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A jornalista do El País Beatriz Serrano esteve no Fólio, o festival literário internacional de Óbidos, para apresentar a sua estreia na literatura
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A jornalista do El País Beatriz Serrano esteve no Fólio, o festival literário internacional de Óbidos, para apresentar a sua estreia na literatura

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

A jornalista do El País Beatriz Serrano esteve no Fólio, o festival literário internacional de Óbidos, para apresentar a sua estreia na literatura

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

"O Desencanto" é um fenómeno literário, mas Beatriz Serrano pergunta: "Porque é que uma escritora jovem tem de ser sempre comparada?"

A perversidade da cultura laboral é o ingrediente principal de um livro que conquistou Espanha e que agora chega a Portugal. Em entrevista, a autora diz-nos que quis retratar uma "geração amargurada".

Chega de briefings e nem mais um team building. Marisa, uma mulher na casa dos trinta a trabalhar numa agência de publicidade, entope-se de ansiolíticos para se desligar da realidade do mundo a que tantos aspiram aceder e no qual se sente profundamente infeliz e sozinha. Está cansada do emprego e a máscara social, que enverga todos os dias, está a cair.

Beatriz Serrano, jornalista do El País, é a autora do livro O Desencanto, romance sensação em Espanha com edição prevista em várias línguas e países — em Portugal, o livro acaba de chegar às livrarias pela chancela Bertrand. Os direitos da adaptação televisiva também já foram assegurados.

Com 35 anos, a madrilena está ainda a “processar” a rapidez com que tudo aconteceu. Ao escrever sobre um dos grandes males da geração mais qualificada de sempre — a infelicidade da vida laboral —, Serrano trouxe para a literatura as preocupações que ocupam os dias do trabalhador moderno: a precariedade, as rendas incomportáveis, a ansiedade, o abismo do burnout, a solidão. “De repente sou Beatriz Serrano, a escritora. Ainda estou a tentar processar um pouco tudo”, diz ao Observador durante a sua passagem pelo Fólio, o festival de Literatura de Óbidos. Em entrevista, a jornalista e autora discorre sobre o desalento que a levou à escrita de uma obra de ficção e admite como ainda se sente “convidada, mais do que uma pessoa que tem a sua própria cadeira” na grande mesa da literatura.

Capa de "O Desencanto", de Beatriz Serrano (edição Bertrand Editora), que chegou às livrarias portuguesas este mês

Começando pelo título: a escrita deste livro partiu, de facto, de uma ideia de desencanto?
Sim, parte de um desencanto generalizado. Parte de muitas coisas, na verdade. Apercebi-me que, a partir dos 30 anos, a conversa em torno do trabalho e da má situação laboral tinha conquistado muito espaço nas conversas com os meus amigos. Toda a gente está amargurada, esgotada, numa situação em que não conseguiu o que pensou que ia conseguir. Chegamos aos 30 anos e dizemos: OK, fiz tudo isto e minha meta, por assim dizer, ainda está muito longe. E provavelmente nunca lá vou chegar. Havia uma sensação de pessimismo generalizado à minha volta e isso foi uma fonte de inspiração para o livro. Outra coisa que me chamou muito a atenção foi um livro da Annie Ernaux, que se chama Regarde les lumières mon amour (que não está editado em português), que relata as suas visitas ao supermercado. Comentavam uma coisa que é: se passamos uma hora da semana no supermercado, seguramente passamos 50 horas por ano ali, mas não há literatura passada no supermercado. É como se muitas partes do nosso dia a dia, as partes quotidianas, as partes talvez mais incómodas, aquelas sobre as quais não gostamos de pensar e que não recordamos, mas que ocupam a maior parte do nosso dia… Parece que as ocultamos, que não são temas literários, não são temas para fazer ficções, não são temas para recordar de nenhuma forma. Percebi que não havia literatura em torno do trabalho e do que o trabalho supõe no nosso dia a dia. Quer dizer, é claro que há literatura, não fui eu a primeira, não estou a dizer isso. Mas parece-me que há muita não-ficção, há muito ensaio, mas não havia esta parte mais literária, esse desencanto que faz com que, dia após dia, façamos uma série de repetições, através das quais vamos perdendo um pouco a nossa identidade, ou nos vamos afastando da nossa essência.

