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Dezenas de homens correm pelas ruas. “O que está a acontecer?”, pergunta um deles. “O regime caiu“, responde a voz atrás da câmara. “Ah”, responde o homem, e continua a correr. Este vídeo é um de muitas centenas que foram gravados ao longo de domingo — horas depois de os rebeldes sírios terem deitado abaixo o regime de Bashar al-Bassad — e foi gravado perto da prisão de Sednaya, nos arredores de Damasco, onde milhares de presos foram libertados pela oposição.
Sednaya, conhecida como “o matadouro”, era o “centro de uma rede industrial” de prisões do regime. Estima-se que, ao todo, estivessem detidas por toda a Síria 136 mil pessoas, muitas delas vítimas da brutal repressão do regime, que este sistema de detenção ajudou a manter. A entrada dos rebeldes na prisão revelou um cenário de violência que Assad negou continuamente: presos esfomeados, doentes, com marcas de tortura, sem acesso a higiene.
Não só em Damasco, mas um pouco por todo o país, autoridades civis, cidadãos e jornalistas juntaram-se aos rebeldes dentro das prisões. As autoridades desdobraram-se em esforços para encontrar pessoas que estariam em celas subterrâneas. Os civis procuravam familiares presos que estavam desaparecidos há anos e dos quais desconheciam o paradeiro. Alguns prisioneiros desconheciam até que Assad filho tinha substituído Assad pai no poder, quanto mais que esse poder tinha caído. Os jornalistas capturaram imagens brutais, mas também histórias de esperança e de reencontros.
As buscas pelos prisioneiros nos subterrâneos de Sednaya, que ninguém encontrou
Quando os rebeldes invadiram Sednaya, as primeiras imagens foram semelhantes às que já tinham sido vistas noutras cidades: principalmente homens, magros, de cabeça rapada, muitos deles com dificuldades em andar ou falar. O The Guardian relata a história de um estudante de medicina que foi preso há 13 anos. A história foi partilhada pela família, porque o homem, agora com 33 anos, perdeu a memória e mal consegue falar.
Outras imagens mostram os rebeldes a entrar numa parte da prisão em que estão detidas mulheres. As vozes atrás das câmaras dizem-lhes para não terem medo, que as vão libertar. Vê-se também uma criança pequena, que vivia dentro da prisão com a mãe. Uma imagem viral, o “rosto”da nova Síria, chamam-lhe. Rapidamente, os civis juntaram-se aos rebeldes dentro das prisões e instala-se o caos quando circularam relatos de que Sednaya teria uma ala subterrânea com milhares de detidos — a ala vermelha. Muitos deles, estariam “a sufocar até à morte”, devido à falta de ventilação.
A administração local de Damasco recorreu às redes sociais para fazer um apelo a soldados e guardas prisionais do regime, que tinham abandonado os seus postos quando os rebeldes se aproximaram da cidade. Pediam-lhes, conta a BBC, que divulgassem os códigos de acesso eletrónico à ala subterrânea para libertar prisioneiros “que podiam ser vistos nas imagens de videovigilância”.
Face aos relatos, a Defesa Civil da Síria — a organização conhecida como os Capacetes Brancos — ativou equipas de busca e salvamento, que incluíam especialistas de arrombamento, unidades caninas, pessoal médico e guias que conheciam a prisão. “Os Capacetes Brancos enviaram cinco equipas de emergência especializadas para a prisão de Sednaya para investigar celas subterrâneas escondidas, que, segundo os sobreviventes, albergam detidos”, escreveram no X.
Rebels are still struggling to navigate the sprawling prison complex, which is built like a labyrinth.
Inside the cells, the prisons look like hell on earth. Tiny, cramped, walls filled with scrawled handwriting from detainees past. Medieval cages where prisoners were kept. pic.twitter.com/tTbzzaH8Hn
— Will Christou (@will_christou) December 9, 2024
Imagens captadas por um repórter do The Guardian em Damasco mostram os rebeldes a tentar decifrar plantas da prisão para encontrar as celas que podiam ver nas câmaras, mas às quais não tinham acesso. Noutras, partilhadas pela Al Jazeera, estão civis a destruir o chão e as paredes para forçarem acessos.
Milhares de pessoas entravam nas celas à procura de familiares. “Disseram-nos que havia três níveis subterrâneos e que as pessoas estavam a sufocar, mas não sabemos onde são”, diz um homem ao jornal britânico, dentro da prisão. “Os que saíram daqui pareciam esqueletos. Imagine como estarão os que estão no subterrâneo“, acrescenta.
Scenes of chaos from Sednaya Prison – Assad's most notorious torture branch – as thousands clamber to find their missing loved ones.
Civil defence are working to open underground cells, where it is rumored detainees are running out of oxygen. pic.twitter.com/OJkmcp9w5m
— Will Christou (@will_christou) December 9, 2024
As buscas duraram toda a noite, mas os prisioneiros da ala vermelha não foram encontrados. Entre eles estaria o tio de Yamen al-Allay, que desapareceu em 2017. O rapaz de 18 anos abandonou a prisão na madrugada de segunda-feira, sem o ter encontrado, assim como muitas outras pessoas que prometeram voltar. Ao mesmo tempo, milhares de sírios continuavam a chegar a Damasco de outras partes do país para continuarem as buscas pelos seus familiares.
