Dia 23 de Abril de 2017, depois de anunciados os resultados que lhe garantiam a passagem à segunda volta das eleições presidenciais, Marine Le Pen subiu ao púlpito e dirigiu-se aos “eleitores patriotas franceses”. “A grande questão nesta eleição é a globalização desenfreada, que põe em perigo a nossa civilização. Os franceses têm uma escolha muito simples: ou continuamos no caminho da desregulamentação total, sem fronteiras e sem proteção, com as suas consequências: deslocalizações, concorrência internacional desleal, imigração em massa, livre circulação de terroristas. Ou escolhem a França, fronteiras que protegem os nossos empregos, o nosso poder de compra, a nossa segurança, a nossa identidade nacional.”
Quase cinco anos depois, a 10 de Abril deste ano, no final da primeira volta das presidenciais, Le Pen voltou a subir ao palco vestida de preto e branco, mas desta vez já não se dirigiu exclusivamente aos eleitores patriotas. Dirigiu-se a muitos mais. “A 24 de Abril, será feita uma escolha fundamental entre duas visões opostas do país: ou divisão, injustiça e desordem, ou a mobilização do povo francês em torno da justiça social garantida por um quadro fraterno”. Não é completamente diferente, mas é o suficiente para se reconhecer a mudança que Marine Le Pen ensaiou do nacionalismo xenófobo para o populismo proteccionista.
Como recordava há dias o jornal Politico, num comício em 2010 Le Pen dizia que “há quinze anos tínhamos o véu, havia cada vez mais véus. Depois havia a burqa, havia cada vez mais burqas. E depois havia orações nas ruas… agora há 10 ou 15 lugares onde um certo número de pessoas vem regularmente e ocupa todo o espaço. Para quem gosta de falar muito sobre a Segunda Guerra Mundial, se é uma questão de falar de ocupação…”. Na altura foi um escândalo. Passados 12 anos, Marine Le Pen passou esta campanha eleitoral a evitar dizer que queria proibir o uso de véu em locais públicos. Quer. E não o nega. Mas prefere não falar demasiado nisso. E, quando insistem, diz que não só não é a sua prioridade como acha um exagero “perder dez minutos” a falar do assunto no único debate que teve com Emmanuel Macron. Marine parece-se cada vez menos com o pai e cada vez mais com Donald Trump. Mas menos agressiva e irritada. Enquanto Macron fala sobre o tema da emigração e do islamismo o suficiente para captar votos à direita, e talvez os perder à esquerda.
No mesmo dia 23 de Abril de 2017, o candidato-estrela, a maior surpresa da política francesa desde há muitos anos, o homem que nunca tinha perdido nem ganho uma eleição porque nunca tinha concorrido a nenhuma, terminava a primeira volta das eleições presidenciais num (não fora as sondagens) inesperado primeiro lugar e anunciava ao que vinha. Cheio de ambição e convicto do sucesso na próxima volta, afirmou: “eu quero construir uma maioria agora (…), vai ser feita de caras novas, novos talentos”. Primeiro ganhar as presidenciais, depois as legislativas e, entretanto, mudar as caras e o país.
Um problema de perceção. E da realidade de cada francês
Cinco anos depois, Macron volta a chegar ao fim da primeira volta em primeiro lugar, e promete grandes mudanças. Outra vez. “Estou pronto para inventar algo novo, para reunir diversas convicções e sensibilidades para construir com elas uma ação comum ao serviço da nossa nação nos próximos anos. É o nosso dever”. O problema de Emmanuel Macron é que desta vez não é uma estrela em ascensão nem um prodígio surpreendente, é presidente há cinco anos, a economia não está terrível (o PIB está a crescer e o desemprego diminuiu) mas à custa de maior flexibilidade laboral, da redução de impostos (que lhe acusam ter sido favorável sobretudo aos ricos), do aumento do custo da energia que deu origem às manifestações dos “coletes amarelos” e agora da subida da idade da reforma. Macron tentou, modestamente, reformar a França. Uma proeza que poucos dizem ter conseguido. E menos ainda continuam na política para a contar.
