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“Não se deixem morrer”. “Ninguém se sente vivo parado sempre no mesmo sítio”. Quem navega pelas redes sociais e procura por conteúdos relacionados com viagens, certamente já se terá deparado com alguma destas frases. As duas pertencem a Manuel Montes, autor do projeto Vagamundo, que consiste em percorrer o mundo… de bicicleta. Tudo começou há nove anos e, desde então, Manuel já esteve em 43 países e percorreu mais de 67 mil quilómetros. De Portugal à América do Sul, da Ucrânia ao Médio Oriente, o viajante encontra-se atualmente no Irão e, pelo meio, cruzou-se com… Cristiano Ronaldo.
Corria o ano de 2015 quando, no alto dos seus 25 anos e no seio do Regimento de Comandos do Exército Português, Manuel Montes, de 34 anos e natural de Serpa, decidiu que precisava de “abrir horizontes” e “conhecer o mundo” através dos seus olhos. “Tirei uma licença sem vencimento de três meses e saí de bicicleta de Beja com 75 euros. Quando fiquei sem dinheiro, andei a arrumar carros nas grandes cidades por onde passava. Foram três meses a viajar de bicicleta, 19 países e 6.100 quilómetros percorridos. Quando voltei da viagem regressei ao Exército e pensei: ‘Vou rescindir’”, começou por contar ao Observador, revelando depois que, quando revogou o contrato que o ligava ao Exército há seis anos, decidiu “ir para Marrocos”.
Foi nessa altura que descobriu um hobby que perdura até aos dias de hoje. Inicialmente, Manuel assumiu que não gostava de andar de bicicleta e que acabou por pegar naquele meio apenas “por necessidade”. “Tinha uma bicicleta velha e pensei que era o meio ideal para viajar. Ganhei o gosto pela bicicleta e é o melhor meio para viajar. Comecei para acreditar no mundo e resolver os meus problemas internos. Se não fosse a pedalar, não era igual. Como viajo de bicicleta e percorro as aldeias, acabo por absorver mais depressa a cultura. Levo sempre um bocadinho de todos os países por onde passo”, acrescentou, antes de revelar que “normalmente” viaja durante “seis meses”, utilizando os restantes “seis meses” para trabalhar “durante o verão no Algarve”.
Depois de Marrocos, Montes fez “Tailândia-Malásia-Indonésia, Alemanha-Iraque, Brasil-Paraguai-Bolívia, Israel-Palestina-Jordânia-Egito e Colômbia-Peru, que foi a viagem mais longa”, já que esteve seis meses em cada país. Atualmente encontra-se em viagem há praticamente um ano, num percurso que “começou em Portugal a 24 de novembro de 2023”, embora os primeiros quilómetros tenham sido feitos à boleia de “um camionista até à Eslováquia”. “Fui para a Ucrânia, onde estive três meses, depois Roménia, Bulgária, Turquia (três meses), Iraque (dois meses) e agora estou no Irão desde 29 de setembro. Apanhei o ataque do Irão a Israel. Estava a dormir e comecei a receber mensagens que diziam que tinha começado a guerra. As pessoas estavam todas felizes a festejarem na rua. No ataque de Israel ao Irão estava em Teerão mas não ouvi nada. Em breve vou para o Afeganistão, mas ainda não sei onde vou terminar. No Afeganistão tenho de decidir se faço Paquistão-Índia ou se faço Tajiquistão-Quirguistão-Cazaquistão”.
De Bagdade a Riade, com o Dubai pelo meio: o sonho de conhecer Ronaldo levou-o ao balneário do Al Nassr
Um ano depois de ter deixado Portugal, o fim parece longe de estar à vista de Manuel Montes. O caminho pode aparentar ser longo, mas o fundador do projeto Vagamundo não tem dúvidas que “esta é uma das viagens mais fáceis”. “Antes viajava com menos dinheiro e era um bocado mais survivor. Tornou-se mais fácil desde que comecei a ganhar seguidores e ganhei subscritores. Para quem viajava sem nada, ter 500 ou 600 euros já é muito. Também criei a minha loja online que ajudou. Financeiramente as viagens agora são mais fáceis”, explicou.