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O livro abre com uma citação de uma famosa canção dos The Smiths: “I was looking for a job and then I found a job and heaven knows I’m miserable now”. O trabalho é um dos temas pilares do livro. É um dos grandes temas desta geração?
Sim, é um tema premente desta geração porque é um problema muito grande. Esta geração confrontou-se com uma crise financeira, uma crise imobiliária e uma crise sanitária da qual não tivemos tempo de nos recuperar. Vemos como os nossos salários são muito baixos, o mundo está muito caro. É simplesmente uma questão de subsistência. É uma preocupação constante. Depois, interessa-me muito como a nossa geração se apoia muito no [lado] aspiracional para pensar que pertence a uma classe que na verdade não pertence. Uma pessoa que trabalha na caixa de um supermercado, ou um repositor, ou um condutor de autocarro, tem claro que é da classe trabalhadora, mas uma pessoa que tem uma profissão criativa, mesmo que ganhe o mesmo que um repositor, vai pensar que pertence a uma classe média. Que classe média é essa? Na verdade, é uma mentira! Ou seja, [a ideia de classe] está mais baseada em como nos apresentamos e como nos vendemos para fora através dos nossos gostos culturais. Ah, não, não sou da classe trabalhadora porque vejo filmes de David Lynch. Não sou porque não compro nessa loja de roupa de merda, mas compro na Uniqlo. No final, são decisões de consumo e culturais que nos afastam disso. Há um desfasamento com a realidade quando nos damos conta de que não somos o que pensamos que somos, somos outra coisa.

Então, sim, é um tema permanente nesta geração, mas, por outro lado, acho que chegar aos 30 e repensar toda a nossa vida é algo muito universal. Estava aqui no Fólio, neste festival, a falar com algumas autoras, e disse que, neste livro, a Marisa [protagonista de O Desencanto] descobriu que aquilo para o qual se preparou a faz totalmente infeliz. Mas [Gustave] Flaubert escreveu sobre uma mulher que tem que se casar porque é o que tem que fazer e isso a faz tremendamente infeliz, mais ou menos aos 30 anos, com Madame Bovary. É universal, quando chegamos aos 30 damo-nos conta do que é a vida. E aí dizemos: a vida é isto? É quando repensamos tudo aquilo que temos à nossa volta.

Beatriz Serrano nasceu em Madrid em 1989. É licenciada em Jornalismo pela Universidade Complutense daquela cidade e é jornalista no El País

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Sendo que há uma outra dimensão sobre o trabalho da Marisa. Se por um lado a insatisfaz, também argumenta que se sente uma privilegiada por ter um emprego que é ambicionado por muitos.
Exatamente.

Há quem aspire a um trabalho que, pese embora seja mal pago, seja pelo menos recompensador. Como é o caso da profissão de jornalista, de resto. No livro aborda a questão da saúde mental. Em Portugal há uma taxa de prevalência de 50% de probabilidade de burnout em jornalistas, por exemplo. Como foi abordar estas questões no livro?
Uma coisa que me surpreendeu quando o livro saiu em Espanha foi que muita gente que veio falar comigo era de jornalismo, muita gente que trabalha em agências de publicidade, muito pessoal médico, profissionais de saúde, muitos arquitetos. O que é que estas profissões têm em comum? São muito vocacionais. São profissões que, desde criança, sonhamos: quero ser veterinária, quero ser jornalista, quero ser médico, quero ser arquiteto. Então, efetivamente, há uma mentira. Todos nós, que nos dedicamos ao jornalismo, em alguns momentos da nossa vida escolhemos um salário pior e umas condições piores para estar no sítio em que queríamos estar. Porque é que essas profissões têm mais possibilidades de burnout? Obviamente porque vivem também das nossas ilusões e da nossa motivação. Quando vai assinar este artigo não quer entregar uma merda. Quer entregar uma boa entrevista. Preparou-a ontem, vai escrever um texto que considera que está à altura do que quer trabalhar. Está a colocar muito da sua própria identidade e de quem é. Da mesma forma que um médico não vai voltar para casa sem verificar como está o doente, porque ele pode morrer. Então, sim, acho que as profissões vocacionais têm sido uma desculpa para ir reduzindo as condições de um trabalho digno em troca dessa ilusão.

