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O número de telemóvel que Christian Brueckner usava quando Maddie desapareceu foi um dos 74 mil registos fornecidos à Polícia Judiciária pelas operadoras de então, a TMN, a Optimus e a Vodafone, como estando ativo nas antenas que servem a Praia da Luz, no Algarve, entre os dias 2 e 4 de maio de 2007. No entanto, e apesar de a PJ ter tentado selecionar as chamadas de maior duração no período antes do desaparecimento da criança inglesa, o telefonema recebido pelo alemão passou ao lado da investigação porque não foi efetuado no intervalo de tempo estabelecido pelos inspetores. Esta prova só foi recuperada em 2017, dez anos depois do caso, quando a polícia alemã contactou a portuguesa dando conta de que este homem podia ser suspeito do crime e qual o número que usava à data.
O (00351) 912 730 680 recebeu uma chamada entre as 19h32 e as 20h02 daquele dia 3 de maio de 2007 de outro número português, o (00351) 916 510 683. Ativou as antenas que servem a zona onde o casal McCann passava férias com os dois filhos gémeos mais novos e Madeleine, que estava quase a completar os quatro anos e, ela duração, 30 minutos, chamaria à partida algum interesse aos investigadores.
No entanto, por terem em mãos milhares de outros números que tinham de ser investigados, os inspetores da PJ — na altura liderados pelo coordenador Gonçalo Amaral — tiveram que definir critérios de seleção para a investigação. Em primeiro lugar começaram por analisar as chamadas de três dias do casal McCann e dos seus amigos. E também de Robert Murat — um dos primeiros suspeitos e arguidos no caso, depois de o seu comportamento demasiado prestável junto das autoridades e da comunicação social ter levantado suspeitas a uma jornalista –, e do seu círculo próximo. Decidiram depois alargar esse período de tempo para todos eles.
Triagem de chamadas por duração e frequência
Além destas chamadas, a PJ decidiu também que uma das formas de selecionar os milhares de registos telefónicos seria feito de acordo com o “tempo/duração/frequência/direção” de cada um, concentrando as atenções naquilo a que chamou de “período crítico”, entre as 20h e as 22h, ou seja, até ao momento em que o crime terá acontecido, como se lê no relatório que consta no processo. E foi assim que deixou escapar a chamada para Brueckner que terminou, precisamente, às 20h02 daquele dia, dois minutos depois do limite estabelecido pela investigação.
Segundo este relatório, houve porém um outro registo considerado importante para a PJ: um número de um utilizador desconhecido — à semelhança do número usado por Brueckner, um cartão pré-pago que foi desativado pouco depois. Este contacto ativou as antenas entre as 21h39 e as 21h15, com cinco comunicações com um número que se veio a concluir ser de uma imobiliária. Recebeu também duas chamadas de uma operadora irlandesa pouco antes das 22h00 — hora a que um grupo de testemunhas diz ter visto um homem a abandonar o empreendimento com uma criança ao colo (o que levou à elaboração do célebre retrato-robot de um homem de 1,70 m com cerca de 30 anos, que no campo das hipóteses se ajustou a quase todos os suspeitos, mesmo ao pai de Maddie).
As atenções da PJ ficaram presas a estes dois números, o que acabou por alargar para mais tarde o período de tempo previamente definido para a análise. Mas apenas para estes números. A chamada que Brueckner terá recebido ficou nos registos, mas não foi sequer analisada, como milhares de outras.
Suspeito teve ajuda de outro?
Além da família que viu um homem com uma criança ao colo, pelas 22h00, também uma amiga do casal McCann fez um relato idêntico à PJ, embora assegurando que o viu pelas 21h15 — cerca de 45 minutos antes das outras testemunhas e em local oposto. Estas duas informações levaram a PJ a suspeitar que, dada a discrepância da hora e do local dos dois testemunhos, poderiam estar perante dois suspeitos diferentes que se auxiliaram um ao outro.
Isso levou os inspetores a criarem ainda outro critério para analisar os registos telefónicos: todas as chamadas cujo emissor e recetor ativaram ao mesmo tempo a antena. Também a chamada de Brueckner, agora suspeito, escaparia a este critério, uma vez que o número que lhe ligou ativou uma antena fora da Praia da Luz.
Os números das cabines telefónicas, da receção do empreendimento, e do seu proprietário, foram igualmente investigados. Mas, segundo as conclusões da polícia, nada se encontrou. “Estes dados serviram apenas, tal como os restantes 74 mil registos das operadoras, para eliminar eventuais suspeitos”, lê-se no relatório. Suspeitos este que, aparentemente, já existiam no caso.
As duas linhas de investigação que afastaram Brueckner
Segundo recordou ao Observador um inspetor da PJ que chegou a trabalhar no caso, logo após o desaparecimento de Maddie definiram-se duas linhas de investigação: a criança ou tinha sido raptada ou morta em casa.
