Teresa era cabeleireira em Damasco e na cozinha do mercado de Santa Clara corta cebola freneticamente. Gina, a filha, ajuda por ali, entre outras sírias, algumas com o lenço tradicional, o hijab e sob a batuta de um chef, também sírio. As chamuças de legumes precisam de ficar prontas, bem como a salada de salsa e tomate (tabbouleh), para o jantar solidário que vai ocorrer nessa noite. Giselle tem oito anos e saltita entre as mesas, decorando-as com folhas de outono.
Mãe, filha e neta chegaram a Portugal em setembro. Se conheciam o país? A resposta surge com um encolher de ombros que não precisa de tradução. A proposta do Sistema de Recolocação de Refugiados na Europa, quando se encontravam num campo de refugiados na Grécia, deu-lhes o nome de um país desconhecido.
Portugal. Para elas era uma palavra de incerteza. “Quando perguntávamos a alguém se sabiam como era, as respostas eram sempre as mesmas: um país de muitos imigrantes e a viver uma grande crise.”
As refugiadas contam que sair da Síria foi “uma aventura” que não gostam de descrever. Quando abandonaram Damasco, rumaram à Turquia e depois numa odisseia sobre a qual preferem não adiantar pormenores revelam, nas entrelinhas, uma viagem de barco e um resgate pelas autoridades.
Portugal acolheu 720 refugiados em 2016
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Dos 670 refugiados acolhidos este ano em Portugal, o Conselho Português para os Refugiados tem à sua responsabilidade 170 pessoas. 30 terão abandonado o país para outras paragens da Europa.
À chegada tudo novo: uma língua distante, costumes diferentes. No entanto, algo especial as sossegou: “Qualquer pessoa era simpática, sorria para nós e tentava ajudar”, conta Teresa, revelando que a experiência de pouco mais de três meses no país está a “surpreender pela positiva”.
“No fundo acho que até somos muito parecidos . Temos em comum um forte conceito de família. As pessoas têm bom coração e gostam de ajudar”, prossegue Gina. As grandes diferenças? A comida.
“Aqui comem muito peixe, aquele bacalhau que nem sequer conhecíamos. Nós cozinhamos com iogurte e aqui torcem o nariz”, exemplifica, movendo-se entre tachos na cozinha improvisada no mercado de Santa Clara, em Lisboa, onde participam na iniciativa “Pão a Pão – Projeto de integração de refugiados”, que até ao final de dezembro organiza jantares solidários com o auxílio de seis mulheres sírias refugiadas em Portugal.
É pois através da comida que se consolam das saudades que sentem de casa. Vivem juntas num pequeno apartamento em Campo de Ourique e lá vão tentando recriar as iguarias sírias, com os ingredientes que vão conseguindo encontrar ou improvisar. “Aqui não há muitos dos nossos ingredientes, mas cozinhamos as nossas receitas”, confirma Gina. A carne com bulgur, o pão ou o mlokih, que é uma iguaria com folhas de videira, fazem-nas recordar outros tempos. Mas a recordação não é doce como a baklava que em cima da bancada espreita para a sobremesa.
A guerra, a saída de Damasco, o resgate em alto mar, o campo de refugiados são imagens que não gostam de manter vivas no discurso. “É muito doloroso, ainda nos marca muito”, diz Teresa.
Gina toma a palavra. Olha a filha de oito anos, enternecida. “Tudo por ela”, vinca. “Quero que ela tenha uma vida livre. Quando estava na Síria pensava muito sobre o futuro dela, como iria ser. Queria que os seus direitos fossem respeitados e cheguei a equacionar imigrar para um país com uma mentalidade mais aberta”, lembra. Nunca pensou que seria assim, enquanto refugiada.
A saída de Damasco foi conturbada. “Já passou, ficou lá atrás”, desabafa, mas, com a voz entrecortada, consegue descrever o momento em que o abandono do seu país foi inadiável: “A Giselle acordou meio adoentada e decidi que ela não iria à escola. Foi uma decisão normal, banal, mas nesse mesmo dia, o autocarro que ela utilizava sempre a caminho da escola foi atingido por estilhaços de um rebentamento de uma bomba…”. As palavras de Gina ficam em suspenso. Num tom mais baixo revela: “Morreram vários meninos, os amigos de Giselle”.
A pequena passeia-se entre as mesas postas no meio do mercado. Endireita os talheres e vai debicando um ou outro pedaço de pão.
“Ela é pequenina, mas já percebe muitas coisas”, diz a mãe. Giselle assoma com as suas tranças compridas e expedita, diz: “Eu já não sou pequenina”.
A avó e a mãe riem. Têm orgulho na pequena que em apenas três meses já está completamente integrada na escola e já percebe muito bem a língua portuguesa. “Ela é quem nos ensina agora”, diz Gina, revelando que a criança frequenta a escola e que “adora” os colegas e a professora. “Está feliz. Diz que cá é muito melhor, que não há guerras. Vai ser uma menina de dois países”, reforça, dizendo que no futuro irá adotar os hábitos de Portugal e misturá-los com os da Síria. “Quando crescer quero ser hospedeira”, informa Giselle.
