787kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

i

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O fiel jardineiro, o guarda-redes que levou um tiro e o musical que ficou por estrear em Campo Maior. “Sem Nabeiro, teria sido só Campo"

Foi o “guardião” de Campo Maior e não há na vila raiana quem não tenha uma história com o comendador. Do desporto à cultura, o toque de Rui Nabeiro chegou muito além do café.

Não há pedra da calçada em Campo Maior que não tenha o dedo de Rui Nabeiro. Um jardim maltratado era motivo para o fundador da Delta pegar no telefone. Uma muralha ao abandono rapidamente se transformava num dos maiores projetos de requalificação do país. Rui Nabeiro era assim também com as pessoas. Que nem por isso desmobilizavam quando o ouviam dizer: “Hoje é domingo, é dia de descanso, mas amanhã cedo tratamos disso”. Em Campo Maior, há um longo domingo que está agora a começar.

Do bairro à Primeira, o clube que era família

A morte de Rui Nabeiro no passado domingo, 19 de março, ainda não é palpável na terra que cresceu à volta da quarta letra do alfabeto grego. Em Campo Maior, os verbos ainda se conjugam no presente. “É uma pessoa como não existe outra igual”, diz Carlos Restolho, que na segunda-feira em que a vila raiana parou para homenagear Rui Nabeiro, destoa das milhares de pessoas que saíram à rua de luto. Enverga o verde bandeira do Campomaiorense.

Numa vila onde não há seis grãos de separação, todos o conhecem por Camané. Para Rui Nabeiro era “o meu guarda-redes”. Começou a segurar bolas aos nove anos e só parou no ano em que o Campomaiorense, presidido primeiro por Nabeiro pai e depois pelo filho, chegou à primeira divisão, com Manuel Fernandes ao comando. “A minha educação foi no Campomaiorense, que era uma família, como se fosse a Delta. Ele frisava isso constantemente. Eu sinto-me da família”, conta ao Observador.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A “época de ouro” do clube da terra foi acompanhada de perto pelo comendador. “Ia sempre ao balneário dar-nos uma palavra nos jogos em casa. Ganhávamos um alento inigualável. Mudou muitas vidas com aquele clube”, lembra. Estrelas como Jimmy Hasselbaink ou Beto “ficaram com uma ligação muito grande a Campo Maior e ao senhor Rui”. E muitos miúdos deram ali os primeiros passos.

Rui Nabeiro. Um milionário diferente que tinha saudades de viver mais tempo

Camané foi obrigado a largar as redes depois de um tiro quase lhe levar a mão num acidente de caça. “Passados uns dias, o sr. Rui entrou-me pelo quarto do hospital dentro. São coisas que não se esquecem”.

A glória do Campomaiorense também se esvaiu. Depois dos anos da primeira divisão, o entusiasmo da terra esmoreceu. “Foi-se o bairrismo”. Terá sido isso, acredita, que fez com que João Manuel Nabeiro acabasse com o futebol do Campomaiorense. “Eu, que sou do futebol, compreendi. Acabou com a equipa de futebol sénior mas fez um clube de saúde para toda a população de Campo Maior, que tem recorrido a ele nos últimos anos. Foi uma mais valia. Preferiu canalizar o dinheiro para a vertente social”.

Só por uma vez Camané se lembra de ter ido bater à porta de Rui Nabeiro. “Fui um dos fundadores do Campomaiorense Veteranos. Tínhamos na equipa cinco ou seis da altura em que ele era presidente, e tudo o que pedíamos ele dava”, recorda. “Há uns anos houve um torneio no Algarve com grandes equipas, e nós queríamos entrar, mas só a inscrição eram seis mil euros”. Os bailes e quermesses não foram suficientes para encher o mealheiro.”Fomos falar com ele e disse logo que nem precisávamos de pedir. Era para ir para a frente. A uma semana do torneio chamou-nos. Tinha mandado fazer tudo novo, fatos de treino, equipamentos, tudo para levarmos. Podia estar aqui horas a falar dele”.