Na primeira hipótese, a do rapto, a PJ concluiu que a rotina dos McCann não se alterara muito ao longo das férias. Durante o dia as crianças ficavam normalmente com amas, para que o casal pudesse fazer várias atividades (a principal das quais disputar partidas de ténis com os amigos). À noite o casal dava banho às crianças, dava-lhes de comer, deitava-as e ficava com elas até adormecerem e depois ia jantar a um restaurante próximo do apartamento onde estavam alojados, dentro do complexo, o Tapas Bar — mas de onde não era possível ver a olho nu a casa. Por isso eles e os amigos revezavam-se para ir ver as crianças, de meia em meia hora. No dia do desaparecimento, entre as 21h00 (hora a que Gerry foi ao apartamento) e as 22h00 (hora a que foi Kate), a menina britânica terá desaparecido. É que o amigo que fez a visita das 21h30 apenas escutou à porta e janela, mas não foi ver ao ao interior. As crianças estavam em silêncio, por isso concluiu estarem a dormir e estar tudo bem.
Esta rotina, alimentada pelas testemunhas ouvidas pela PJ que deram conta de ter visto alguém a rondar o apartamento dias antes do desaparecimento, reforçava a hipótese de Maddie ter sido raptada. Rapidamente se encontrou um suspeito: Murat, cuja casa onde vivia, a da mãe, foi revirada pelos investigadores, que chegaram a escavar no jardim. A mãe insistiu sempre que o filho nem tinha saído de casa na noite do alegado crime. Ainda assim Murat foi constituído arguido.
Pais de Maddie pedem provas da morte da filha à polícia alemã
A tese de homicídio e as centenas de vestígios que deram em nada
Em agosto desse ano de 2007, a tese da morte começou a ganhar força. A PJ contou com a colaboração de um polícia reformado vindo de Inglaterra. Apresentava-se como um profissional com 35 anos de experiência, alguns dos quais na polícia de South Yorkshire, em que trabalhara como treinador sénior de cães. Martin Grime chegou à aldeia da Luz com dois animais: Eddie, treinado para detetar odor a cadáver, e Keela, especialista em encontrar sangue humano. Eddie marcou uma zona junto à janela do apartamento do Ocean’s Club, que foi encontrada aberta na noite do desaparecimento. Também marcou uma zona do carro dos McCann, alugado quase um mês após o desaparecimento da filha mais velha. Keela marcou ainda uma outra zona no interior do apartamento.
A PJ levantou os azulejos da zona que Keela marcou como tendo vestígios de sangue e mandou a cortina da janela e parte de um plástico do carro para análise, onde Eddie detetou odor a cadáver. Foram também enviados centenas de vestígios, como cabelos encontrados, e zaragatoas bucais da família e amigos de Maddie, assim como de funcionários, de forma a poder selecionar quem era ou não suspeito.
Tudo parecia apontar para um homicídio, possivelmente acidental, dentro de casa. Nesta altura os McCann estavam também sob escuta, até que no início de setembro acabaram constituídos arguidos. O processo tinha então três arguidos: Murat, na tese do rapto, e os McCann na tese do homicídio da própria filha.
Enquanto estas linhas de investigação foram seguidas, todas as outras caíram por terra. Se antes a PJ chegou a interrogar um cidadão inglês, que um mês antes do desaparecimento de Maddie passou a viver dentro do carro e que foi visto várias vezes nas imediações do Ocean’s Club, a tese de alguém de fora poder estar envolvido no rapto ou no crime rapidamente perdeu força.
“Nunca se percebeu muito bem. Abandonaram-se outras linhas de investigação, como a de que alguém tinha andado a rondar o apartamento dias antes. E de repente, sem resultados de vestígios, eles são constituídos arguidos”, constatou ao Observador uma fonte que participou na investigação e que lhe aponta algumas falhas.
O material recolhido no local foi enviado para o Serviço de Genética e Biologia Forense do Instituto Nacional de Medicina Legal. Foi aqui que chegaram, em duas fases diferentes, 25 amostras e 447 vestígios, um pedaço da colcha da cama de Maddie, duas partes do Renault Scénic e 444 cabelos. Muito do material estava contaminado porque a zona não foi devidamente protegida e entre os cabelos analisados havia, inclusive, pelo de cão. O local de um crime não era resguardado como agora.
O coordenador da investigação demitido e a prova que ainda resta
Um mês depois de o casal McCann ter sido constituído arguido, o coordenador da investigação foi demitido do cargo, depois de dizer publicamente que a polícia inglesa só seguia pistas fornecidas pelo casal McCann. Meses depois, Gonçalo Amaral acabaria por apresentar a demissão da própria PJ, com apenas 48 anos, anunciando que iria escrever um livro sobre o caso — o que resultou numa outra batalha legal movida pelos McCann, e que foi ganha por eles.
