Discurso de Luís Montenegro
É com profundo sentido de responsabilidade que o faço na qualidade de primeiro-ministro, na sequência da vitória eleitoral e da legitimidade democrática adquirida pelo voto dos portugueses. Essa foi, de resto, uma condição que impus a mim próprio e que partilhei como compromisso perante os eleitores. Fi-lo com referência à minha mais profunda convicção de que, para governar e dirigir o país, é imprescindível uma legitimação direta e não provinda de qualquer arranjo de bastidores.
Neste primeiro discurso parlamentar enquanto primeiro-ministro, Luís Montenegro começa por fazer uma espécie de ajuste de contas com o passado: a primeira referência que faz passa por lembrar que a Aliança Democrática ganhou as eleições e, com elas, a “legitimidade” do voto, sem precisar de fazer arranjos de bastidores — uma referência às improváveis negociações que António Costa conduziu em 2015 e que levaram à criação da geringonça, permitindo-lhe governar sem ter vencido eleições. Boa parte da direita não perdoou a Costa e criticou, desde então, essa quebra da tradição eleitoral. Já o próprio Luís Montenegro prometeu, durante a campanha, que só governaria se ficasse em primeiro lugar; em rigor, também chegou a admitir “não ver forma” de o PSD viabilizar um Executivo do PS, caso este vencesse sem maioria, mas essa narrativa foi desaparecendo do discurso social democrata. De qualquer forma, depois de uma noite eleitoral longa e prolongada pela contagem dos votos da emigração, a vitória da Aliança Democrática confirmou-se, mesmo que a vantagem sobre o PS seja curta e lhe dificulte agora as contas da governação.
Um programa que se inspira no programa eleitoral mais sufragado, mas que foi buscar ideias a todos os programas eleitorais que obtiveram representação parlamentar. (…) O programa do Governo expressa objetivos, metas e medidas de política para executar nos próximos quatro anos e meio. Em respeito pelo Parlamento, tentaremos apresentá-las ao país, sempre que possível, perante as senhoras e os senhores.
Dada a complexidade do quadro parlamentar e a necessidade que o PSD terá de formar maiorias mais alargadas para governar, a questão da sua disponibilidade para o diálogo — assim como a das oposições — tem dominado este início de mandato. Foi por isso mesmo que o Executivo decidiu arrancar com a inclusão de 60 medidas da oposição no seu programa de Governo, como anunciou esta semana. Os partidos desvalorizaram rapidamente a iniciativa — as medidas foram escolhidas avulso e sem diálogo pelo meio, apontaram — mas o sinal ficava dado: o novo Executivo argumentará que desde o início tentou estender a mão às oposições e não se fechar sobre o seu próprio programa. Neste trecho, Montenegro deixa um segundo sinal: o Governo tentará, “sempre que possível”, levar as medidas ao Parlamento, evitando a ideia de que se vai concentrar em governar por decreto e fugir a pôr as suas propostas à prova na Assembleia da República, com medo das chamadas “coligações negativas” que se possam formar.
Nos 3º e 4º pedidos de pagamento do PRR apresentados em Bruxelas, as autoridades europeias retiveram 713 milhões de euros, por não estarem cumpridas as metas contratadas. Vamos criar as condições para apresentar o pedido de libertação desse montante dentro dos próximos 60 dias. Também o 5º pedido de pagamento deveria ter sido já apresentado. Mas não foi. Iremos apresentá-lo nos próximos 90 dias. (…).
A partir daqui, Montenegro carrega no acelerador. O novo Governo está consciente de que não tem tempo a perder, nem terá uma segunda oportunidade para causar uma primeira boa impressão, e deita já mãos ao trabalho. Começa por anunciar que o Executivo irá, na próxima semana, aprovar uma descida nas taxas do IRS até ao oitavo escalão, que se traduzirá numa redução global de cerca de 1500 milhões de euros em imposto, uma medida especialmente relevante depois de ter feito campanha pelo “choque fiscal” e de uma das mais recorrentes críticas da direita ao PS ter incidido, nos últimos anos, sobre a elevada carga fiscal. Montenegro continua a enumerar medidas, seja para pôr o Estado a pagar mais rapidamente o que deve ou para acelerar as taxas de execução “baixíssimas” nos fundos eropeus, passando ainda pela garantia de que vai “criar condições” para que Portugal receba as verbas em falta associadas ao Plano de Recuperação e Resiliência. É um ponto sensível para o Governo de António Costa, que prometeu deixar tudo pronto para que o seu sucessor submetesse o quinto pedido de pagamento a Bruxelas — Montenegro argumenta agora que ainda há atrasos nos terceiro e quarto pagamentos e que tratará dos atrasos relativos ao quinto num prazo de 90 dias. Se um dos argumentos para assegurar a estabilidade política passava por assegurar que tudo corria sem percalços na execução do PRR, o novo Executivo vem agora garantir que tomará conta do assunto.
