A segunda sova do dia está quase a chegar ao fim. Para trás tinha ficado o desfile na rua de comércio tradicional de Espinho e toda uma sessão (mais uma) de tropeções, cotoveladas e apertões. São 16h12 e o Lexus cinzento já aguarda a chegada do passageiro do costume. É quase preciso esfregar os olhos para acreditar naquela imagem: Rui Rio e Luís Montenegro, o arqui-inimigo de sempre, de braço dado e a trocarem algumas palavras de forma cúmplice. Rio pendura-se na porta do carro, despede-se ao som de gritos de “PSD” e ainda ouve Montenegro desejar-lhe a “continuação de uma boa campanha”. Um quadro surrealista à luz de (quase) tudo o que aconteceu nos últimos quatro anos. Ou futurista, dependendo da perspetiva.
Montenegro foi o último dos críticos internos a juntar-se a uma campanha a que não têm faltado alguns dos grandes opositores do líder social-democrata desde 2018 – Paulo Rangel fará o mesmo, quando Rui Rio rumar ao distrito de Viana do Castelo. Em Espinho, terra natal do antigo líder parlamentar, como antes em Santa Maria da Feira, Montenegro cumpriu o papel que lhe estava destinado: sorrir e acenar ao lado de Rio, repetir que o partido está “unido” no objetivo comum de vencer as próximas eleições legislativas e malhar nos socialistas.
O contraste face à última campanha é demasiado evidente. Em 2019, Rui Rio não perdeu uma oportunidade para atirar contra os “manhosos” e os “hipócritas” que torciam pela derrota do PSD naquelas eleições para se lançarem num ataque ao poder – como, de resto, aconteceu. Montenegro, entretanto proscrito, era o nome na cabeça de todos e dispensou (ou foi dispensado de) entrar na campanha ao lado de Rio.
Quase três anos depois, em Santa Maria da Feira, a coreografia roçou a perfeição. Os dois passearam lado a lado, engolidos pela máquina laranja e pelo emaranhado de jornalistas e repórteres de imagem, conscientes da imagem que queriam passar: pela primeira vez em muito tempo, o PSD quer mostrar-se pacificado. Pelo menos, até dia 30 de janeiro.
Quatro perguntas, quatro passes para golo. Qual é o significado de estar aqui? “O PSD está muito unido e coeso no propósito de vencer as eleições e dar a Portugal um Governo novo”, atestava Montenegro. Ao lado, Rio sorria e acenava com a cabeça.
Vai lutar pela liderança do partido se o PSD perder as eleições? “O PSD vai ganhar as eleições, essa pergunta tem de ser colocada a Pedro Nuno Santos, a Ana Catarina Mendes, a Fernando Medina ou a Mariana Vieira da Silva. Eles é que vão ter um problema de sucessão.” Ao lado, Rio sorria e acenava.
Conta ser ministro no próximo Governo? “Vamos primeiro ganhar as eleições, do Governo depois tratará o primeiro-ministro”. Ao lado, Rio sorria e acenava, tanto que até se permitiu dizer que contava com Montenegro para o futuro do partido. “Está visto que sim, ele está aqui, é porque posso contar com ele. Eu não, o partido como um todo.”
“Só se ganham as eleições no dia das eleições, que isso não sirva para todos aqueles que estão envolvidos na campanha do PSD esmorecerem o seu esforço de esclarecimento e de conquista de votos. Cheira a vitória do PSD”, despediu-se Montenegro já em Espinho. E Rio só não riu e acenou porque já tinha zarpado rumo a Aveiro. Desta vez, sem a companhia do ex-adversário transformado em cicerone, que teve até a oportunidade de viajar no carro do líder entre Santa Maria da Feira e Espinho.
A tentativa de impeachment, a campanha interna, a disputa eleitoral a duas voltas e as críticas ao líder “frouxo” na oposição que queria transformar o PSD no “satélite” do PS, conduzir a família social-democrata a “caminho do abismo”, a tornar o partido irreversivelmente “perdedor” e “irrelevante”, tudo isto caiu no baú das memórias do partido. E tudo isto está diretamente relacionado com o day-after das eleições legislativas.
