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O papel do Estado nos problemas de habitação

A habitação tem sido um dos principais temas do debate político, especialmente nas grandes cidades. Que problemas há? E que soluções podem surgir? Ensaio de Vera Gouveia Barros

Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.

Mercado de arrendamento num país de proprietários

A sociedade portuguesa conheceu no último meio século profundas transformações políticas, sociais e económicas. Entre elas, podemos referir o crescimento da habitação própria (Figura 1), resultado de diversos factores — que não cumpre neste ensaio explorar —, onde se incluem políticas públicas contrárias à existência de um mercado de arrendamento e favoráveis à construção e aquisição de casa. Portugal pode assim ser descrito como um país de proprietários. Segundo os Censos, em 2011, 73% da população portuguesa residia na habitação de que é proprietária, contrastando com os 39% de 1960. Não se julgue, porém, que esta é uma idiossincrasia lusitana: “país de proprietários” é uma caracterização que assenta generalizadamente bem aos países europeus (Figura 2).

O crescimento da habitação própria foi acompanhado do crescimento do recurso ao crédito para a aquisição de casa, de tal modo que, chegados a 2008, 12% dos proprietários com hipoteca ou empréstimo tinham despesas com a habitação que representavam 40% ou mais do seu rendimento, ou seja, encontravam-se numa situação considerada de sobrecarga. Neste contexto, o mercado imobiliário foi um dos identificados no Programa de Ajustamento Económico de 2011 como necessitando de reformas estruturais, tendo o Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica estipulado o objectivo de dinamizar o mercado de arrendamento, associado aos propósitos de reduzir o endividamento das famílias e de promover a mobilidade laboral.

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Nesta mesma senda, a Estratégia Nacional para a Habitação para o período de 2015-2031, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 48/2015, de 15 de Julho, estabeleceu como um dos seus três pilares o arrendamento enquanto alternativa à aquisição de casa própria, “emergindo como a principal via para desenvolver uma oferta habitacional a preços acessíveis e que corresponda às novas exigências de mobilidade das famílias”, no âmbito do qual, a primeira das medidas definidas foi “prosseguir com a dinamização do mercado do arrendamento urbano e criar a sua monitorização eficiente”.

Além de aprovar a Estratégia Nacional para a Habitação, aquela Resolução do Conselho de Ministros criou a Comissão Nacional da Habitação, órgão competente para apresentar ao Governo relatórios anuais de execução que, através da análise da evolução dos indicadores e metas estabelecidos, identificassem progressos alcançados, eventuais constrangimentos e propostas de resolução.

A este título, convém sublinhar o que devia ser uma tautologia, mas, lamentavelmente, não é. As políticas públicas existem para dar resposta a problemas, logo, o primeiro passo na concepção de uma política pública é identificar o problema a que se pretende responder. E identificar um problema não é apenas nomeá-lo, é descrever os seus elementos, é fazer um diagnóstico. Na Europa do século XIX, a definição de políticas deixou de assentar em argumentos de autoridade e de doutrina, para se basear em análise empírica, em conhecimento. E, uma vez concebida e implementada, há que monitorizá-la, isto é, acompanhar os seus resultados, confrontando-os com os objectivos propostos e sugerindo alterações quando justificado. Ou seja, boas políticas públicas exigem dados, exigem informação.

A habitação passa a morar no debate público

A partir de 2017, o Instituto Nacional de Estatística passou a publicar o número de novos contratos de arrendamento celebrados, bem como o valor mediano do metro quadrado neles praticado (Figura 3). Estes dois indicadores vieram juntar-se ao índice de rendas da habitação (Figura 4), construído a partir do inquérito às rendas de habitação e parte integrante do índice de preços no consumidor, que pretende mostrar a evolução temporal das rendas de habitação.

O crescimento anual médio de 8,5% no preço do metro quadrado nos novos contratos (Figura 3) trouxe para o debate público o tema da habitação e colocou na agenda política a questão do arrendamento acessível. Reflexo disto foi, também em 2017, a criação de uma Secretaria de Estado da Habitação, que lançou uma Nova Geração de Políticas de Habitação, onde os “Preços excessivos das rendas dos fogos disponíveis” são apontados como um dos obstáculos, do lado da procura, ao desenvolvimento do arrendamento habitacional. Mais recentemente, o Plano de Recuperação e Resiliência identificou como desafio ao nível da habitação a “desadequação entre os rendimentos das famílias da classe média e a oferta existente, acentuada pela liberalização do mercado de arrendamento levada a cabo em 2012 e pela intensificação dos impactos das dinâmicas do turismo na habitação, que leva a que 26% das famílias que arrendam a sua habitação estejam em situação de sobrecarga com os custos habitacionais, com a agravante de a taxa de esforço de um agregado que vá agora ao mercado ser superior a 40%”.