À pergunta sobre se gostariam de um dia regressar a Damasco, hesitam. “Sim, é o nosso país, mas agora? Isso nunca, não é seguro”, atira Gina. Os olhos da matriarca ficam mudos e tristes. Há uma outra filha ficou em Damasco.
600
Segundo divulgou recentemente a Ministra da Administração Interna, Portugal recebeu em 2016 mais de 600 pedidos de asilo.
“As comunicações são difíceis, as más notícias todos os dias…” Têm mais família na Síria e, a cada dia, temem pelas suas vidas, apesar de estarem longe das grande cidades. “Nada é seguro por lá”, afirma Teresa, que ainda sente na pele o som estridente dos rebentamentos. “Há imagens que não nos deixam. O prédio defronte à minha casa foi alvo de uma bomba. O barulho, a escuridão, o fumo e as nossas janelas a ficarem turvas. O sentimento de insegurança era muito grande, não sabíamos se seríamos nós os próximos a ser atingidos”, recorda.
Voltando à fuga. “Foi tudo muito difícil, intenso, muito marcante” , conta. Na Grécia permaneceram três meses num campo de refugiados e agora, por muito que se sintam “seguras e em paz”, também temem o futuro.
“Há sempre preocupação, porque não temos garantias de nada. Estamos a ser muito bem acolhidas, aliás por aquilo que escutamos Portugal é dos melhores países para acolher refugiados, mas não sabemos como será o futuro”, revela Gina.
Por agora os planos passam por aprender português e integrar o projeto “Pão a Pão” e através da comida ganharem um novo país. “É uma iniciativa muito boa e inovadora. Estamos muito recetivas e queremos trabalhar no futuro restaurante”, ressalva.
Numa outra bancada, Rafat de 20 anos, ajuda a mãe a preparar um dos pratos principais, frango com molho tahini e arroz de especiarias. Tímido, já fala português, mas conta pouco sobre a sua chegada a Portugal, há cerca de um ano. “Primeiro estive no Egito, mas lá é tudo muito complicado. Aqui em Portugal é diferente, ainda estou a aprender a viver cá”, salienta, revelando que mora com a mãe e dois irmãos numa casa no Lumiar e que aos poucos vai entendendo “o funcionamento do país”.
Sobre a comida portuguesa diz ainda não ter experimentado muitas coisas, mas elogia os doces. “São mesmo bons”, diz bem disposto, e destaca que sabia bem onde ficava Portugal no mapa: “O país do Cristiano Ronaldo e do Benfica, claro”. Rafat diz que pretende ficar por terras lusas e melhorar a sua vida e a da sua família: “Recordações más nem quero saber. Agora quero estar aqui e viver”.
O projeto “Pão a Pão” nasceu de uma conversa entre os mentores do projeto Francisca Gorjão Henriques, Rita Melo e Nuno Mesquita com Alaa Alhariri, uma estudante de arquitetura síria que está em Portugal há dois anos ao abrigo de um programa estudantil.
“Perguntaram-me do que é que eu sentia mais saudades da minha terra e a minha resposta foi rápida: do pão! O pão não é apenas comida é o nosso elo de ligação a forma que temos de comunicar com a mesa”, explica Alaa, dizendo que é um complemento que funciona como talher e que está sempre presente na mesa dos sírios. “O pão tem muita relação com as minhas memórias e foi a partir daí que começamos a desenvolver este projeto, pois observámos que em Portugal não há nenhum espaço, exclusivo, de cultura árabe”, salienta para vaticinar: “Vamos criá-lo, primeiro com a comida depois, quem sabe, com a dança e a música”.
Sobre a guerra na Síria, Alaa não gosta de falar. Os olhos baixam e o sorriso que se apresentava franco esmorece. “Ainda assisti a muita destruição, a loja do meu pai foi bombardeada, perdi muitos amigos na guerra”, diz, revelando que um dia gostaria de voltar, até porque os seus pais, família e amigos lá permanecem. “Quero voltar à Síria, mas agora o meu coração já tem dois países”, sorri e segreda: “E acho que somos mais parecidos do que diferentes”.
Francisca Gorjão Henriques, uma das fundadoras do Pão a Pão, sentiu a necessidade de “fazer alguma coisa” face ao que estava a acontecer na Síria e a fragilidade do problema dos refugiados. “O acolhimento estava a ser feito, as respostas estão a ser dadas, mas faltava o resto, a continuidade”, avança, relatando que este projeto que pretende fazer a ponte entre Portugal e a Síria, através da comida, tem um objetivo bem definido: criar emprego.
“Vai fazer muita diferença na integração destas pessoas, através da empregabilidade. E é algo que está relacionado com elas e a sua cultura”, avança, apontando como grupos de risco com quem pretendem trabalhar as mulheres e os jovens.
70
De Norte a Sul de Portugal são já 70 os concelhos que acolhem refugiados
Durante o mês de dezembro estão a promover jantares solidários no mercado de Santa Clara que, confessa, estão a servir como laboratório. “Queremos criar trabalho e para isso vamos fundar um restaurante onde estas pessoas vão poder trabalhar”, disse, deixando as novidades para janeiro: “Já temos local, mas por agora ainda não podemos revelar”, diz confiante. O certo é que Lisboa terá em breve um restaurante com sabor a Médio Oriente.