A conversa deu-se na “vila morena”, cantada por Zeca Afonso. No Teatro Grandolense, sede da reunião dos deputados comunistas nas jornadas parlamentares do PCP, António Filipe é a voz de um partido que dá sinais de crescente impaciência com o governo por causa da contagem do tempo de serviço, e de outras reivindicações laborais. O aviso é aquele que sempre repetiram, mas que se vai ouvindo com mais regularidade por estes dias em que as negociações já arrancaram: “não há orçamentos aprovados à partida” e “todas as possibilidades” estão em aberto. Incluindo o chumbo.
Mera retórica negocial? Isso se verá mais para o final do ano. Para já, a atualidade fala-nos de uma possível cimeira histórica Washington – Pyongyang. O PCP espera para ver, embora mantenha todas as desconfianças face à administração norte-americana. Já quanto à Coreia do Norte, “nem por caricatura se pode pretender encostar o PCP a um modelo de culto da personalidade que existe na Coreia”. Nem Coreia, nem China, nem Cuba. E, para provável surpresa de alguns, nem sequer União Soviética. “O socialismo, tal como nós o entendemos, só é possível ser construído em Portugal.”
Em entrevista ao Observador, onde também se passou em revista as semanas que passaram, o deputado comunista sugeriu que houve falta de lealdade do Bloco na forma como atacou os comunistas no debate da eutanásia e garantiu que o PCP teve mesmo acesso a relatos de idosos holandeses que fugiram para a Alemanha para não serem eutanasiados. “Não foi uma invenção do PCP”, garante.
Foi o rosto do partido no debate da Eutanásia e foi muito atacado pelo Bloco de Esquerda. O Bloco aproveitou este assunto para atacar especificamente o PCP?
O ataque ao PCP foi inequívoco. Toda a gente o ouviu. E fazendo ao PCP imputações que não são verdadeiras. Designadamente tentando associar o PCP a determinados setores da sociedade portuguesa com os quais toda a gente sabe que PCP não se identifica. Não tenho mais nada a dizer. As afirmações foram feitas e cada pessoa ajuizará acerca delas aquilo que bem entender.
O que o incomodou mais?
Já tenho idade suficiente para não me incomodar com aquilo que é dito. Já assisti, ao longo da minha vida, a muitas acusações feitas sem fundamento ao PCP. E, portanto, não posso dizer que isso que me incomode. Enfim, registo-as. E as afirmações de cada um ficam com cada um.
Um dos argumentos do PCP mais criticado foi o que referia, no site do partido, que “relatos vindos da Holanda, onde a morte antecipada está instituída na lei, dão conta de idosos com maiores rendimentos que emigram para as zonas de fronteira com a Alemanha para evitarem a possibilidade de serem eutanasiados”. Revê-se neste argumento, que consta do site do PCP?
Nós temos testemunhos disso, por isso é que foi referido no site. Não foi nenhuma invenção do PCP. Temos testemunhos diretos de situações dessas quer da Holanda, quer da própria Alemanha. Relatos de lares de idosos da Alemanha que recebem idosos holandeses, que vão para a Alemanha, precisamente, porque têm receio. Na Holanda, apesar da legislação ser restritiva, a aplicação que está a ser feita dessa mesma legislação, está a conduzir a que pessoas sejam submetidas a eutanásia, independentemente da sua vontade, sem que tivessem manifestado isso antecipadamente.
O PCP encara este chumbo como uma vitória?
Não. Esta questão não se pode colocar em termos de vitórias e derrotas. É uma questão de civilização, extraordinariamente complexa e creio que seria uma forma de desvalorizar a importância deste debate se estivéssemos a querer contabilizar este resultado entre vitórias e derrotas. Creio que não é disso que se trata. O PCP, tendo defendido frontalmente uma posição contrária à legalização da eutanásia, naturalmente que considera positivo que os projetos não tenham sido aprovados.
Houve divergências internas no PCP sobre esta matéria?
Esta matéria foi discutida internamente a partir do momento em que houve iniciativas legislativas na Assembleia da República. Portanto, a questão tornou-se incontornável. Nunca foi para o PCP uma prioridade. O PCP nunca inscreveu, nem no programa eleitoral, nem no seu programa político, qualquer propósito de legalização da eutanásia. E, portanto, não era uma questão que estivesse, do nosso ponto de vista, em cima da mesa. A partir do momento em que ela foi colocada, obviamente que houve uma discussão interna para um apuramento da posição partidária sobre esta questão, onde houve várias opiniões. Aliás, o próprio secretário-geral do PCP reconheceu que se manifestaram diversas opiniões nas discussões coletivas que tivemos. Houve uma discussão aberta e franca sobre esta matéria que caminhou para o apuramento de uma posição partidária a assumir. A ampla discussão que houve no interior do partido envolveu sobretudo militantes do partido que mais de perto contactam com estas questões, designadamente os profissionais de saúde e os juristas.
