O tema da imigração não sai da campanha eleitoral para as europeias e André Ventura agradece. Em boa verdade, o presidente do Chega, que até chegou a elogiar o pacote do Governo para a imigração antes mesmo de o conhecer, acabou a cantar vitória porque, afinal, era “frouxo” e o Chega voltava a ser o “único” a querer “controlar a imigração” em Portugal. Pelo caminho, alimentou a narrativa de que Marcelo e Montenegro fizeram um acordo para esvaziar o Chega e usou as redes sociais para recuperar o tema das burcas — acabando a sugerir a abolição das mesmas por razões de segurança.
Não era segredo para ninguém que a imigração era o assunto predileto para o Chega em tempo de europeias. Depois de discursos que o faziam notar e de um programa em que o foco estava exatamente no mesmo sítio, o partido arrancou a caravana da campanha em pleno Alentejo, mais precisamente em Vila Nova de Milfontes, onde praticamente metade da população é composta por imigrantes e onde o Chega ficou em primeiro lugar nas eleições legislativas.
A ideia era mostrar a “perceção” da população de que há uma “sensação de insegurança, sobretudo para com as mulheres” e “um receio de sair à rua” — e durante a restante campanha colar esse sentimento à tese de que é preciso expulsar imigrantes que cometem crimes e até conhecer a nacionalidade de quem comete esses mesmos crimes, com Ventura a defender que estes dados podem “mostrar que a imigração está a contribuir para o aumento da criminalidade” e que é preciso “parar a imigração descontrolada”.
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Dia após dia, o discurso nunca mudou, apenas se intensificou quando o plano do Governo para a imigração foi conhecido e chegou ao ponto de o líder do Chega falar em “terror” nas ruas portuguesas por causa do “caos” provocado pela “política de portas abertas”. “Basta um percurso breve pelas nossas redes sociais, de Fátima a Lisboa, ao Porto, a Vila Nova de Mil Fontes, ao Odemira, ao Algarve, a Ponta Delgada e ao Funchal, não há dias que não haja terror nas ruas por causa deste caos”, argumentou, ao mesmo tempo que recusa as acusações de xenofobia.
A propaganda nas redes que invadiu a campanha
Em plena campanha eleitoral e quando toda a atualidade política discutia a imigração, o Chega publicou nas redes sociais cartazes de propaganda política em que surgem as caras de várias deputadas do partido ao lado de uma mulher de niqab e a pergunta “Que Europa queres?”. Na visão de Ventura, os cartazes — que já tinham sido usados por partidos irmãos do Chega em Espanha ou Itália —, não são xenófobos. “Considero que eu não quero as nossas mulheres de burca. Isso é ser xenófobo?”, questionou, enquanto sublinha que há mulheres “obrigadas” a usar burca e dando o exemplo do Afeganistão e Paquistão.
Foi até mais longe ao admitir que é a favor da abolição da burca por questões de segurança — sendo que a utilização do véu total ou parcial já é proibido em alguns países europeus. “Acho que não devia ser utilizada e coloca em perigo a segurança de todos quando ninguém consegue perceber quem é, nem se é um homem, nem se é uma mulher”, afirmou o líder do Chega quando questionado sobre o tema e sem antes ter sugerido algo do género.
Além de “não aceitar um país em que as mulheres tenham que andar de burca”, Ventura disse ainda ter dúvidas de que “possamos estar num país em que haja casais, em que as mulheres tenham que andar de burca”. “Também tenho dúvidas que aqueles países que tanto defendem os direitos das mulheres não se oponham a ter cá casais em que um deles considera a mulher um objeto que ele deve utilizar e pode vender”, realçou, frisando que os cartazes em causa “não são xenófobos”, mas sim um “alerta para o que a Europa pode estar a enfrentar e que países como a Bélgica, a Alemanha e a França já enfrentam”.
O plano que foi tudo: uma aproximação, frouxo e uma tentativa de conter o Chega
O Chega andou meses a dizer que era o único partido em Portugal preocupado com a “imigração descontrolada” e quando o Governo anunciou que tinha pronto um plano para as migrações, Ventura quase atirou fogo de artifício. Acreditou — e disse em frente a todos os microfones — que se tratava de uma “aproximação” ao Chega, apresentou medidas para completar o programa e pressionar Montenegro, mas horas depois já era tudo uma “desilusão”.