Teve em algum momento a tentação de ter uma redação como pano de fundo e não uma agência de publicidade?
Não, interessava-me muito a publicidade porque me parecia que dava esta dupla volta. É como uma máscara a mais, uma mentira a mais, uma fumaça. O que ela está a vender é mentira. Está a fazer gente infeliz, está a criar insatisfações para que as pessoas comprem os produtos. Parecia-me um mundo muito interessante. Quando estava a escrever o livro, um pouco antes, chegou às minhas mãos o ensaio Trabalhos de Merda, de David Graeber [2022, Edições 70]. Ele diz uma frase, que a Marisa diz no livro, sobre o que é um trabalho de merda, por definição. Não estamos a falar de trabalhos de lixo, todos sabemos o que é um trabalho de lixo, um trabalho muito mal pago, com más condições. Isso é um trabalho de lixo e não devia existir. Mas um trabalho de merda é um trabalho que ao indivíduo que o faz gera muita frustração, porque, no fundo, sabe que o mundo seria um lugar melhor se o seu trabalho não existisse. Sabe que não é necessário. Ele colocava como exemplo todos esses trabalhos intermediários que de repente se criaram nas empresas. Quando alguém me diz que trabalha numa consultora… Pergunto-me: o que é que realmente faz? Desculpa, mas porque te pagam tanto dinheiro? Para dizer: faz isso, isso está bem, agora tem de plantar muitas árvores… É um banco, todo mundo o odeia, mas se plantar muitas árvores terá o tema da responsabilidade social corporativa. Há muitos desses trabalhos intermédios como é a publicidade, que, no fim, também branqueiam muito o mundo no qual vivemos. Isso gera necessidades, gera ansiedade, nutre-se do desejo, por um lado, dos medos das pessoas e dos desejos das pessoas de alcançar o seu eu ideal. Parecia-me muito interessante que a Marisa trabalhasse nisso. Nunca pensei fazê-lo numa redação, na verdade.

Já que fala das ansiedades, outra questão que aborda é o facto de a protagonista, Marisa, tomar Orfidal.
Está sempre drogada.

Há um problema de consumo e de abuso de ansiolíticos, em Espanha, mas também em Portugal. Portugal é recordista da toma de ansiolíticos, com um consumo cinco vezes superior à média da OCDE. Como foi abordar este tópico sem cair na glorificação, sabendo que se trata de uma epidemia?
Parti de vários pontos. Li algo da OMS que dizia que em Espanha praticamente metade da população está medicada. Mais de 50% com ansiolíticos ou com antidepressivos. Temos um sistema de saúde público, como aqui em Portugal, que está colapsado. Então, muitas vezes, quem diz que lhe dói o peito tem como resposta: você tem ansiedade, tome estes medicamentos. É muito fácil conseguir ansiolíticos. Em muitos casos diagnostica-se ansiedade ou depressão e começa-se a tomar uma série de medicamentos que estão super normalizados. Uma outra coisa que me chamou a atenção, perante uma realidade que se torna insustentável, é que, para mim, o desencanto também tem que ver com a solidão. Este é um tema fundamental. A Marisa está muito sozinha.  Em grandes cidades, apesar de estarmos hiperconectados, estamos muito distantes uns dos outros.

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O livro tem Madrid, uma capital, como pano de fundo, mas podia ser qualquer outra.
Claro. Acontece em Lisboa, em Porto, em Barcelona, em Valência. Há uma epidemia de solidão, as pessoas cada vez se sentem mais sozinhas. Estamos ligados às nossas telas e não temos verdadeiras conexões humanas. Temos trabalhos que cada vez nos exigem mais de nós próprios. Com a tecnologia, um chefe ou um companheiro de trabalho pode-nos escrever às nove da noite. Temos rendas insustentáveis, salários que não sobem. De facto, a vida vai melhorar porque tomamos ansiolíticos. O problema não somos nós, em muitos casos. Uma das reflexões que queria propor é que a Marisa claramente tem muitos problemas mentais, mas alguns são exógenos, alguns vêm de fora. Não são internos. Ela não sabe o que fazer ou como sobreviver. Ela perdeu um pouco essa capacidade. Ela está medicada e mesmo que só dure uma semana, cada vez está pior. Chamou-me muito a atenção como se normalizou nos ambientes de trabalho o tráfico de ansiolíticos. Diz-se “estou nervosa” e há um colega que diz “toma, eu tenho um Orfidal”. Parece-me muito perigoso porque, no final, o que fazemos é ficar adormecidos, andar como zombies pelo mundo, tentando passar o dia até chegar em casa e pôr uma série na Netflix. Ao mesmo tempo, também falo sobre drogas ilegais no livro. É curioso que as drogas ilegais são super penalizadas na sociedade, ninguém se atreve a dizer “bom dia, companheiros de escritório, tomei MD no fim de semana”. Mas as drogas legais estão hiper normalizadas. Pensei: qual é a diferença realmente? Se no final são tudo formas de escape, formas de não estar presente, seja através do farmacêutico ou através do traficante. Interessa-me muito como utilizamos a química, em geral, para nos hackear e dizer: é sexta, estou com amigos, chamo o dealer e perco a consciência até segunda-feira, em que tenho que voltar a trabalhar.