Esta viagem, que muitos apelidam de “loucura”, levou-o até à Arábia Saudita e ao encontro de Cristiano Ronaldo e Otávio, internacionais portugueses que atuam no Al Nassr. É um episódio inusitado que Manuel promete recordar por toda a vida. O desafio não foi fácil e o início remonta a Bagdade, capital do Iraque, e ao passado mês de setembro. O viajante encontrava-se no país e, quando percebeu que a equipa saudita ia visitar os iraquianos na primeira jornada da Liga dos Campeões asiática, tentou assistir ao jogo. Contudo, um pequeno percalço levou-o a adiar esse objetivo: afinal Ronaldo não tinha viajado com a equipa (1-1).
“Vi que o próximo jogo [fora] na Champions era em Teerão. Estava a 1.600 quilómetros e tinha um mês para lá chegar”. O próximo passo rumo ao objetivo estava definido e era ambicioso, mas perfeitamente ao alcance de Manuel Montes, que tinha um mês para chegar ao Irão. Porém, o destino voltou a pregar-lhe uma partida. “Entretanto aconteceu o ataque do Irão a Israel e mudaram o jogo para o Dubai. Nessa altura já estava em Teerão e não fui ao jogo (0-1)”, partilhou ao Observador. A missão parecia cada vez mais impossível, mas foi nesse momento que tudo mudou. Graças às redes sociais e ao projeto que criou nove anos antes, Manuel recebeu a mensagem que mudou todos os seus planos a curto prazo.
“Recebi uma mensagem do Fábio Vieira, fisioterapeuta do Al Nassr, a convidar-me para ir assistir a um jogo, com a possibilidade de conhecer o Ronaldo. Tinha um casamento no Dubai, que é a uma hora de avião de distância, e aproveitei para ver o jogo contra o Al Ain (5-1). Ele ofereceu-me o bilhete para a bancada central. Depois o Otávio quis oferecer-me um bilhete para a bancada VIP e o Talisca a camisola de jogo. No final do jogo, estive com o Talisca, ele deu-me a camisola e gravámos um vídeo. Também conheci o Ronaldo porque o Fábio falou-lhe da minha história. O Ronaldo chamou-me ao balneário e estivemos a falar durante cinco ou dez minutos. O Otávio também me quis conhecer, demos um abraço e tirámos uma fotografia”, revelou Montes, dando conta da “humildade” com que foi recebido pelo trio luso-brasileiro.
Entre as guerrilhas e o tráfico de droga: um “revolucionário” na Colômbia
Fazer viagens desta envergadura, ainda para mais utilizando uma bicicleta como meio de transporte, implica um grande esforço físico e psicológico, mas traduz-se em diversas histórias para mais tarde recordar. Uma dessas histórias remonta à Colômbia, quando Manuel Montes se encontrava a viajar pelo continente sul-americano. Numa altura em que se encontrava “há uma semana zona de guerrilha de Catatumbo, que fica entre a Venezuela e a Colômbia”, o português temeu pela própria vida, já que, “durante duas horas”, teve “uma arma apontada à cabeça”. “Estava na cidade de San Pablo e, numa avenida, parou uma carrinha à minha frente, o vidro baixou e ouvi: ‘Precisamos de falar’. A rua ficou vazia, eles saíram e já vinham com uma pistola apontada à minha cabeça. Começaram a fazer-me perguntas, revistaram-me tudo e disseram-me para entrar na carrinha. Pensei: ‘Já fostes, agora vais para a carrinha e já não voltas’”, começou por contar.
Ainda assim e apesar do receio, o episódio acabou por terminar com um final inusitado. “Sentaram-me e disseram-me para passar fotografias para um cartão de memória, de modo a conseguirem justificar o porquê de me terem deixado continuar a viagem. Comecei a mostrar os vídeos e a contar as histórias e eles acabaram por dizer: ‘És igual a nós. És um revolucionário fora do sistema'”. Mais tarde apercebeu-se que naquela zona predominava o Exército de Libertação Nacional (ELN), que ficou conhecido por ter raptado o pai de Luis Díaz, e que tinha sido aquela organização a ameaçá-lo.