As expectativas de Ventura saíram frustradas quando ouviu o plano ser apresentado: “Acaba por se revelar um plano frouxo, mal formado, pouco eficaz e pouco conseguido”, disse o líder do Chega numa conferência de imprensa marcada para o efeito, onde alertou que o Governo não pode permitir um “bar aberto” na fronteira portuguesa ou “uma entrada livre de quaisquer constrangimentos”.
E medida após medida, foi deixando aquele que acredita ser o remédio para a resolução dos problemas: a introdução de quotas dependendo das necessidades económicas e geográficas, a limitação do acesso a apoios sociais para quem esteja há menos de cinco anos em Portugal, a expulsão de imigrantes que cometam crimes ou até a limitação do número de pessoas por alojamento.
Sobre a questão dos apoios sociais, Ventura ainda justificou que não se trata de uma medida inconstitucional porque a lei prevê a “possibilidade de limitar os seus benefícios sociais em função do período de residência em Portugal” e citou o artigo 40 da Lei de Bases da Segurança Social onde se lê que “a lei pode, no que diz respeito a não nacionais, fazer depender o acesso à atribuição de prestações de determinadas condições, nomeadamente de períodos mínimos de residência legal ou de situações legalmente equiparadas”.
Mais do que propostas e contribuições para que o Chega facilite a viabilização do plano no Parlamento, e ainda que vá pedir apreciação parlamentar dos diplomas do Governo para que exista um “debate construtivo”, Ventura quis mostrar que o partido que lidera se mantém na linha da frente do combate à “imigração descontrolada”, desde logo através da colagem entre Presidente da República e primeiro-ministro.
A promulgação de Marcelo, que Ventura arriscou que “deve ter sido o mais rápido da história da República”, serviu para “tentar conter o Chega de qualquer maneira” e numa “tentativa rápida de esvaziar qualquer coisa que o Chega pudesse dizer nesta matéria”. “O Presidente da República e o primeiro-ministro não foram responsáveis” por assinarem um “programa que não resolverá quase nenhum problema da imigração em Portugal”, alertou o líder do Chega, atirando à “falta de coragem” em algumas das questões que considera fundamentais e que esperava ver refletidas no plano. Desde logo, recordou o debate com Montenegro na campanha eleitoral para as legislativas e disse ter ouvido o agora primeiro-ministro a alinhar na necessidade de haver um sistema de quotas ou algo semelhante. “E o que se diz aqui é que vai ouvir as confederações e associações da área sem nenhuma consequência”, argumentou o líder do Chega.
No fundo, Ventura — que ainda teve esperança de ver um plano mais próximo da visão do Chega — acredita que “o PS não faria diferente” e que é preciso escolher o “lado da barricada” em que o Governo quer estar, alertando que quando se quer estar dos dois lados “geralmente não ganhamos nenhum”. Ainda assim, acabou por sugerir que o Governo não foi mais longe porque a família europeia, o PPE, “não o deixa ir mais longe” e “tem sido muito restrito em matéria de imigração”.
“A questão é se o PSD responde aos portugueses ou se responde à sua família europeia. Nós respondemos sobretudo aos portugueses. Nós apresentámos um projeto que limita, quer controlar e não tenho medo de dizer que temos que parar esta sangria de migração até termos a casa em ordem”, sublinhou o líder do Chega, que tem constantemente usado o exemplo da casa para dizer que se a casa está cheia não é possível entrar mais ninguém.
No fim do dia, em termos eleitorais e em plena campanha, até deu mais jeito a Ventura afastar-se do Governo, dar continuidade ao discurso repleto de palavras de ordem e dizer que para o Chega não é suficiente o pacote apresentado do que acabar a alinhar ao lado do Governo ou do PSD — ainda que pudesse capitalizar o tema como uma quase vitória do Chega por o ter trazido para a agenda. Ainda ensaiou o guião quando sentiu uma aproximação, mas acabou novamente a criticá-lo.