A glória desportiva de outros tempos dificilmente voltará, vaticina Carlos Restolho. O que aprendeu no clube aplica agora na sua própria escola de futebol, que nasceu em Badajoz mas já passou a fronteira. O futuro não o preocupa. “Os bons genes ficaram cá”.

Carlos Restolho, conhecido por Camané, foi guarda-redes do Campomaiorense.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“Para esta família, estarei sempre disponível”

Na árvore genealógica de Arlindo Cordeiro, os ramos confundem-se com a história do café de Campo Maior. Foi dos primeiros a trabalhar na “fábrica grande”, conta. Foram 36 anos de Delta. A reforma acabou por chegar aos 62. Mas os jardins da família Nabeiro ainda florescem às suas mãos.

Foi através da mulher, que trabalhava para a “dona Alice”, mulher de Rui Nabeiro, que Arlindo Cordeiro entrou na família Delta. “Na altura torrávamos o café em Campo Maior, os sacos vazios iam para o monte onde hoje é a fábrica”, conta. “Trabalhei muitos anos no café, depois o meu chefe perguntou se queria mudar, e fui para a publicidade. Às segundas-feiras dormíamos no Altis, em Lisboa, e às sextas voltávamos a Campo Maior para voltar a carregar. Corri o país inteiro a montar toldos, luminosos e estruturas”.

Depois da reforma, Arlindo não conseguiu recusar um pedido da “dona Alice”, para que fosse tratar do jardim duas vezes por semana. Continua a fazê-lo para a “dona Lena”, filha de Nabeiro. “Não era capaz de dizer que não. O último dia, não sei quando será. Até eu poder, para esta família estarei sempre disponível. Os meus filhos dizem a mesma coisa”. João e Luís também trabalham na Delta.

Arlindo Cordeiro trabalhou na Delta durante 36 anos.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Foi com um deles que Arlindo Cordeiro viveu um momento de aflição há quase duas décadas. João jogava futebol no Elvas e 15 minutos antes de um jogo em Loures bateu com a cabeça num muro de betão. Esteve 11 dias em coma profundo no Hospital de Santa Maria. “O senhor Rui soube e deu-nos tudo. Casa, dinheiro, comida. Dispuseram uma pastelaria para irmos comer, deu-nos tudo”. João recuperou e passado um ano e meio voltou a jogar. Hoje trabalha na divisão de açúcares da Novadelta.

Com a morte de Rui Nabeiro, Arlindo Cordeiro não antecipa dificuldades, mas espera mudanças. “O senhor Rui conhecia a cara das pessoas. Perguntava: ‘tu não és filho deste ou neto daquele?’, e arranjava um emprego. Agora é mandar currículos”. E esperar.

O primeiro supermercado de Campo Maior e as “caras bonitas”

Um concurso que convidava a juntar selos que vinham em pacotes de café e tinha como prémio uma viagem à Madeira foi o primeiro contacto de Maria João Monforte com a Delta. Tinha acabado de entrar na idade adulta quando foi contratada para fazer a promoção do passatempo. Mas a família Nabeiro estava presente desde que nasceu. A tia de Maria João, hoje com 96 anos, foi uma das governantas que ajudou a criar os filhos do comendador. “Está inconsolável”.

A ligação é umbilical. “O senhor Rui era o padrinho dos casamentos todos, foi padrinho dos meus pais. Não dizia que não, ajudava o casal e ajudava à festa”. O pai da atual funcionária do Meu Super, antiga Loja Alentejo, era torrador de café quando antes da Delta havia a Camelo. Irmão e cunhada também trabalham para a empresa. “Toda a gente tem família na Delta”. Só a própria Maria João já não é funcionária da família Nabeiro. Mas, garante, é como se fosse.