Pais do futebolista Luis Díaz raptados na Colômbia, mãe resgatada
“Depois disseram-me: ‘Agora não podes continuar em frente’. Perguntei porquê. ‘Daqui para a frente é ainda mais perigoso. Tiveste muita sorte até aqui’. Perguntei se voltava atrás e eles disseram que sim, mas que não podia voltar naquela altura devido ao toque de recolher obrigatório. Eles chamaram um colega para me levar para trás e seguir outro caminho. Quando as pessoas regressaram à rua, perguntaram-me: ‘Estás vivo? É que eles primeiro matam e só depois é que perguntam’ [risos]. Qual é a ameaça de um rapaz de bicicleta? Desperta mais a curiosidade do que propriamente o sentido da ameaça”, acrescentou.
A viagem de regresso ao ponto em que tinha começado estava envolta em mais um momento peculiar. Sem local para dormir, o colega que ia buscar Montes convidou-o para “dormir na sua casa”. “Estive lá durante três dias e vi vários laboratórios de cocaína, parecia os documentários do Discovery Channel. Ele mostrou-me tudo e disse-me que podia filmar tudo. Chegou a oferecer-me [cocaína] para levar para Portugal. Eles não têm noção do quão perigoso é. Um quilo de pasta base é vendido a 500 euros à guerrilha, que por sua vez vende por 40 mil euros. Ele explicou-me que tentava vender duas toneladas de batatas de seis em seis meses e não conseguia. Com a cocaína vende o mesmo em dois meses e faz mais dinheiro”, explicou.
“O que é que tu fazes no meu país?”: do Exército turco ao aeroporto no Irão
Outro dos episódios mais marcantes que Manuel Montes partilhou com o Observador remonta à Turquia e ao início de 2017. “Fui preso pelo Exército”, começa por dizer, antes de explicar a origem da detenção e tudo o que terá levado àquele momento. “Tinha acabado uma espécie de guerra entre os turcos e os curdos. Quando fui da Alemanha ao Iraque passei pela zona leste da Turquia, entrando em Nusaybin, que também tinha conflitos com o Estado Islâmico. Deixei a bicicleta no hotel e fui com a câmara na mão para as zonas de guerrilhas. O Exército e a polícia apareceram, encostaram-me à viatura e levaram-me para dentro”, partilhou.
A partir daí seguiu-se um longo período de interrogatório, com vista a tentarem descobrir o passado e o presente de Manuel. Porém, a língua acabou por ser um grande problema para o viajante. “Quando tentei falar em inglês pensaram que eu era um jornalista norte-americano ou um espião. Quando o chefe apareceu perguntou-me: ‘O que é que tu fazes no meu país?’. Expliquei-lhe que viajava de bicicleta e gravava tudo. Ele disse que era proibido tirar fotografias às zonas de guerra e apagaram todas as fotografias das câmaras e do telemóvel. Contudo, o cartão de memória ficou com cinco fotografias numa pasta oculta. Quando saí da Turquia publiquei-as [risos]”, assumiu.
Já no Irão, onde ainda se encontra, Manuel Montes voltou a ter problemas assim que passou a fronteira, num processo que se estendeu durante várias semanas. “Estive 24 horas fechado numa sala de um aeroporto no Irão. Trataram-me com respeito e preocupação, mas pensei que nunca mais podia entrar no país. Depois fiz amizade com o oficial de ligação que me acompanhou do aeroporto até ao Dubai [para onde foi deportado, n.d.r.] e ajudou-me. Eu tinha um visto da Arábia Saudita no passaporte e, como eles têm problemas diplomáticos e o visto tinha sido obtido depois de ter estado no Irão, desconfiaram. Tive que tirar um novo visto no consulado do Irão em Istambul”, explicou.
