russa. Em causa está, segundo avançou a imprensa internacional, Guillaume Pradoura, que foi assistente parlamentar do eurodeputado alemão Maximilian Krah, do partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD), que pertence à ID, e que atualmente trabalha com o eurodeputado neerlandês Marcel de Graaff, que foi eleito pelo Forum voor Democratie, e fez parte da família ECR antes de se tornar não-inscrito.
Ventura escudou-se apenas na família — a qual até pode vir a integrar — para responder ao caso. “É assistente de um grupo que pertence aos Reformistas e Conservadores (ECR), não pertence à família política do ID, esqueçam esses delírios da Rússia e da t-shirt. Não há nenhum partido em Portugal que tenha condenado mais a Rússia do que nós”, afirmou, sublinhando que o Chega apoia “tudo o que for para suportar a Ucrânia”. Perante a insistência sobre o caso, André Ventura foi perentório: “Para mim ele era preso hoje, agarrado, arrastado pela rua e posto numa cela. Para mim toda a corrupção é assim.”
A família política do Chega na Europa é um tema para futuro, mas o futuro está agora cada vez mais próximo e a estreia do partido português na Europa, dependendo do número de deputados, pode ser relevante nesta que é uma questão premente na distribuição do Parlamento Europeu.