O problema de Macron não será tanto a realidade, é sobretudo a percepção que muitos franceses têm da realidade. E da sua realidade pessoal. Enquanto o maior problema de Le Pen é ter um pai e um passado, e ser confrontada com a fragilidade e inviabilidade das suas propostas de cada vez que se fazem contas ao que propõe, Macron tem de enfrentar a descrença no futuro, em geral, e a falta de confiança em si, em particular. São dois combates substancialmente diferentes e o mais provável é Macron ganhar. Mas isso não será o fim da história. Em Junho há eleições legislativas e logo se verá se ainda há partidos ao centro. Mas, para já, as presidenciais.
Marion Anne Perrine Le Pen nasceu a 5 de Agosto de 1968 e começou o seu percurso partidário 18 anos depois, quando se inscreveu na Frente Nacional, o partido de Extrema-direita que o seu pai criou e dirigia. Desde então nunca mais deixou a política, tendo sido eleita local, deputada ao Parlamento Europeu e três vezes candidata presidencial. Em 2012 ficou em terceiro lugar, em 2017 ficou em segundo, este ano se verá onde a sua transformação a consegue levar.
Marine não é a primeira da família Le Pen a ir à segunda volta de umas eleições presidenciais. Em 2002, por menos de 200 mil votos, o pai, Jean-Marie Le Pen, ficou à frente de Lionel Jospin, o candidato socialista. Nesse ano, no seu único comício da segunda volta, Le Pen foi a Marselha tentar reunir uma multidão que provasse que era possível marchar sobre Paris. Para quem tinha tido pouco mais que 16% na primeira volta, era essencial exibir povo. E o povo da extrema direita naquele tempo estava em Marselha, o seu bastião. Era ali que a Front National de Le Pen tinha o melhor resultado. Para sua desilusão, o povo falhou ao comício de Marselha e não apareceu em massa no dia das eleições. A 5 de maio de 2002 Jean-Marie teve mais 700 mil votos do que na primeira volta e com 17,79% teve o seu melhor, e último bom, resultado eleitoral. Jacques Chirac, que tinha atraído menos de 6 milhões de eleitores na primeira volta, mais do que quadruplicou os votos, beneficiando do cordão sanitário e do apoio expresso do candidato que ficou em terceiro lugar. Desta vez a história é diferente.
Em 2022, Marselha voltou a destacar-se na primeira e na segunda volta das eleições presidenciais. Este ano, a 10 de Abril, naquela parte de França, Marine Le Pen ficou em terceiro lugar, Emmanuel Macron em segundo e Jean-Luc Mélenchon em primeiro. Domingo se verá como votaram os eleitores que na primeira volta escolheram o ex-socialista que agora corre pela extrema-esquerda do novo espaço político francês. O ainda presidente espera que votem em si. Mas como Mélenchon não apelou ao voto em Macron, apelou só a que não se desse nem um voto a Le Pen, o presidente espera que pelo menos se abstenham. A candidata da extrema-direita espera o contrário. Que o que mobiliza os eleitores de extrema-esquerda, as queixas contra o sistema, a recusa da globalização e do “neo-liberalismo”, o “poder de compra”, os mobilize o suficiente para votar em quem está igualmente contra o candidato do sistema e “dos ricos”, como de um lado e do outro chamam ao presidente Macron.
Menos orçamento, menos poderes e mais distante dos EUA. A Europa das Nações de Le Pen
O maior problema de França não é Marine Le Pen. Ou, dito de outra forma, o maior problema de França não é só Marine Le Pen. É a soma de Le Pen e Mélenchon nas presidenciais e o que isso pode significar nas legislativas.
No final da primeira volta, Emmanuel tinha menos de 10 milhões de votos, o que representava 27,8% dos votantes. Marine e Jean-Luc somados tiveram quase 16 milhões, contabilizando mais de 50% dos votos. É esse o grande problema francês.
