Quando os Philadelphia Eagles investiram em Jalen Hurts uma (valiosa) escolha de segunda ronda no draft de 2020, que aconteceu nas primeiras semanas de confinamento, boa parte dos fãs desta icónica equipa da NFL criticaram duramente a gestão do clube – aproveitando para libertar alguma ansiedade pandémica acumulada. Os Eagles já tinham no plantel um quarterback espadaúdo e os analistas de futebol universitário tinham dado a Hurts avaliações medíocres. Ninguém percebeu – e numa sondagem online feita na altura mais de 60% dos fãs deram àquela escolha um “F”, o equivalente a “muito insuficiente” no esquema de notas escolares nos EUA. Três anos depois, Jalen Hurts leva os Eagles à finalíssima da ultra-competitiva NFL, a Super Bowl.
O “desprezado” quarterback Jalen Hurts e os Philadelphia Eagles enfrentam este domingo os Kansas City Chiefs e Patrick Mahomes, esse sim considerado um fora-de-série logo à saída do college football. A dupla composta pelo quarterback Mahomes e o treinador Andy Reid, os rostos dos Kansas City Chiefs, voltam à Super Bowl pela terceira vez em quatro anos, tentando ganhar a sua segunda taça (que seria a terceira da história da equipa).
Para Andy Reid, o treinador, seria uma vitória com sabor especial, já que seria contra os Eagles, a equipa que liderou ao longo de 14 anos – sim, 14 anos. Acabou despedido em 2013, sem nunca ter dado a Philadelphia uma Super Bowl. Os Kansas City Chiefs recrutaram-no imediatamente e Reid transformou os Chiefs num portento que, no início de cada época, é invariavelmente tido como um dos principais candidatos a chegar à final. E muito graças ao prodígio Mahomes.
O jogo começa às 23h30, hora de Lisboa, e é transmitido pela Eleven Sports – a emissão original (da FOX) está na NFL.com, que disponibiliza o serviço NFL GamePass para adeptos fora dos EUA. Na manhã de segunda-feira, como é hábito, terá no Observador o resumo de tudo o que se passou.
Para os Philadelphia Eagles, este é um regresso à Super Bowl depois da que venceram há cinco anos, em 2018. Após essa vitória, os Eagles tiveram de abrir mão de alguns dos jogadores mais bem pagos do plantel, uma purga que acabaria por ter um “timing” feliz: essa “reconstrução” coincidiu com a época atribulada de 2020, o primeiro ano da pandemia, em que os Eagles apenas conseguiram quatro vitórias e acabaram no último lugar da sua divisão.
Normalmente é isso que acontece. Os “anos de reconstrução”, que são o início de um novo ciclo, são duros para as equipas porque, regra geral, os primeiros anos após a purga envolvem muitas caras novas na equipa, a ausência de jogadores-chave que saíram, o sistema de jogo em adaptação – tudo isto significa, quase sempre, muitas derrotas. Por força das limitações da pandemia, porém, essa foi uma época dura e difícil para todos, mesmo para aqueles que foram ganhando mais jogos – ou seja, os desaires dos Eagles acabaram por ter um efeito psicológico diluído.
Mas a reconstrução acabou por dar bons frutos: no ano seguinte, em 2021, os Eagles já conseguiram uma época com um registo com mais vitórias (9) do que derrotas (8) – o que é mais difícil do que parece – e, agora, chegam à Super Bowl depois de na época regular terem sido esmagadores, com 14 vitórias em 17 jogos. Nem sempre corre assim tão bem este tipo de rebuilds, que são comuns na NFL devido aos constrangimentos do teto salarial.
Uma das principais razões por que correu assim tão bem foi porque os Eagles tiveram a coragem de dispensar Carson Wentz, um quarterback talentoso mas muito propenso a lesões. Quando os Eagles tinham ganho a Super Bowl, em 2018, Carson Wentz era o titular indiscutível mas lesionou-se (novamente) logo no início da época e quem acabou por liderar a equipa em campo foi o suplente Nick Foles.
Em 2020, os Eagles decidiram ir buscar Jalen Hurts no draft, o evento anual em que, num sistema de rondas sucessivas, as equipas escolhem jogadores vindos das faculdades. Carson Wentz ainda continuou na equipa mais uma época mas os Eagles tinham, agora, um “plano B” caso se tornasse claro que, por muito talento que Wentz tivesse, as lesões iriam continuar a limitar as hipóteses de a equipa ter um sucesso consistente.
O problema é que os fãs achavam que Hurts não era grande espingarda como “plano B”. Os especialistas na análise de atletas do college football tinham analisado os jogos do quarterback ao serviço da universidade de Alabama e de Oklahoma (para onde se transferiu quando perdeu a titularidade em Alabama) e as críticas não eram positivas: “muito limitado como passador da bola”, “visão de jogo fraca”, “lento na leitura das jogadas” e com “questões de personalidade” – seja lá o que for que isso significa.
Os pontos positivos que lhe eram apontados eram bem menos, mas entre eles estavam alguns que terão feito os Eagles pensar que era mesmo de Hurts que estavam a precisar: “duro“, “sofre placagens e nunca se lesiona“, “durável“. Para quem tinha entregado as chaves da equipa a um quarterback talentoso mas quase sempre no estaleiro, isto era música para os ouvidos dos Eagles. E, apesar de tudo, os analistas diziam que Hurts era “um vencedor“, alguém que sabe encontrar formas de ganhar os jogos, apesar de não ser um prodígio da técnica.