Disse há pouco que eutanásia nunca esteve no programa político ou eleitoral. Mas houve uma das propostas que foi do PEV. Se o PEV tiver esta bandeira num programa das próximas legislativas pode, de alguma forma, pôr em causa a CDU para essas eleições?
Não nos incomoda nada. A CDU tem um entendimento sobre esta matéria. O PCP tem o seu entendimento e o PEV tem o seu. São diferentes. Mas isso não põe em causa a CDU. O PCP e PEV não são partidos idênticos, são partidos que convergem na CDU, mas isso não impede que cada um tenha uma posição diferente sobre diversas questões, e esta é uma delas.
Por falarmos nas próximas legislativas. Do que depender do PCP, esta legislatura vai até ao fim?
O PCP mantém a posição desde o primeiro dia da legislatura, que é o de não perder uma oportunidade para lutar pela reposição e conquista de direitos do povo português. De lutar na AR por isso. Nesta legislatura houve de facto progressos que contrariaram aquilo que era a orientação de legislaturas anteriores, em matéria de direitos que tinham sido retirados aos trabalhadores e ao povo português, muito particularmente pela legislatura anterior de PSD e CDS. Essa é a postura que temos mantido desde o primeiro dia e que vamos manter até ao último.
Quem aprovou três orçamentos aprova quatro?
Depende do próximo orçamento. Nenhum dos três orçamentos estava aprovado à partida. Portanto, eles tiveram de ser analisados e discutidos pelo Governo e discutidos no âmbito da AR. E todas as propostas do PCP foram apresentadas e evoluíram durante a discussão da especialidade. No sentido positivo, de facto conduziu a uma apreciação favorável e, portanto, à aprovação desses orçamentos do Estado. E é o que acontecerá no próximo. Ele não está aprovado à partida e o PCP vai encarar a discussão como encarou as três anteriores.
O chumbo pode ser uma possibilidade se não forem atendidas as reivindicações do PCP?
Todas as possibilidades estão em aberto. Para nós não há orçamentos rejeitados à partida, nem aprovados à partida. Portanto, dependerá da apreciação que venhamos a fazer.
Negociaram no OE do ano passado aquilo que entendem ser o reconhecimento de tempo de serviço das carreiras dos professores. É uma traição ou uma habilidade que o governo afinal não tenha o mesmo entendimento? Até porque o PS aprovou uma recomendação dos Verdes nesse sentido.
O que está no Orçamento do Estado é para cumprir. O Orçamento do Estado não é uma recomendação ao governo, é uma lei. Não queremos admitir que não seja cumprida. Porque, de facto, isso corresponderia a um incumprimento da lei da Assembleia da República. O governo está, obviamente, vinculado à execução daquilo que foi decidido em sede de Orçamento do Estado.
O articulado fala na negociação para definir o “tempo” e o “modo”. Ao ler o artigo 19º parece-lhe que está lá a garantia de que é reconhecido o tempo todo?
O tempo e o modo tem que ver com o faseamento da concretização daquela medida. Obviamente que o Orçamento aponta para a reconstituição do que seria o tempo de serviço se não tivesse havido congelamento das carreiras durante aquele período. Portanto, não se pode fazer de conta que esse tempo não passou. Os trabalhadores foram prejudicados e obviamente a reposição dos seus direitos implica a recuperação desse prejuízo. Várias das medidas, vários dos direitos repostos foram-no faseadamente. Portanto, estes também podem ser. Agora, a reposição daquilo que foi roubado aos trabalhadores deve ser inquestionável e o Orçamento do Estado aponta para isso.
A última frase diz: “Tendo em conta a sustentabilidade e compatibilização com os recursos disponíveis”. O primeiro-ministro alegou: “Não temos dinheiro para isso”. É uma justificação suficiente?