“Em todos os continentes, o neoliberalismo causou grande devastação social e ambiental. Por agora, o mundo está à procura de uma roda sobressalente no nacionalismo de extrema-direita. A vitória do programa humanista “l’Avenir en Commun” e do seu candidato Jean-Luc Mélenchon enviará ao mundo o sinal de que outro futuro é possível”. Não são só os analistas que dizem que Mélenchon e Le Pen têm em comum serem as alternativas radicais ao sistema, à economia global ou ao capitalismo. É Jeremy Corbin, Lula da Silva, Dilma Russef, o Bloco de Esquerda e o Podemos, entre outros, que assinaram um manifesto a dizê-lo. Eles vêem-se em extremos opostos. O povo diz que os extremos se tocam. Domingo saberemos se trocam votos.
Depois de ter ficado para trás nas presidenciais, e já antes, certamente sabendo que nunca as ganharia, Jean-Luc Mélenchon diz que quer refundar França e fundar a 6ª República a partir de uma nova Constituição de base popular, eleições directas, mais parlamentarismo e a redução substancial do poder presidencial.
Marine Le Pen não fala em fundar uma nova República. Volta e meia até fala de De Gaulle, o pai da 5ª República. Mas também ela quer alterar radicalmente o país. Já não quer sair do Euro, mas quer transformar a Europa da União Europeia numa Europa das Nações, quer dar-lhe menos orçamento, quer tirar-lhe poderes e quere-a mais distante dos americanos, e a França menos envolvida na NATO. E no fim da guerra, aproximar-se de Moscovo. Em muitas destas coisas, Mélenchon não quer coisas completamente diferentes.
A extrema-esquerda e a extrema direita têm a economia e as alianças internacionais em comum, e quase tudo o resto em oposição. A ecologia, os direitos das minorias, a relação com o Islão. O que mudou, nos últimos anos, é que a extrema-direita com sucesso passou a falar mais de economia, e a extrema-esquerda com sucesso ocupou praticamente todo o território eleitoral da esquerda. O que sobra, de um e de outro lado, vota em Macron ou pouco mais.
Europa: a única via para França — e Macron — serem grandes
Emmanuel Macron chegou cedo e depressa à política. Nasceu a 21 de Dezembro de 1977 e foi eleito presidente da República sem ainda ter feito quarenta anos. Pouco antes disso, foi conselheiro do Presidente da República, ministro da economia, primeiro, e das finanças, depois, e tirou partido da fraca popularidade do presidente socialista Francois Hollande para concorrer e ganhar as presidenciais contra tudo e contra todos, incluindo os candidatos do partido socialista, entre eles o primeiro-ministro para quem trabalhou, Manuel Valls.
Macron criou um partido, apresentou uma ideia política agregadora e inventou o que era ser liberal em França, sem nunca dizer que o é. Foi ministro dos socialistas, mas escolheu conservadores para seus primeiros-ministros. Fala contra o radicalismo islâmico, mas defende o véu em locais públicos. É preciso mostrar firmeza e, ao mesmo tempo, que é diferente de Le Pen.
Quando foi eleito presidente, há cinco anos, Macron defendeu a Europa contra um ambiente hostil à União Europeia. Macron tem a mesma obsessão com a “grandeza da França” que a maioria dos presidentes franceses tem tido. A diferença é que por convicção, por tática e por estratégia pessoal, Macron acredita que a Europa é a única maneira da França ser grande. E ele também.
Até há pouco tempo a política internacional jogava a seu favor. Trump tinha afastado americanos e europeus, o Brexit tinha atirado os cépticos e globalistas britânicos para longe, Angela Merkel reformou-se e o novo líder alemão é uma fraca figura, a União Europeia aceitava que era preciso investir na defesa e no digital europeus (franceses, espera Macron) e o presidente francês ia presidir à União Europeia enquanto concorria para ser reeleito. Putin estragou-lhe os planos. Antes da invasão da Ucrânia, o presidente francês quis fazer de diplomata e negociador. Acabou sentado ao fundo de uma mesa, a metros do presidente Putin, sem qualquer influência no evitar do começo da guerra. Internamente, e apesar dos evidentes laços comprometedores de Le Pen, que deve dinheiro a bancos russos e já declarou, no passado, grande admiração pelo presidente russo, o tema da guerra não parece determinante para as eleições. Se não fosse o empréstimo (“quando reunisse com Putin a senhora estaria a reunir-se com o seu banqueiro”), a posição de Le Pen podia ter passado como consensual: contra a invasão russa, a favor do direito da Ucrânia se defender e de acordo com quase tudo o que Macron fez. Desde que não se aumentem os custos da energia e não se entre na guerra, seja de que maneira for.