Dois meses antes deste anúncio, em fevereiro, e enquanto o material recolhido era analisado, uma equipa de investigadores independentes de Lisboa rumou ao Algarve e pegou no processo para ver o que tinha sido feito até à data. A lista de milhares de números onde constava o contacto de Brueckner voltou a ser analisada. Mas os inspetores adotaram uma estratégia que acabaria por revelar-se igualmente benéfica para aquele que agora é o principal suspeito do caso: cruzaram todas as mensagens e telefonemas com os testemunhos do processo para perceber se havia alguma contradição ou ponta solta que pudesse desvendar o mistério que ainda hoje perdura.
No final, as recomendações desta equipa foram: na hipótese do homicídio, esperar pelos resultados dos vestígios enviados para Inglaterra, assim como perceber a fiabilidade dos resultados obtidos através dos cães do treinador inglês; já na hipótese de rapto propunham, na ausência de provas, esperar por novos elementos que pudessem chegar ao processo e que pudessem abrir outras linhas de investigação.
Os resultados laboratoriais tanto em Portugal como em Inglaterra chegariam pouco depois para mostrar que os vestígios biológicos recolhidos no carro tanto podiam ser de Maddie como dos seus irmãos. Já em Portugal, analisadas todas as provas, sobrou apenas uma que pode agora ser crucial para perceber se Brueckner esteve no apartamento do Ocean’s Club. A que não teve qualquer correspondência à data: uma mancha de saliva encontrada na colcha da cama de Maddie.
Processo acabou arquivado e sem suspeitos
O processo acabaria arquivado, sem qualquer acusação contra Murat ou os McCann. Em 2013, porém, uma nova suspeita faria o caso ser reaberto. Na altura investigadores britânicos e portugueses colaboraram, houve mesmo novas buscas em Inglaterra. Mas as suspeitas acabaram por esbarrar contra um muro. “Houve mais linhas de investigação silenciosas” desde então, admitiu ao Observador uma fonte da PJ. A mesma fonte lembra que todas elas foram investigadas e que nenhuma deu frutos. Mais, que após Gonçalo Amaral muitos outros investigadores estiveram envolvidos no caso, e nunca conseguiram resolver o mistério do desaparecimento de Maddie.
Em 2017, quando a polícia alemã contactou a Polícia Judiciária Portuguesa para confirmar se o número de Brueckner, que vivia na zona da Praia da Luz à data, estava no processo como ativo à hora do desaparecimento, a PJ acabou por localizar a chamada. Assim como o número que lhe ligou. Problema: os dois números eram pré-pagos e em 2010 mudaram de dono. Mas havia imagens do carro e da autocaravana usados por ele, que podiam servir de referência a quem o conhecesse e pudesse ajudar a polícia.
Dois anos após esta partilha de informação, a polícia alemã sugeriu à portuguesa e à inglesa fazer aquilo que se faz nos chamados “cold cases”, ou seja, nos processos arquivados e que estão há anos por resolver: pedir ajuda ao público. O hábito é pouco comum em Portugal mas, ao que o Observador apurou, a PJ acabou por optar alinhar no plano, porque sabia que os alemães avançariam com declarações na comunicação social de qualquer forma. Colocaram duas condições: os pais de Maddie seriam avisados pela polícia inglesa antes e o nome do suspeito não seria divulgado.
Em menos de 24 horas, porém, o nome de Brueckner era divulgado pela imprensa alemã. “Esta é mais uma possibilidade que tem que ser seguida, mas se as autoridades alemãs continuarem a dizer o que dizem, esta investigação pode ser um flop”, diz ao Observador a mesma fonte da PJ, que garante que há mais indícios além das chamadas e dos carros. E que a própria personalidade do suspeito é compatível com o rapto de Maddie e com um provável homicídio.
“Há vários indícios que apontam nesse sentido e não é apenas o facto de ele ter violado uma idosa. Há mais indícios que podem vir a fortalecer-se ou a desvanecer”, disse a fonte da PJ, que considera que Brueckner é mais do que uma mera possibilidade e que é mesmo a nova linha de investigação.
Até agora o Ministério Púbico alemão tem mostrado estar convicto de que Maddie está morta, mas sem mostrar qualquer prova. E seguindo a mesma lógica que usou, a de procurar outros crimes que o suspeito possa ter praticado nos locais onde viveu, outros países começaram a reabrir casos por resolver que possam eventualmente estar ligados a ele. Em Portugal o caso de desaparecimento de um menino inglês em Aljezur e o ataque sexual a uma mulher, que só agora se queixou, já foram descartados do seu role de crimes. Mas na Bélgica e na Alemanha ainda se investigam homicídios e raptos de crianças em que pode estar envolvido.
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Após 13 anos de mistério, poderá finalmente saber-se o que aconteceu a Maddie e como o suspeito conseguiu sempre escapar? Ou este será um crime sem solução?