O facto de não haver dinheiro no imediato é uma opção muito discutível. Os portugueses têm a experiência de que sempre que se tratou de resgatar bancos o dinheiro nunca faltou. E, portanto, os portugueses não podem considerar que seja inquestionável essa afirmação de que não há dinheiro para repor as carreiras dos trabalhadores da administração pública. Em todo o caso, quando se admite que essa reposição seja feita em função das condições concretas do país, está-se a admitir algum faseamento, que pode ser objeto de negociação. Agora, creio que a reposição deve ter lugar e aquilo que importa que o governo discuta, designadamente com os representantes dos setores, com os respetivos sindicatos, é a forma de proceder a essa reposição e o tempo em que essa reposição deve ser feita. Aquilo que é inaceitável e que não tem a cobertura do Orçamento do Estado é a ideia de que o tempo que passou seja para esquecer. Isso é que não nos parece admissível.
Antes o PCP falava em correlação de forças e fazia críticas leves. Agora fala em “governo minoritário do PS” e subiu o tom das críticas. Isto está relacionado com o resultado das autárquicas ou o governo é que tem falhado mais?
Não tem nada a ver [com as autárquicas]. Sempre dissemos que o resultado nas eleições para as autarquias locais em nada alteraria a posição do PCP. A questão é outra: a legislatura vai avançando e há problemas cuja resolução vai sendo protelada. Na Administração Pública era suposto que as negociações do governo com os representantes sindicais estivesse muito mais adiantada. Com o avançar da legislatura há que ter em conta esses atrasos e procurar pressionar para que os compromissos que foram assumidos com esses trabalhadores sejam efetivamente cumpridos. Ao vermos o tempo a passar e os problemas a continuar por resolver, é normal que haja de facto uma veemência da nossa parte, na afirmação de que os compromissos que foram assumidos sejam de facto cumpridos. As pessoas criaram expectativas numa mudança política relativamente àquilo que era a orientação do governo anterior. Essas expectativas foram alimentadas e obviamente que verificamos que em determinados setores sócio-profissionais aparece uma justificada impaciência relativamente ao protelamento do desfecho de alguns processos legislativos. O PCP faz eco dessa preocupação e pronuncia-se com veemência no sentido de que haja uma conclusão positiva para esses processos em curso.
Na vossa perspetiva, em matéria de legislação laboral o PS está a impor uma política de direita e a fazer o jogo dos patrões?
Eu diria que o PS não alterou aspetos muito graves que foram consagrados em alterações anteriores ao Código Laboral, que continuam vigentes, designadamente no que se refere à caducidade da contratação coletiva e à reposição do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador, que foi eliminado da legislação laboral e que devia ser reposto. E outros aspetos relacionados com organização dos horários dos trabalhadores em que se verificam abusos enormes relativamente ao banco de horas, e uma flexibilização dos horários que desorganiza completamente a vida familiar dos trabalhadores, designadamente, relativamente aos dias de férias. Os dias que foram eliminados pelo governo anterior não foram ainda repostos. Há preocupações concretas da parte do PCP relativamente à legislação laboral porque não temos visto da parte do atual governo nenhuma vontade para alterar aspetos muito negativos que foram consagrados nas legislaturas anteriores em matéria de legislação laboral.
O PCP não gosta de pedir demissão de ministros. Neste momento chamaram o ministro da Saúde ao Parlamento por detetarem problemas da Saúde. O ministro Adjunto também enfrenta alguns problemas. Todos os ministros, no entender do PCP, estão em condições de se manterem em funções?
O PCP nunca fulanizou as questões da política governativa. Ou seja: aquilo para que olhamos é para as políticas dos governos e não tanto para as caras dos ministros que as levam à prática. E daí que não é hábito do PCP pedir demissões avulsas de ministro. Demita-se este ministro ou demita-se aquele.
Mas há ou não algum que já não tenha condições para continuar no cargo?
A nossa preocupação são as políticas que são seguidas. Nada nos garante que as alterações de ministros signifiquem alterações de políticas. E é por isso que não temos o hábito de pedir demissões. Aquilo que fazemos é responsabilizar os ministros, sejam eles quem forem. E pedir-lhes, naturalmente, contas no âmbito da Assembleia da República. Pelas suas ações e pelas suas omissões. Ainda nestas jornadas parlamentares, já anunciámos que vamos requerer a ida do ministro da Saúde à Comissão, relativamente à questão da contratação de profissionais que temos por inadiável.
Está em perspetiva um encontro entre Trump e Kim Jong-Un. No último Congresso do PCP havia uma comitiva da Coreia do Norte e disse nessa altura que Fidel não era um ditador. Quanto a Kim Jong-Un tem alguma dúvida que seja um ditador?