Segundo a organização das cerimónias fúnebres, estiveram esta segunda-feira cerca de 5 mil pessoas a prestar homenagem a Rui Nabeiro

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

A Delta já tinha colocado Campo Maior no mapa, mas a vila ainda carecia de desenvolvimento. Foi nessa altura que Rui Nabeiro decide investir naquele que foi o primeiro supermercado da Vila, a Loja Alentejo, que teve uma gémea em Elvas. “Ele vinha cá todos os domingos e falava a toda a gente. Dava 30 beijinhos se fosse preciso. Gostava de nos ver sempre bem arranjadas, era uma pessoa elegante, e dizia ‘podem pintar os lábios que não faz mal’. Quando não sabia o nome de alguém dizia ‘oh cara bonita’. Só na altura da pandemia é que deixou de cá vir”. A concorrência e o foco noutros negócios fez com que vendesse o supermercado à Sonae. “Já era muita coisa”.

Rui Miguel Nabeiro, o sucessor do império Delta que não quer ser uma cópia do avô

Como quase todos os campomaiorenses, Maria João também tem uma história para contar que não tem que ver com trabalho. “O meu pai teve um problema de saúde que aqui não dava para resolver, nem nos arredores. Tivemos de recorrer ao IPO [Instituto Português de Oncologia]. Mas como é que podíamos ir para o IPO assim de repente? Fomos ao senhor Rui e explicámos a situação. No dia seguinte, estava com o meu pai no IPO, com um conhecido do senhor Rui que nos encaminhou. E como eu há muitos”.

A presença de Rui Nabeiro era uma constante na terra. “Houve uma inauguração de uma obra e veio cá o Presidente da República ou o primeiro-ministro. Levei o meu filho e os miúdos, assim que viram uma figura com um ar importante, começaram a bater palmas e a gritar ‘senhor Rui!’. Para eles, qualquer pessoa com um aspeto mais distinto era o senhor Rui”, lembra. O que seria de Campo Maior sem Rui Nabeiro? “Seria só Campo”.

A educação no centro

Todos os anos, no mês de março, os alunos do Centro Educativo Alice Nabeiro apresentam a peça de teatro que andaram a ensaiar nas semanas anteriores. “É escrita, encenada e musicada por nós”, conta Ana Paio, animadora sociocultural e responsável pela oficina de expressão dramática no Centro Educativo há 15 anos, desde que foi inaugurado.

O musical deste ano chama-se “Egresso ao passado”, assim, sem “r”. “Porque de tanto querermos adivinhar o futuro, às vezes temos de regressar ao passado”, explica. A estreia estava marcada para este domingo. Mas o dia 19 de março ficaria marcado não por uma estreia, mas por um fim. “Adiámos a apresentação. O senhor Rui ficaria orgulhoso dos meninos se tivesse chegado a ver”.

Os “meninos” são hoje 180, e já não precisam de ser filhos de funcionários da Delta, como acontecia quando o Centro foi criado. Hoje, qualquer criança pode entrar. Mas a lista de espera é grande. Liliana Contradanças, funcionária da Delta há 20 anos, teve Sebastião há quase três. Está inscrito no Centro desde os três meses e para o ano deverá ter lugar cativo. “O meu filho está cá [vivo] hoje graças ao senhor Rui”, revela. Foi Rui Nabeiro que, em 2020, se desdobrou em chamadas para hospitais após um parto que se revelou difícil.

Vários foram os restaurantes e lojas que hoje encerraram portas para que proprietários e funcionários pudessem ir prestar homenagem a Rui Nabeiro

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Quando Sebastião entrar para o Centro Educativo, aqueles que foram os primeiros alunos já estarão a terminar a faculdade. “A relação deles com o centro, mesmo depois de saírem, fica muito forte. Trabalhamos a tempo inteiro com crianças dos três aos seis anos e depois, das 16h, com os mais velhos. Quando saem da escola o autocarro da empresa vai buscá-los. Sentimos que eles têm sempre vontade de fazer mais. É o espírito da nossa casa”.

Segundo Ana Paio, o Centro “nasceu de um sonho do senhor Rui, que era ter uma instituição de solidariedade”. Começou com uma equipa de voluntários em hospitais e lares, e foi crescendo, até ganhar o conceito que tem hoje. “Ele não queria um simples ATL. Queria uma coisa diferenciadora. Temos ciências, expressão dramática, música, inglês, artes e até uma academia de ténis”.