Foi por isso que os Eagles gastaram uma escolha de segunda ronda em Jalen Hurts, quando a maior parte dos analistas tinha antevisto que ele só seria escolhido por alguém na 4ª ou, até, na 5ª ronda. Nunca se saberá se os Eagles suspeitaram que outra equipa estaria disponível para apostar em Hurts também na 2ª ronda (depois da vez dos Eagles) ou na 3ª ronda – na dúvida, decidiram premir o gatilho, e os fãs odiaram.
Fizeram mal, porque Jalen Hurts desenvolveu-se e tornou-se, gradualmente, um quarterback em quem se pode confiar para não cometer demasiados erros – o que, normalmente, é meio caminho andado.
Por ter saído do draft apenas na segunda ronda isso torna o seu salário comparativamente muito mais baixo do que os vencimentos de outros atletas que jogam na posição mais importante em campo, o quarterback. Ou seja, o facto de os Eagles terem um quarterback barato (para já) permite-lhes rechear o resto da equipa com jogadores valiosos como Darius Slay, Lane Johnson, A. J. Brown e Jason Kelce, veterano center a quem o jovem Jalen Hurts atribui grande mérito no seu desenvolvimento como jogador e como líder.
Jason Kelce, aliás, vai defrontar o irmão Travis Kelce, que alinha pelos Kansas City Chiefs e é uma das principais armas de Patrick Mahomes.
Tal como Jalen Hurts, Patrick Mahomes também não foi o primeiro quarterback escolhido no ano em que veio das universidades para a NFL (2017). Os Chicago Bears apaixonaram-se por Mitch Trubisky (que não tem tido, nem de perto nem de longe, o mesmo grau de sucesso) e escolheram-no oito lugares à frente antes de Kansas City selecionar Patrick Mahomes, filho de um antigo pitcher da Major League Baseball (com o mesmo nome mas mais conhecido pelo diminutivo Pat Mahomes).
A aposta dos Bears em Trubisky, que já nem sequer está na equipa mas, sim, a aquecer o banco dos Pittsburgh Steelers, ajuda a perceber porque é que a equipa de Chicago voltou este ano a falhar os playoffs. Quem lhe chamou um figo foram os Kansas City Chiefs, que assim tiveram oportunidade para recrutar aquele que é, provavelmente, o quarterback mais talentoso da NFL na era pós-Brady.
Um ano depois, pela segunda vez, “de vez”: Tom Brady anuncia o fim da carreira após 23 temporadas
Mahomes chegou à liga sem aquela pressão que frequentemente é colocada em cima dos jovens quarterbacks de quem se espera que cheguem à nova equipa e a carreguem às costas desde o primeiro dia. Quando o jovem quarterback chega ao Missouri, os Chiefs tinham na posição mais importante do jogo Alex Smith – um veterano que teve uma carreira perfeitamente respeitável embora nunca tenha sido mais do que um excelente “gestor de jogo”: tinha o mérito de evitar erros comprometedores mas nunca alguém esperou dele qualquer tipo de rasgo súbito de genialidade.
Mahomes teve um ano para se ambientar mas, no final da época, tornou-se claro aos olhos do treinador Andy Reid que o miúdo estava pronto para pegar na equipa. Alex Smith foi cedido, por troca, aos Washington Redskins (onde viria a sofrer uma das lesões mais arrepiantes e perigosas da história da NFL) e Patrick Mahomes iniciou a época de 2018 como titular – e que época extraordinária viria a ser essa.
Logo no primeiro jogo da época, os Chiefs com Mahomes a titular bateram os rivais Los Angeles Chargers – o jovem quarterback teve uma exibição quase perfeita, com quatro touchdowns, zero interceções e 256 jardas a passar. Foi, de imediato, considerado o melhor jogador daquela semana na AFC (a conferência em que participa Kansas City, que concorre com a NFC, onde estão os Eagles). No segundo jogo, Mahomes trucidou os Pittsburgh Steelers com seis touchdows e, também, zero interceções pela defesa. Confirmava-se: era um fora-de-série.
Acabaria essa época a perder contra os New England Patriots, no prolongamento, na final da AFC – um jogo que, caso tivesse ganho, teria ido à Super Bowl logo na sua segunda época (primeira como titular). Logo no ano seguinte, porém, os Kansas City Chiefs foram imbatíveis e derrubaram os San Francisco 49ers na Super Bowl de 2019.
Mahomes foi, claro, considerado o MVP, o jogador mais valioso da liga, com os seus passes com a mão esquerda (não, ele não é canhoto) e, também, inacreditáveis passes em corrida e sem olhar para o colega (à semelhança do que alguns fazem no basquetebol mas, aqui, com um grau de dificuldade infinitamente maior).
Os Chiefs voltaram à Super Bowl na turbulenta época de 2020/2021, quando foram derrotados pelos Tampa Bay Buccaneers de Tom Brady. E agora, dois anos depois, Mahomes regressa ao palco maior do futebol americano e arrisca-se a ganhar a sua segunda taça. E tem apenas 27 anos.