Nós não ganhamos nada em estar a procurar rotular os dirigentes políticos. Senão também podíamos questionar se o presidente Donald Trump é um democrata. A política não se deve fazer de rótulos. Deve-se fazer uma apreciação concreta acerca daquilo que são as opções de cada dirigente político relativamente àquilo que defende e que põe em prática para o seu país e os valores que defende. E o PCP sempre assumiu grandes diferenças relativamente à conceção de Estado e de sociedade que vigora em muitos países do mundo, entre eles a Coreia do Norte. Obviamente, que o PCP não defende a aplicação em Portugal de nenhum modelo vigente nos outros países. Aquilo que pretendemos para Portugal, assenta em determinados valores, do marxismo-leninismo, mas defendemos que haja uma forma própria, nossa, de construir o socialismo no nosso país e, designadamente, os valores da democracia avançada que defendemos para o nosso país, que são baseados na nossa experiência e não tanto na experiência de outros países.
E a posição quanto à situação na Coreia?
Aquilo que se passa neste momento na Coreia é outra coisa. Pensamos que há uma situação muito grave relativamente à península coreana, que tem que ver ainda com sequelas da Guerra da Coreia. Pensamos que têm sido dados passos positivos, designadamente na aproximação da República Popular e Democrática da Coreia e a República da Coreia, entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul, que têm contribuído muito positivamente para o desanuviamento da situação nessa região. Isto, apesar de termos verificado que há, da parte das autoridades norte-americanas, que são responsáveis pela militarização daquela região do globo, muitas reservas a esse clima de desanuviamento. Relativamente a modelos políticos e atuação de dirigentes de outros países, nós naturalmente que registamos aquilo que há de negativo e positivo em cada um deles, mas não fazemos isso em função de rótulos como esses de decidir quem são os ditadores, quem não são os ditadores. Há muitos critérios para aferir daquilo que são a validade das respostas e o carácter mais ou menos positivos da ação política de cada um que não se compadece com situações de preto e branco ou de rótulos.
Entre Trump e Kim consegue dizer qual é mais democrático?
Creio que as coisas não se medem assim. Não se põem as coisas nos pratos da balança e eu creio que é no concreto que as posições de cada um devem ser aferidas relativamente àquilo que defendem de positivo ou de negativo para os seus povos ou para a paz mundial. Creio que há muitos critérios de apreciação que não se compadecem com apreciações simplistas como muitas vezes se fazem.
Também não concorda com o que disse uma vez o líder parlamentar do PCP, Bernardino Soares, que tinha dúvidas que a Coreia do Norte não fosse uma democracia.
Essas declarações foram muito descontextualizadas na altura e, mesmo depois disso, foi esclarecido que o PCP se afasta claramente e que sempre se afastou de conceções, designadamente, que se referem ao culto da personalidade. Isso é inequívoco. Portanto, creio que nem por caricatura se pode pretender encostar o PCP a um modelo de culto da personalidade que existe na Coreia. Mas se formos ao Japão também há o culto da personalidade do imperador, para já não falarmos do culto de personalidade quanto à família real britânica, que inclusivamente tem um merchandising profundamente agressivo. Eu creio que há vários cultos da personalidade por esse mundo fora. E não apenas na Coreia do Norte, embora nós não nos identifiquemos com esse.
A União Soviética já caiu há muito tempo. Há algum país, neste momento, que esteja a aplicar um modelo socialista/comunista como o PCP gostava de aplicar em Portugal?
Não. Isso só será possível em Portugal. Nem mesmo a União Soviética, que teve o papel que reconhecemos. Consideramos que a Revolução russa de outubro de 1917 é um marco de enorme importância na história da humanidade, mas nunca defendemos em Portugal uma sovietização deste país. Ou seja: que Portugal tivesse um modelo de socialismo decalcado da União Soviética. Nunca foi esse o objetivo do PCP. Portanto, o PCP bate-se por princípios e bate-se por um programa. E esse aponta claramente para a construção de uma democracia avançada, no aprofundamento dos valores da revolução de 25 de Abril de 1974, visando a construção do socialismo do nosso país. Nunca nos fixámos em nenhum modelo. O que acontece é que identificamos aspetos positivos, mas também identificamos elementos negativos que não defendemos. O socialismo, tal como nós o entendemos, só é possível ser construído em Portugal.