"O Desencanto" é o seu primeiro romance, mas a autora já está a trabalhar num novo livro, que ainda não tem data prevista de publicação

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A protagonista é apresentada como uma mulher estranha, bizarra, mas à medida que o livro avança vamo-nos identificando progressivamente. Pensou em escrever uma clássica anti-heroína ou escreveu com a consciência de que isto sucederia ao leitor?
É muito complicado porque não escrevi a pensar se a personagem ia cair bem ou mal. Estava a criar uma personagem que queria que fosse realista. Uma pessoa tem infinitas contradições. Estamos a falar e pode sair daqui e dizer: que fixe. Mas se estou a ter um dia mau ou estou com alguns problemas pode dizer: que pessoa mais estranha. E sou a mesma pessoa, sou as duas ao mesmo tempo. O que queria era criar uma pessoa que fosse contraditória da forma mais humana possível. Era o que me parecia mais real. Há gente que me disse que não conseguiu terminar o livro porque não suportava a Marisa. Eu gostei dela desde o princípio. Não estava a tentar nada, queria só que fosse verosímil. Por exemplo, com o tema do feminismo. A Marisa tem um momento em que faz um rant quando se está a depilar porque vem aí o Pablo [vizinho com o qual se relaciona intimamente]. Ela diz: porque me depilo se sou feminista? Tem essas contradições que acho que são as contradições que qualquer mulher que se considere feminista. Depois de toda essa onda, desde 2016, depois do MeToo, depois de ter aprendido tudo, ainda sou uma mulher de, no meu caso, 35 anos, criada num país machista, católico, e tenho as minhas próprias contradições. E, no final do dia, não quero afastar o meu amante. Viver nessas contradições é o que me parece mais realista. E não criar uma personagem…

Unidimensional.
Perfeita. Quero que seja imperfeita porque isso é o que a faz real.

"De repente sou Beatriz Serrano, a escritora. Ainda estou a tentar processar um pouco tudo. O que tenho claro é que me sinto mais perto do que sou. Vou ter sempre inseguranças, vou ter sempre medo. Vou sentir-me sempre uma convidada na mesa [da literatura], mais do que uma pessoa que tem a sua própria cadeira."

A primeira parte do livro diz: “É perigoso espreitar para o interior”. Aproveito a deixa para lhe perguntar quanto tem O Desencanto de autobiográfico?
Diria que a Marisa e eu compartilhamos muitas coisas. O que o livro tem de autobiográfico é, sobretudo, o sentimento. A raiva, a sensação de… Qualquer pessoa já se sentiu inadequada de alguma forma. Quando estava a escrever o livro li uma teoria muito fixe de um sociólogo norte-americano chamado Erwin Goffman. Este tipo nos anos 60 escreveu uma teoria sobre o comportamento humano baseado no teatro. Dizia que, basicamente, a vida é uma representação. No momento em que saímos de casa estamos a representar, em maior ou menor medida. Se estamos com o nosso companheiro talvez representemos menos, sobretudo se já estivermos juntos há muitos anos, não no início, claro, aí estamos a fazer um papelão!

Digno de Óscar.
Somos a Meryl [Streep]! Mas se estamos com os nossos pais, muitas vezes continuamos a representar como filhas, mesmo que sejamos mulheres adultas. O mais distante disso, quando mais representamos, é nos ambientes laborais, porque não podemos responder o que gostaríamos de responder a uma pessoa que tem autoridade sobre nós. Não podemos dizer: és um idiota. Enquanto a um amigo podemos porque temos essa confiança. Este tipo dizia uma coisa muito bonita que era que só quando estamos dentro das nossas casas é que podemos relaxar, tal como um ator quando está atrás das cortinas,. Pensei muito nessa teoria quando estava a escrever O Desencanto.