Políticas públicas que abriguem a teoria económica

Aqui há que notar que as muito especiais características do bem “habitação” afastam o funcionamento do seu mercado da concorrência perfeita, pelo que determinar o seu preço de equilíbrio não se resume a traçar duas curvas com inclinações opostas e descobrir o ponto onde se intersectam. É que perceber o funcionamento do mercado em que se quer intervir, entender como se formam nele os preços, compreender mecanismos de incentivos também é crucial para o sucesso de uma política pública.

A habitação é um caso especial

Desde logo, a habitação está intimamente ligada ao espaço e está fixa nele. A localização de uma casa — na vizinhança que apresenta, na qualidade do espaço que a envolve, na oferta de serviços públicos que proporciona ou nas acessibilidades que tem — faz parte daquilo que a casa é. Reciprocamente, num mesmo ponto do espaço só pode existir uma casa. E basta isso para que possamos dizer, em rigor, que não existem duas habitações iguais. Mas há mais: área, tipologia, robustez da construção, acabamentos e um conjunto de outras características são fundamentais para definir um alojamento e, portanto, um segundo aspecto distintivo do bem habitação é que ele não é homogéneo. Pelo contrário, está nos antípodas da homogeneidade. Na verdade, uma casa pode ser considerada um bem compósito, isto é, pode ser conceptualizada como um conjunto de atributos.

Daqui decorre que o mercado imobiliário é extraordinariamente segmentado, facto que deve estar bem presente quando se analisam medianas de preços da habitação. Por exemplo, o Programa de Arrendamento Acessível isenta de IRS ou IRC os contratos em que a renda seja até 80% de um valor de referência. Este depende do preço por metro quadrado mediano para a localização em causa, da área, da certificação energética, do tipo de edifício, do piso (no caso de ser um apartamento), de ter ou não elevador, da existência de estacionamento, de estar mobilado e/ou equipado e do estado de conservação. Embora este conjunto de atributos consiga captar alguma da heterogeneidade, muito possivelmente não elimina o problema de selecção adversa: é que o programa será apelativo para aqueles alojamentos cuja renda obtida no mercado seria mais baixa, mas pouco interessante para as melhores casas para as quais o desconto face ao valor de mercado é bem superior aos 20% supostamente exigidos. Dito de outra forma: é um programa que favorece os proprietários das piores casas, aqueles que, em condições normais, já as arrendam abaixo da mediana.

Uma outra característica evidente na habitação é a de ser um bem duradouro, o que lhe confere uma dupla natureza: bem de consumo e bem de investimento, isto é, uma casa pode ser comprada para o próprio e/ou a sua família nela morarem ou para gerar rendimento. Claro que, ainda que o imóvel tenha sido adquirido para o seu proprietário nele morar, não deixa de ser uma forma de deter riqueza, sendo normalmente o maior activo que as famílias possuem e a forma sob a qual está geralmente constituída a sua poupança. Naturalmente, pode-se consumir habitação pela via da aquisição ou pela do arrendamento. Mas este último só serve o propósito de consumo, pelo que no montante das rendas encontramos o valor de uso da habitação.

Assim, no mercado imobiliário, a curva da procura não deve ser lida como indicativa da quantidade que o consumidor está disposto a consumir para cada nível de preço. Como referido, a habitação é um bem compósito e as preferências do consumidor dizem respeito aos atributos das casas; diferentes combinações de atributos geram diferentes valorizações, como explica Sherwin Rosen na sua teoria dos preços hedónicos, e delas surge a curva da procura. Ou seja, no mercado imobiliário, a curva da procura deve ser interpretada como o preço que o consumidor se dispõe a pagar por cada qualidade de alojamento, o chamado preço de reserva.