Em quarto lugar, iniciar-se-ão nos próximos 10 dias as conversações com os representantes dos professores e das forças de segurança, com vista a tratar de assuntos relacionados com as carreiras e estatuto remuneratório. (…) Em sexto lugar, o Governo entrará em contacto com os grupos parlamentares na AR, amanhã mesmo, para calendarizar os encontros que lançarão o diálogo em matéria de combate à corrupção (…)
Montenegro prossegue em modo sprint, anunciando uma série de medidas e os prazos rápidos em que quer, pelo menos, começar a pô-las a andar. É o caso das conversações que vai marcar, como prometido, com professores e profissionais de segurança — dois tópicos em que será pressionado pela oposição para que cumpra as suas promessas eleitorais (no caso das forças de segurança, já começou a ser criticado pelo Chega por ser “vago”, no seu programa do Governo, quanto à forma como a “dignificação” destas carreiras será feita). É também nestes tópicos que conta com a disponibilidade do PS para ajudar à sua aprovação (e para ficarem juntos na fotografia de medidas potencialmente populares), embora Pedro Nuno Santos queira obrigar a que sejam aprovadas o mais rapidamente possível, para que essas negociações não contaminem o debate sobre o Orçamento do Estado para 2025, evitando ficar amarrado ao PSD por mais tempo. No discurso, o primeiro-ministro refere também as prometidas negociações com a oposição sobre medidas anticorrupção, assim como com a concertação social; e adianta que “de forma excecional” este ano o Governo vai realizar as avaliações em papel, dadas as “graves falhas” que detectou nos equipamentos informáticos.
Em oitavo lugar, nas próximas semanas e como princípio de correção de erros e definição de uma nova política de habitação vamos, entre outras coisas: revogar o arrendamento forçado. Promover o acesso à compra da 1ª casa pelos jovens, com a isenção de IMT e Imposto de Selo e o mecanismo de garantia publica para que consigam financiamento bancário da totalidade do preço da casa. (…) Vamos revogar as graves penalizações que o Governo anterior impôs aos portugueses que investiram em alojamento local, incluindo a eliminação da contribuição adicional, a suspensão de licenças e a proibição de transmissão.
Após várias promessas de diálogo, Montenegro assume também quais os temas em que vai assumir uma quebra com o passado, revogando medidas do anterior Governo. Sem surpresas, enumera vários exemplos no setor da Habitação, uma das áreas mais problemáticas no Executivo de Costa. Algumas medidas, como o arrendamento forçado de imóveis devolutos — entretanto muito descafeinado, até por propostas do próprio PS, no Parlamento — chegaram a valer ao Executivo anterior acusações de ser “o mais comunista” desde o 25 de Abril (Montenegro dixit). Isso, assim como as restrições ao alojamento local, será para revogar.
O projeto de alívio fiscal sobre os rendimentos do trabalho e das empresas não é suficiente para vencer a estagnação económica. Mas é necessário! É absolutamente necessário! Não por fixação ideológica ou para agradar às pessoas, mas porque a elevada carga e complexidade fiscal é uma barreira económica que comprime a geração de riqueza, o aumento da produtividade e a criação de emprego. É um bloqueio às empresas, travando a atração de investimento e o seu crescimento. E é também um bloqueio aos trabalhadores, no sentido em que ficam impossibilitados de aceder a melhores salários e a verem o seu esforço, mérito e competência devidamente valorizados.
Depois de prometer virar a página do “empobrecimento” — a direita sempre argumentou que António Costa mostrava uma ambição curta, ao comparar o crescimento do país com a média de crescimento da UE ou com o seu próprio ritmo de crescimento em anos anteriores — Montenegro volta à bandeira do choque fiscal (embora não utilize a expressão), deixando claro que não abdicará dessas bandeiras. O programa inclui, de resto, não só a redução de IRS mas também a de IRC, um dos principais argumentos a que o PS se agarra para justificar a ideia de vir a rejeitar os futuros Orçamentos do Estado da Aliança Democrática — a medida, dizem os socialistas, beneficiará sobretudo grandes empresas e espelha as divergências políticas de fundo que separam os dois partidos.
Na frente externa, enfrentamos a conjuntura mais desafiante em várias décadas, com guerras em diferentes latitudes, com destaque para a Ucrânia e o Médio-Oriente, com consequente instabilidade e incerteza. (…) Além disso, teremos de lidar com cenários de estagnação ou contração de alguns dos nossos parceiros comerciais e económicos, como por exemplo a Alemanha, o que avoluma dificuldades. Estas circunstâncias são particularmente exigentes para Portugal, porque temos de recuperar mais – e mais rápido – do que os outros. Mas quero daqui dizer ao país que não nos intimidamos com a realidade. Estamos conscientes, mas resilientes. Somos realistas, mas otimistas. Vamos guiar-nos pela esperança, pela confiança e pelo sentido de responsabilidade.