Depois de conseguir o visto, o viajante voltou a tentar entrar no país, por via terrestre, e encontrou ajuda pelo caminho. “Fui até à fronteira e encontrei umas pessoas que me ajudaram. Depois apanhei um autocarro e entrei. Antes já tinha estado um mês no Irão, tendo entrado pelo sul do Iraque. Depois fui para o Dubai. O governo é muito fechado, mas as pessoas são muito abertas. É aquela máxima: ‘Quanto mais me prendes, mais quero sair’. Não esperava encontrar uma população com uma mente tão aberta. Vinha do Iraque, que é um país muito fechado, mas foi lá que encontrei as melhores pessoas a viajar. Eles paravam só para me dar água e comida. No Irão também é assim, mas não é tanto”, contou, frisando que o que mais o fascina nas viagens é o contacto com a população local.
A viagem “muito sentida” pela Ucrânia
O projeto Vagamundo não se ficou pelo Médio Oriente e pelo conflito que decorre naquela região do planeta, como também rumou à Ucrânia. Ao todo, Manuel Montes esteve na Ucrânia durante três meses e durante o inverno, que apelidou de “rigoroso”. Viajar de bicicleta durante esta estação do ano é, só por si, um desafio. “Na Ucrânia apanhei -17º celsius. Tinha que sair da bicicleta para os pés descongelarem”, começou por contar ao Observador sobre a viagem ao leste europeu.
“Foi muito sentido. Fui para a Ucrânia com o objetivo de mostrar a própria guerra. A guerra da Ucrânia é uma guerra territorial e uma questão de ego. Achei que era uma guerra que também é nossa e quis divulgar a cultura e o que a guerra causou. A maioria das pessoas que eu conheci perdeu amigos ou familiares. Isso deixou-me uma marca tremenda. Foi uma viagem complicada emocionalmente e por ter sido no inverno”, acrescentou o viajante, explicando que esteve em “Kharkiv, Zaporíjia e Mykolaiv”, zonas que foram fortemente afetadas pelos bombardeamentos.
“As pessoas queriam que eu me sentisse bem e davam-me aquilo que podiam. Quando saí da Ucrânia estava habituado ao recolher obrigatório, às sirenes e aos bombardeamentos… foi muito difícil. Na primeira noite que passei na Roménia estava na rua e tive receio por causa do recolher obrigatório”, reiterou sobre a experiência vivida em solo ucraniano.
As dificuldades de quem viaja pelo mundo de bicicleta e o futuro… no Afeganistão
Movido pelo “desconhecido”, Manuel Montes assume que não tem medo de nada quando lhe perguntamos o que é que mais lhe custa quando sobe ao selim da bicicleta para percorrer o planeta a pedalar. “Quanto mais ouvimos falar mal de um sítio, mais quero lá ir. Quando ouvimos falar mal do Iraque, mais quis lá ir. Quando ouvimos falar mal do Irão, mais quis cá vir. Nós só conhecemos 2% da realidade”, sublinhou.
“Gosto de estar sozinho. A solidão não me afeta. Estive no Iraque e, nas últimas duas semanas, rejeitei muitos pedidos de várias pessoas que me convidaram para ir para a casa delas – é muito normal lá. Sentia falta de estar sozinho e preferi dormir na tenda. Eles não gostam de estar sozinhos e por isso têm famílias muito grandes. Não é por mal. Vou-me fortalecendo sempre psicologicamente e gosto de desafios. As subidas são o mais difícil… tenho uma bicicleta com 100 quilos. Uma coisa que me desmotiva é a chuva. O psicológico começa a ir abaixo quando molhas aquilo que te vai aquecer”, completou.
O futuro é incerto como o próprio assume e prefere que assim seja. Para já, a única certeza é que o caminho vai prosseguir pelo continente asiático e a próxima paragem dar-se-à no Afeganistão, país que deverá “ser mais uma Ucrânia, mas com estradas piores”, dado o aproximar de um “inverno rigoroso”. Os meios “são poucos”, os recursos praticamente inexistentes e o clima de instabilidade e incerteza está cada vez mais vivo. Nada que não abale alguém que não se quer deixar morrer.