Estas são máscaras, máscaras que caem, que se rompem. Atuações, teatro, cenários. Em muitos aspetos da minha vida, representei muito para tentar ser aceite por um grupo de gente que, no fundo, detestava. Não queria estar aí realmente, mas sentia que devia representar de alguma forma, que devia gostar deles. Acho que nesse sentido posso parecer-me com a Marisa. Aí consegue ver a fratura. Nunca fui tão radical como ela. Mas nesse sentido, acho que essa sensação de não pertencer, de sentir-se sempre fora, de que não encaixa, de que há algo que está mal em ti. Quando, na verdade, é como se todos estivessem representado também…

"A cada semana podemos ter uma obsessão nova na literatura", conta ao Observador Serrano, que elenca nomes como Annie Ernaux, Han Kang ou Rachel Cusk como algumas escritoras prediletas

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A partir desse pensamento, como observa a sua entrada no mundo literário? Sentiu-se aceite enquanto escritora?
É estranho. É como se de repente fosse uma pessoa diferente. De repente sou Beatriz Serrano, a escritora. Especialmente porque tudo o que aconteceu com este livro foi tão rápido. É como se ainda estivesse a aterrar. Ainda estou a tentar processar um pouco tudo. O que tenho claro é que me sinto mais perto do que sou. Vou ter sempre inseguranças, vou ter sempre medo, vou sempre sentir-me uma convidada na mesa, mais do que uma pessoa que tem a sua própria cadeira.

Na literatura?
Acho que sim. Pelo menos por agora. Não sei se mais adiante isso mudará. Mas ainda me sinto um pouco assim. E não porque me tenham dificultado a vida, acho que até tive sorte. Mas por enquanto ainda me sinto um pouco estranha. Sobretudo porque começamos a notar que as pessoas nos percecionam de forma diferente, com outra identidade.

Como acha que é percecionada?
Não sei bem.

Como gostaria de ser?
Como gostaria? Gostaria que me julgassem somente pelo que escrevo. E não por outras coisas. Suponho que fora de Espanha seja mais fácil. Mas em Espanha sou só mais uma jornalista que lançou um livro. E, bem, não somos iguais. Não estou a desmerecer ninguém, mas somos pessoas diferentes e temos caminhos diferentes.

"Há esta ideia do que é ser uma escritora jovem... Tentam-nos vender a todas como a próxima Sally Rooney. Seria maravilhoso, quem me dera que corresse tão bem como à Sally Rooney, mas parece que tem sempre de haver uma comparação com algo ou com alguém. Não sei... Acho que os homens têm mais identidade por si próprios."

Há cada vez mais escritoras a vestir também a capa de influencer, capitalizando no culto da personalidade que extravasa a obra. Há uma pressão adicional para as escritoras jovens mulheres se provarem além da escrita?
Sim. Com as mulheres sempre existe mais de tudo, acho. Com as mulheres, por exemplo, o que acontece é que não ligam nenhuma, até que ligam. É mais ou menos isso. Tenho consciência de que sou muito magra e loira e que por isso nesta sociedade não sou vista com seriedade. Porque, no final, sou uma mulher loira. É tão simples quanto isso. Acho que é mais difícil… Há esta ideia do que é ser uma escritora jovem… Tentam-nos vender a todas como a próxima Sally Rooney. Seria maravilhoso, quem me dera que corresse tão bem como à Sally Rooney, mas parece que tem sempre de haver uma comparação com algo ou com alguém. Não sei… Acho que os homens têm mais identidade por si próprios.

Depois do sucesso deste primeiro livro, já escreveu o segundo — Fuego en la garganta, entretanto finalista do Prémio Planeta —, para o qual se inspirou numa pequena viagem por Portugal…
Sim. O segundo livro que escrevi é, muito resumidamente, sobre uma menina que faz milagres. Passa-se nos anos 90, em Valência, e é uma viagem, um coming of age, até ela fazer 19 anos. Comecei a pensar que desde que há redes sociais e câmaras não há milagres. Que coincidência, não? Fiquei obcecada com a ideia de uma figura milagrosa, alguém que fosse capaz de fazer algo que não poderia entender. Há um ano estive em Portugal e fiquei obcecada com isso. Estava no Algarve e subi de carro até Fátima para ver como uma pequena cidade é capaz de se construir e crescer em torno da ideia de um milagre. Achei muito curioso e gostei muito de ver um pouco tudo o que têm ali montado.

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