Entre diversos outros factores, essa disponibilidade a pagar será tanto maior quanto menos substitutos existirem. Obviamente, aquilo que é um substituto depende dos gostos e estes diferem muito (por exemplo, para certas pessoas um apartamento pode ser um substituto de uma moradia e para outras, não), mas há qualidades mais ou menos consensuais e há tendências (julgo ser opinião generalizada que ter segurança no bairro é melhor que ter criminalidade).

Quem coloca uma casa no mercado também tem um preço de reserva — um valor mínimo que exige para vender ou arrendar o imóvel —, que também depende de vários factores, nomeadamente de se tratar da venda de habitação nova, da venda de habitação existente ou de arrendamento. No caso deste último, tem especial importância o enquadramento legal, incluindo o que define níveis de risco quanto às situações de incumprimento do inquilino ou o nível de fiscalidade.

Como casam oferta e procura

Como a habitação está fixa no espaço, não existe um mercado físico que promova o encontro entre procura e oferta, apesar de os sites de imobiliário terem vindo facilitar o exercício. O mercado imobiliário assemelha-se, então, ao do trabalho na medida em que os inquilinos têm de pesquisar habitações que correspondam aos seus requisitos e os senhorios também têm de se esforçar para descobrir quem mais valoriza o imóvel que disponibilizam, na senda da search theory desenvolvida a partir do trabalho de George Stigler.

Convém, pois, não confundir o preço a que uma casa é colocada no mercado com aquele a que acaba por ser arrendada e que será o que for acordado entre senhorio e inquilino, resultando muitas vezes da negociação entre ambos. Portanto, os valores por metro quadrado que surgem nas estatísticas não são como as etiquetas de preço em prateleiras de supermercado: eles correspondem ao que alguém efectivamente se dispôs a pagar e ao que alguém se dispôs a receber. E, sim, são indicativos, ajudando a formar expectativas (e a reduzir a imperfeição da informação), pelo que influenciam os preços de reserva, mas não ditam preços futuros. É pensar no mercado de transferências dos jogadores de futebol, porque é bastante parecido. Assim, afirmar a priori que a taxa de esforço de uma família que agora arrende casa é, no mínimo, de 40% — como faz o Plano de Recuperação e Resiliência — não tem fundamentação.

O valor mediano por metro quadrado que o INE divulga é somente para os novos contratos, logo não se pode determinar uma taxa de esforço usando a totalidade dos rendimentos, estar-se-ia a fazer um rácio em que numerador e denominador têm subjacente universos distintos. Fazendo os cálculos com recurso aos dados do Inquérito às Despesas das Famílias, obtém-se a Figura 5, em que se observa um crescimento da taxa de esforço para os agregados de rendimentos mais baixos.

Infelizmente, não existem dados mais recentes disponíveis, mas há-os no que respeita à taxa de sobrecarga das despesas em habitação, isto é, a percentagem de famílias que gasta em habitação 40% ou mais do seu rendimento. Para os inquilinos com rendas a preço de mercado, aquilo que se verifica é que, depois de um máximo em 2012, aquela percentagem tem vindo genericamente a diminuir (Figura 6), apresentando Portugal um valor alinhado com o da média da União Europeia (Figura 7).

Que a renda acordada esteja mais próxima do limite superior do inquilino ou do limite inferior do senhorio depende do poder negocial de cada uma das partes. É também este poder negocial que vai determinar quem é o real beneficiário de subsídios ao arrendamento. Considere uma medida que, procurando promover a acessibilidade do arrendamento, atribui aos inquilinos um subsídio de renda. Com aquela transferência, estes dispor-se-ão a pagar mais pela casa. Se o poder negocial estiver totalmente com os senhorios, a renda acordada será igual ao preço de reserva do inquilino, ou seja, embora a lei atribua um subsídio aos arrendatários, serão os proprietários a efectivamente recebê-lo. Conclusão: o objectivo de tornar o arrendamento acessível não é conseguido.

Logicamente, o poder negocial dos senhorios diminui quando têm concorrência, quando os inquilinos encontram facilmente casas substitutas. Melhorar acessibilidades, dotar certas zonas de infra-estruturas, de equipamentos e de serviços, aumentar a qualidade do seu urbanismo ou reabilitar o edificado são formas de, agindo sobre os atributos das casas, minorar a segmentação do mercado. Mas, sobretudo, a existência de uma oferta pública de habitações com um determinado padrão de qualidade a um preço reduzido, competindo com o sector privado, contribui para disciplinar o mercado de arrendamento. Esta é, aliás, no contexto da OCDE, a medida de apoio ao arrendamento mais adoptada, segundo as respostas dadas ao Questionnaire on Affordable and Social Housing.