A gestão de expectativas é particularmente importante para um Governo que entra em funções com um excedente orçamental em mãos, meses depois de o anterior ministro das Finanças, Fernando Medina, ter conduzido uma operação para reduzir de forma extra-acelerada a dívida pública. As referências constantes ao dinheiro que “sobrou” e às promessas eleitorais em várias frentes aumentaram, durante a campanha, a pressão sobre o Governo, que arranca agora a legislatura frisando de todas as formas possíveis que a ideia dos “cofres cheios” é falsa e que o país não é rico. Daqui em diante é preciso, por isso, esfriar as expectativas, pensar na “realidade” e fazê-lo com uma grande dose de “realismo”. Ainda para mais, na semana em que o Conselho das Finanças Públicas veio deixar avisos sérios à navegação, pedindo responsabilidade orçamental ao Governo e à oposição. O PS continua, entretanto, a aumentar a pressão sobre o PSD e a garantir que os cenários económicos otimistas que apresentou até agora, e que usou para lançar as suas promessas eleitorais, se baseiam numa “fezada” e não em previsões económicas realistas.
Este programa é o nosso compromisso. Vamos executá-lo desde o primeiro minuto. Já estamos a tomar decisões e já estamos a lutar por resultados. Impusemos internamente vários objetivos para os primeiros sessenta dias mas, já agora, que estranho soa ouvir aqueles que não resolveram em 3050 dias, reclamar agora decisões para ontem… Apenas se pode concluir que têm em grande conta a capacidade de realização deste Governo…
Se é verdade que Montenegro impõe, como diz, objetivos já para os primeiros 60 dias, não desperdiça a oportunidade de lançar a farpa ao PS: este Governo tem consciência de que pode ter um estado de graça curto e que terá de acelerar para mostrar serviço, mas o anterior (ou, em rigor, as equipas lideradas por Costa) teve oito anos para governar. Por outras palavras: seria irónico que o PS viesse agora exigir ao PSD que resolvesse em tempo recorde problemas estruturais que não conseguiu resolver em anos. O PSD quer tempo para mostrar o que vale. E puxa pelo dilema que assombrou Pedro Nuno Santos durante a campanha eleitoral: a dificuldade de defender o legado de António Costa e, ao mesmo tempo, descolar dele o suficiente para reconhecer os problemas que afetam o país, prometendo fazer melhor (só os socialistas farão melhor do que os socialistas, chegou a garantir António Costa). A estratégia não se mostrou eficaz.
Não rejeitar o programa do Governo significa permitir o início da ação governativa. Mas significa mais: significa permitir a sua execução até ao final do mandato ou, no limite, até à aprovação de uma moção de censura. (…) Quero dizer a todos, mas em particular ao Partido Socialista, que governou 22 dos últimos 28 anos. Não fazemos chantagem nem somos arrogantes. Somos intrinsecamente leais e honestos. Se o Partido Socialista tem alguma reserva mental sobre a legitimidade deste Governo para executar o seu Programa, então deve assumi-lo, aqui e agora.
O recado de Montenegro tem como destino direto o Largo do Rato e vem reforçar a pressão que já tinha colocado aos ombros do PS logo no seu discurso de tomada de posse: o PSD acredita que o PS é responsável por “não bloquear” a execução do seu programa e que, se viabiliza esse programa, não pode logo a seguir contribuir para deixar abaixo o mesmo Governo — parecendo sugerir que o PS precisará, então, de deixar também passar os seus Orçamentos do Estado, coisa que Pedro Nuno Santos tem praticamente garantido que não fará. Ainda assim, Montenegro parece deixar claro que o PSD continuará a querer governar mesmo que o seu primeiro Orçamento não passe (em duodécimos), uma vez que coloca de novo como única hipótese de queda a apresentação de uma moção de censura ao Executivo. A ideia é uma: colocar toda a pressão do lado da oposição, que teria de se entender (juntando Chega e PS) para deixar o Governo abaixo, e assumir que a instabilidade política só poderá vir desse lado — antevendo que os eleitores julgarão negativamente nas urnas quem a provocar.
Todos os partidos aqui representados têm legitimidade democrática e merecem esse respeito e essa consideração. Para nós, não há os portugueses do bem e os portugueses do mal. Rejeitaremos sempre o discurso de ódio e a radicalização política.
Depois de ter ignorado o Chega durante todo o discurso, Montenegro arruma o assunto com uma referência final que, na verdade, começa por ser mais dirigida ao eleitorado do partido do que a André Ventura. O primeiro-ministro faz questão de frisar que todos os partidos presentes no Parlamento têm legitimidade — ou seja, quem votou no Chega merece o mesmo “respeito”, pelo que o partido deve ser colocado no mesmo patamar que os outros (e incluindo nas rondas de diálogo com todos). Até porque seria um erro colocar esse eleitorado de parte, possivelmente alimentando o seu ressentimento relativamente aos partidos tradicionais. Depois, Montenegro dispara: para o PSD não existem os “portugueses de bem” de quem Ventura fala recorrentemente, pelo que não apostará em discursos de divisão ou discriminação. O “não é não” de Montenegro fica aqui reafirmado, pelo menos na interpretação que o PSD faz dele: diálogo com o Chega sim, ao nível parlamentar e equivalente ao que existe com os restantes partidos; acordos com partidos que fazem “discurso de ódio”, não.