O sonho de Rui Nabeiro, ao qual deu o nome da mulher, acabou por expandir-se para todo o país, através de um programa de formação. Hoje, o manual de empreendedorismo “Ter ideias para mudar o mundo” chega a centenas de escolas. “Queria deixar uma marca. E conseguiu”.

O “guardião” de Campo Maior que podia ter sido mais que ministro

Ricardo Pinheiro tinha acabado o curso de engenharia eletrotécnica nem há quatro anos e trabalhava na Delta quando Rui Nabeiro lhe propôs um desafio. “Pensei que era para ir remodelar a linha de açúcar em Angola”, admite. Não podia estar mais longe. O desafio era atirar o “miúdo” de 27 anos para a presidência da Câmara de Campo Maior. Cargo que o próprio Nabeiro tinha ocupado entre 1977 e 1986.

Ricardo Pinheiro hoje senta-se nas bancadas da Assembleia da República. Mas quando começou a trabalhar, o que queria mesmo era andar de fato-macaco. “Passei duas semanas sem dormir depois de ele falar comigo”. A família materna tinha uma relação próxima com a família Nabeiro, e o futuro na Delta parecia assegurado. Ainda durante a faculdade, Ricardo Pinheiro aproveitava os fins de semana para aplicar na Delta o que tinha aprendido durante a semana nos bancos do Instituto Politécnico de Castelo Branco.

“Foi muito difícil, era impensável para mim nessa altura”, recorda. Mas Nabeiro “começou a alimentar a ideia” e o atual deputado agarrou-a. Ganhou as eleições, pelo PS, por uma margem mínima: 48% contra 47% do adversário. Depois, seguiram-se dez anos de mandatos sempre acompanhados de perto pelo “guardião” de Campo Maior.

“Foi uma relação de mais de 25 anos praticamente diária. Fizemos um trabalho fantástico. Ele era muito atento ao detalhe, à manutenção das coisas, à organização. A todas as pequenas coisas que tinham que ver com organização da terra”, lembra.

Em frente à estátua de Rui Nabeiro -- no centro da Vila -- foram depositadas flores e Velas. Na principal rotunda foi colocado um cartaz com a frase "Obrigado, Sr. Rui"

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

A cultura e as Festas do Povo estavam entre as principais preocupações de Nabeiro. “Pensámos juntos grandes projetos, como a maior requalificação de uma fortificação abaluartada em Portugal, a do castelo de Ouguela. Pensámos o projeto todo”.

A “genética de autarca” durou até aos 91 anos, diz Ricardo Pinheiro. “Ainda nas últimas cheias, em dezembro, houve uma requalificação de espaços, e já nem eu nem ele tínhamos que ver com a gestão do território, mas dizíamos um ao outro que as pedras deviam ser postas de forma diferente, que o corte das ervas deveria ser de outra maneira. Tudo para ele era melhoria contínua. Ele era muito oriental na forma como organizava a empresa, mas também a participação publica”.

Para Ricardo Pinheiro, a maior herança de Rui Nabeiro é “a boa interpretação do que está à nossa volta, saber o que podemos fazer, mesmo quando uma coisa não depende diretamente de nós”. O deputado não tem dúvidas de que Nabeiro “foi o exemplo do que seria um grande ministro da Coesão”. E poderia ter sido ministro? “Se soubesse as vezes que ouvi pessoas a pedirem para ele ser mais do que ministro…”. A ambição nunca o levou por aí. Talvez nunca lho tenham pedido. A resposta até poderia estar preparada. “Amanhã cedo tratamos disso”.

Assine por 19,74€

Não é só para chegar ao fim deste artigo:

  • Leitura sem limites, em qualquer dispositivo
  • Menos publicidade
  • Desconto na Academia Observador
  • Desconto na revista best-of
  • Newsletter exclusiva
  • Conversas com jornalistas exclusivas
  • Oferta de artigos
  • Participação nos comentários

Apoie agora o jornalismo independente

Ver planos

Oferta limitada

Apoio ao cliente | Já é assinante? Faça logout e inicie sessão na conta com a qual tem uma assinatura

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.

Assine por 19,74€

Apoie o jornalismo independente

Assinar agora