Em Portugal, o artigo 65.º da Constituição estabelece que “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar” — princípio reafirmado na Lei de Bases da Habitação, aprovada a 5 de Julho de 2019 — e determina também que o Estado deve implementar uma política de garantia do direito à habitação. No entanto, esta norma constitucional não teve reflexo na existência de um parque habitacional público relevante, representando este apenas 2% dos alojamentos, vocacionados para a resposta às situações de maior carência económica, o que contrasta com a realidade de outras economias desenvolvidas (Figura 8).

Durante três décadas, a política pública no domínio do arrendamento habitacional fez-se do congelamento de rendas, o que, conforme já explicou Paul Krugman, é uma medida que prejudica precisamente a população que se deseja proteger. Impor tectos às rendas e congelá-las provoca uma contracção da oferta de casas para arrendamento, seja porque, no imediato, arrendar deixa de ser interessante para os proprietários, seja porque, a longo prazo, o património imobiliário se degrada, já que não há motivo nem condições para o conservar.

Que o Estado garanta o direito à habitação pondo casas no mercado para arrendar e que não coloque o ónus de uma política de habitação sobre os proprietários não significa que não promova igualmente a oferta privada. Ora, a instabilidade legislativa faz o contrário, desincentiva o arrendamento privado, já que cria um clima de maior incerteza quanto às regras aplicáveis, ao qual os senhorios responderão com um aumento das rendas pedidas, de modo a cobrir o acréscimo de risco. Por exemplo, nesta fase, quem esteja a contemplar a hipótese de colocar casa no mercado de arrendamento estará a ter em consideração a possibilidade de que as rendas recebidas sejam obrigatoriamente englobadas no rendimento para efeitos de IRS — ou seja, que os impostos a pagar sobre elas aumentem consideravelmente. Uma política pública de arrendamento que não rejeite ideologicamente a participação de privados deve procurar desenvolver junto destes um sentimento de confiança. E entre os instrumentos a utilizar contam-se evidentemente os aspectos fiscais, mas evitando mecanismos como os da Lei n.º 3/2019, que, querendo fomentar contratos de arrendamento mais longos através da diminuição da taxa de tributação autónoma, fá-lo em função de escalões de duração, o que incentiva contratos no limite inferior do intervalo.

Conclusão

Na canção Liberdade, Sérgio Godinho enumera “a paz, o pão, habitação, saúde, educação”. Não estaria certamente a pensar em políticas públicas, mas a verdade é que estes temas estão ligados. A habitação é reconhecida pela legislação internacional em matéria de direitos humanos como um direito, inclusivamente porque a privação de um alojamento é uma fonte de desigualdades económicas, sociais, educacionais ou de saúde, o que reduz o bem-estar e, por sua vez, reforça a discriminação habitacional, a segregação e a exclusão social. Pensando, por exemplo, na questão da coesão territorial. Os preços da habitação revelam grandes diferenças locais (e, por isso, o papel das autarquias é fundamental), o que me invoca um artigo de Paul Krugman, de 1999, em que ele fala sobre forças centrífugas e centrípetas, isto é, forças que conduzem, respectivamente, à dispersão e à concentração da actividade económica. As rendas inscrevem-se nas primeiras: a grande presença numa dada região fá-las subir, o que trava o processo de concentração, e por isso os preços do imobiliário podem ser um factor de promoção da redução das assimetrias económicas regionais. De modo mais abrangente, dir-se-ia que as políticas públicas neste domínio (e noutros) não devem ser pensadas de forma compartimentada, mas de modo articulado, formando um todo coerente.

Ter um sítio adequado onde viver é uma condição fundamental de dignidade. A habitação é, assim, um sector de enorme interesse económico e social. E também por isso importa intervir com conhecimento. Conhecimento teórico e multidisciplinar e evidência empírica, que permitam apreender a realidade, definir problemas, acompanhar a implementação das medidas, avaliar o seu (in)sucesso e proceder aos necessários ajustes, num círculo virtuoso de políticas públicas.

Vera Gouveia Barros é economista. Autora do ensaio “Turismo em Portugal”, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, tem feito investigação nas áreas da Economia do Turismo e da Economia da Habitação.

Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.

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