Contudo, na tarde de segunda-feira, a Associação pelos Detidos e Desaparecidos na Prisão de Sednaya (ADMSP) esclareceu que todos os prisioneiros tinham sido libertados. Mais: nenhum tinha sido mantido em subterrâneos. “Não há nenhuma verdade em detidos presos debaixo da terra. A associação e toda a equipa dentro da prisão podem confirmar que está vazia, sem detidos, em todos os seus edifícios“, afirmou a associação, num comunicado citado pela BBC. Ainda assim, ao longo do dia os Capacetes Brancos mantiveram as buscas por “portas escondidas e caves não descobertas”.
K9 teams are assisting in the search at Sednaya Prison, focusing on hidden doors or undiscovered basements that might hold detainees beyond those released yesterday.#WhiteHelmets #Saydnaya pic.twitter.com/dgf2gjBoFv
— The White Helmets (@SyriaCivilDef) December 9, 2024
Tortura, “exterminação” e um crematório. O “matadouro” de Damasco que suportou a guerra de Assad
Chegaram a estar presas em Sednaya 20 mil pessoas. Muitas delas morreram na prisão, muitas mais foram sujeitas a tortura. No primeiro ano de guerra, 13 mil pessoas foram mortas em Sednaya: duas vezes por semana, dezenas de pessoas eram retiradas da cela a meio da noite para serem enforcadas — os seus corpos eram enterrados em valas comuns. “Sednaya é o fim da Humanidade”, denunciou um antigo guarda da prisão à Amnistia Internacional.
Segundo a Syrian Network for Human Rights (SNHR), mais de 136 mil pessoas foram presas pelo regime de Assad entre março de 2011 e agosto de 2024, espalhadas por prisões e centros de detenção por todo o país. Mas o destino final dos prisioneiros era, muitas vezes, a prisão de Sednaya, onde chegaram a estar presas em simultâneo as tais 20 mil pessoas, relatou a Amnistia Internacional.
Já o alto-comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos realizou centenas de entrevistas com antigos detidos. “O governo cometeu crimes contra a Humanidade de exterminação, assassinato, violação ou outras formas de abuso sexual, tortura, detenção, desaparecimento forçado e outros crimes desumanos“, pode ler-se no relatório que daí resultou, apresentado em fevereiro de 2016.
A maior parte dos prisioneiros testemunhou colegas de cela a morrer: espancados até à morte, vítimas de ferimentos infligidos em interrogatórios ou de doenças contagiosas para as quais não receberam medicação, higiene ou alimentação adequada para as combater. As Nações Unidas e as ONG que se debruçaram sobre o tema são unânimes no nome que dão a Sednaya: o matadouro. Imagens de satélite captadas em 2017 mostram a construção de um novo edifício, um crematório, que oculta a verdadeira escala dos massacres que ocorreram na prisão.
Depois de as equipas dos Capacetes Brancos entrarem na prisão de Sednaya, os repórteres da Anadolu fotografaram salas cheias de sapatos perdidos e roupas. Charles Lister, diretor do Instituto MEI Síria, escreve na rede social X que “as cenas que estão a sair de Sednaya são assustadoras”. “Isto não era só uma prisão e um centro de tortura, era um campo de concentração. Um verdadeiro horror.”
Lister fala em “montanhas de corpos”, “salas cheias de roupas e sapatos perdidos”, “esqueletos” ou “corpos parcialmente destruídos por ácido”.
Reporters from Anadolu, following Syrian White Helmet rescue teams, found rooms filled with hundreds of discarded shoes and other items of clothing in Assad’s Sednaya prison. pic.twitter.com/QhRlDyN6kN
— OSINTtechnical (@Osinttechnical) December 9, 2024
Mas Sednaya foi apenas o coração de um sistema “à escala industrial” que permitiu ao regime de Assad deter, prender, torturar e matar rebeldes e simpatizantes — muitos deles civis — e travar a rebelião que se levantou contra ele. Documentos confidenciais dos serviços de segurança sírios, citados pelo The Guardian, descrevem o sistema de detenção como “chave para esmagar dissidentes e travar o ímpeto dos protestos pacíficos”.
Ou seja, enquanto o exército sírio, com a ajuda da Rússia e do Hezbollah, combatia os rebeldes, as prisões e centros de detenção — e os métodos brutais que punham em prática — faziam frente à oposição civil. As detenções também foram feitas pelas outras partes envolvidas na guerra, como o autoproclamado Estado Islâmico ou os rebeldes do Hayat Tahri al-Sham (HTS), que agora fizeram cair o regime. Mas olhar novamente para os números da SNHR permite ver que 85% de todas as detenções foram feitas por forças do regime.