Depois da eleição presidencial de Macron, e da hecatombe dos candidatos socialistas na última e nesta eleição presidencial, o partido socialista francês, o partido de Mitterand, desapareceu nas sondagens e corre o risco de desaparecer nas urnas. Apesar de não ser socialista – se tivesse sido um político activo nos tempos de Blair, provavelmente teria sido mais um adepto da Terceira via – Macron começou por arregimentar os votos da esquerda, moderada e não só. Mas depois governou à direita e com a direita (Édouard Phillipe e Jean Castex) e nestas eleições, os votantes de direita que não escolheram Zemour (o candidato espetáculo extremista de direita que tornou a líder do rassemblement national numa moderada por comparação) nem Le Pen, quase não escolheram Valérie Pécresse (a candidata dos Républicans, a direita conservadora democrática), e votaram logo em Macron. E esse é o outro grande problema francês.
Um voto no mal menor
A democracia precisa de alternativas. Democráticas. Em França o megafone está na mão dos radicais, enquanto que ao centro há um partido ou político que ocupa o meio quase todo, deixando pouco espaço para alternativas democráticas à esquerda e à direita. Fora dali, só os extremos, que são alternativas entre si e ao sistema. Juntos, mesmo que não consigam governar, podem tornar a França, ou outro lugar qualquer, ingovernável.
E a Europa?
Muito provavelmente, Macron deve estar ansioso que as eleições passem para poder voltar ao palco mundial. O Chanceler Scholz tem feito tudo para que a Alemanha saia desta guerra como o país que arrastou os pés e foi arrastado. Primeiro recusou dizer que fecharia o Nordstream II, depois fechou, mas recusa falar em fechar o Nordstream I; primeiro disse que não deixava passar armas, depois disse que dava as armas que os ucranianos quisessem, até que a Ucrânia disse que não eram aquelas as armas que queria e tinham combinado; primeiro foram a Khyv os outros líderes europeus quase todos, depois o presidente alemão nem desejado foi. No momento em que a Europa e o mundo mudam radicalmente, a Alemanha faz parte dos que resistem, sem apontar caminho. Apesar de ter sido um adepto do diálogo e de tentar a convivência com Putin, Macron deve regressar com vontade de liderar a posição europeia. (Embora chegue tarde. Úsrula von Der Leyen e o Parlamento europeu posicionaram-se primeiro. Mas a França é a França.)
E se Le Pen ganhasse? Talvez acabasse a Europa como a conhecemos. A União Europeia, certamente. Le Pen não quer ser grande na Europa e pequena no mundo. Quer ser grande e autónoma em toda a parte. E acha que pode. Esse saudosismo francês ainda não o perdeu.
É possível que Marine Le Pen seja sincera. Ou, pelo menos, taticamente sincera e enquanto o pai era genuinamente racista, nacionalista e reacionário, Marine é, ou quer muito parecer que é, cada vez mais uma mulher que se veste em tons suaves, simpática, simpatizável preocupada com a economia, o poder de compra dos mais pobres e a necessidade de solidariedade entre os franceses. Na verdade, as duas coisas são perfeitamente possíveis. Continuar a ser nacionalista e ser proteccionista; continuar a ser racista e estar ao lado dos pobres, e dos que acham que ficarão pobres se a globalização continuar; estar ao lado dos identitários e dos reaccionários, e contra os globalistas e os cosmopolitas; e, no fim de contas, ser tão contra o capitalismo e a economia de mercado quanto a esquerda mais radical. O grande problema é que entre uma extrema-direita e uma extrema-esquerda assim, sobram poucas alternativas aos eleitores. E poder votar no mal menor é uma virtude da democracia, mas não é a mais entusiasmante.
*Consultor em Assuntos Europeus e membro do painel do Café Europa