Os libertados de Alepo e Hama, os reencontros e as chamadas para o estrangeiro
Dada a relevância que as prisões tiveram para a manutenção do regime de Assad, é compreensível que os rebeldes do HST tenham definido como prioridade a libertação dos prisioneiros. Porém, essa campanha começou bem antes de domingo: em cada cidade que tomavam, a caminho de Damasco, as portas das prisões eram abertas.
Em Alepo, cerca de 5 mil pessoas foram libertadas no dia 29 de novembro. Safi al-Yassin, um homem de 49 anos, foi uma destas pessoas e relata à Al Jazeera a “felicidade indescritível”. Encontrava-se a cumprir uma pena de 31 anos por ter participado num protesto em 2011. Da sua libertação, recorda o som dos confrontos e depois o silêncio, seguido de cânticos vitoriosos. Do cativeiro, lembra os 14 anos de “tortura severa física e psicológica”, um dos quais foi passado em Sednaya, que diz ser “indescritível” e onde viu um homem idoso com quem partilhava a cela a morrer.
Mas este cenário de horror também foi vivenciado em Alepo, descreveu Hala ao mesmo canal. A mulher relata a morte de uma rapariga de 16 anos, que morreu ao seu lado, depois de ser torturada. A jovem tinha sido presa juntamente com um estudante universitário, uma idosa e dois médicos, acusados de terem dado tratamento a insurgentes. Agora, Hala quer focar-se na alegria maior de ter contactado novamente a família: “Foi como se tivesse nascido outra vez“.
Hala já reencontrou a família. Mas muitos, como Ali Hassan al-Ali ainda não tiveram essa sorte. Foi detido em 1986, à data com 18 anos, no norte do Líbano. Na passada quinta-feira foi libertado da prisão de Hama, a meio caminho entre Alepo e Damasco. O relato da sua história foi feito ao The Guardian pelo irmão mais novo, Moammar Ali, que soube da libertação depois de ter recebido uma série de mensagens de amigos e família, que lhe estavam a enviar fotografias de um prisioneiro libertado em frente à prisão de Hama, dizendo que eram parecidos. Era o irmão, 39 anos depois. Agora, Moammar vive em Akkar, no Líbano e ainda não se reencontrou com Ali Hassan al-Ali. “Quando ele vier para casa, teremos uma grande celebração. Mas até o cheirar, até poder dizer ‘Aqui está o meu irmão’, não conta”, diz Moammar.
Jihad Dalain também ainda não reencontrou o irmão, Majd, de 24 anos, relata o Washington Post. Mas já falou com ele por telefone. Majd foi detido em 2023, na cidade síria de Darayya. Os Dalain acabaram por se mudar para o sul da Turquia. Foi aí que Jihad recebeu uma videochamada do irmão, na manhã de domingo, a anunciar que ia voltar para casa. Majd estava detido na prisão de Adra, em Damasco, a última cidade a ser libertada pelos rebeldes.
Listas de nomes, centenas à porta da prisão e recompensas das autoridades. Onde estão os desaparecidos?
As autoridades não têm a certeza de quantas pessoas estarão desaparecidas. Os dados das ONG apontam para cerca de 100 mil. Mas o fundador da SNHR, Fadel Abdulghany, adianta que muitos poderão ter morrido na prisão. “Muitos dos que já desapareceram antes, acabámos por descobrir que tinham sido mortos. Um número considerável foi morto sob tortura”, afirmou ao The Guardian. O facto de muitas das pessoas mortas em Sednaya terem sido enterradas em valas comuns ou cremadas impede que sejam identificadas.
A isso somam-se os relatos contraditórios sobre a existência de subterrâneos em Sednaya. Os Capacetes Brancos anunciaram, na segunda-feira, uma recompensa financeira de 3 mil dólares (2,800 euros) a qualquer pessoa que tenha informações diretas sobre como identificar qualquer prisão secreta.
As histórias de reencontros alimentam a esperança dos milhares de pessoas que invadiram as prisões à procura dos seus familiares — por todo o país, terão sido 8 mil. Só em frente a Sednaya permaneceram sentadas centenas, a ver os prisioneiros sair e à espera de ver caras conhecidas entre os rostos marcados pela fome e pela violência.
Mas, como no caso de Moammar ou Jihad, muitos sírios fugiram da guerra civil para o estrangeiro. Nas redes sociais multiplicaram-se listas em que as pessoas podem adicionar o nome e — caso o saibam — o número de prisioneiro dos familiares desaparecidos, para que as pessoas que estão a participar nas buscas nas prisões os possam procurar. Uma destas listas chegou a Hanover, na Alemanha, a Hussien Idris, que procura o irmão Ahmed, que, se estiver vivo, terá 32 anos.
No sentido contrário, ativistas em Damasco partilharam fotos de pessoas libertadas no Facebook, relata o Washington Post. Na legenda, está um número de telefone para que a família possa ligar caso reconheça as fotografias. Nenhuma destas iniciativas é uma base de dados completa ou oficial para procurar os milhares de desaparecidos. “Alguns dos rebeldes estão a tentar organizar as buscas, mas, até agora, não há listas a sério”, adianta um dos fundadores da ADMSP, Diab Serriya, ao jornal norte-americano.