Quem herda o rioísmo?
Luís Montenegro nem sequer foi o único crítico interno a aparecer ao beija-mão a Rio. Em Braga, José Manuel Fernandes, eurodeputado, que esteve com Rangel depois de ter estado ao lado de Rio na disputa com Montenegro, não faltou à chamada. Em Lisboa, Carlos Moedas, que de forma muito pouco discreta apoiou Rangel na reta final da campanha interna, passeou ao lado do líder do PSD.
Em Setúbal, Bruno Vitorino, antigo líder distrital e crítico de sempre de Rui Rio, foi espreitar a caravana. Na Guarda, Carlos Peixoto e Álvaro Amaro, que mudaram de lado nas últimas diretas, foram cumprimentar o presidente do partido.
Em Viseu, Pedro Alves, que apoiou Montenegro e Rangel, fez questão de se juntar para ver a banda passar. Paulo Leitão, líder da distrital de Coimbra, a mesmíssima coisa. E Alexandre Poço, o presidente da JSD que tem estado sempre no campo oposto ao de Rio e que em breve vai lutar pela recandidatura, tem feito todos os quilómetros da volta nacional do líder.
“Parece a Páscoa. Estão a fazer o caminho da penitência”, comentava na Guarda de forma provocadora um dos membros da comitiva de Rui Rio. “Não me posso queixar [da oposição interna], acho que neste momento está efetivamente unido, se me posso queixar, ao longo do trajeto que fiz de turbulência a mais dentro do partido, neste momento não me posso queixar disso. Não vejo que haja alguém que não esteja a colaborar ou esteja a fazer contravapor“, reconheceu o líder social-democrata à margem de uma ação de campanha em Setúbal.
O aparelho, pelo menos aquele mais mediático, que nunca suportou Rui Rio, não tem falhado nas ruas. Ao contrário do que aconteceu nas últimas eleições legislativas, com mais ou menos cabeças, desta vez, as ações do PSD são uma casa farta de bandeirinhas, militantes, jotas, bombos e concertinas. Há mobilização espontânea, sim, mas também muito trabalho das estruturas locais, muitas delas diziam cobras e lagartos do líder social-democrata há poucos meses.
A garantia de Rui Rio de que não vai disputar mais nenhuma eleição legislativa resolveu o problema da fação que sempre se lhe opôs: se o PSD ganhar, é importante aparecer na fotografia dos vencedores; se o PSD perder, é importante estar na pole position para receber o aparelho que vai ficar órfão de um líder. Seja como for, o importante, neste momento, é aparecer.
Essa figura seria Paulo Rangel se o eurodeputado não tivesse frustrado todos os planos de Rio. Caso perdesse para António Costa nas legislativas, o presidente do PSD imaginara-se a ficar à frente do partido o tempo suficiente para que Rangel se consolidasse, os votos do rioísmo transitavam tranquilamente para o eurodeputado, sem pressão dos resultados eleitorais e com um António Costa cada vez mais desgastado.
Rangel não decidiu assim. O eurodeputado recusou o convite para ser candidato ao Porto, começou a preparar sua candidatura, acreditando que as autárquicas iam correr mal, aproveitou a campanha eleitoral para lançar a sua própria máquina e, mesmo depois de um resultado eleitoral bastante feliz, quando se começou a perceber que de facto ia haver legislativas, avançou em vez de recuar.
Até hoje, o núcleo duro de Rui Rio está convencido de que Rangel ponderou suspender a candidatura mas foi impedido pela falange de apoio. Contados os votos, Rio ganhou e Rangel perdeu – estas eleições e, provavelmente, qualquer hipótese séria de vir a disputar a liderança do PSD no futuro. “Quando estava a tentar fechar a porta, não o deixaram. E ele acabou por não ter outro remédio“, lamenta ao Observador fonte da direção de Rio. “Se perdermos, não vejo ninguém em melhores condições do que ele [Luís Montenegro].”
O papel das tropas montenegristas não foi indiferente nesta disputa interna. A 8 de outubro, muito antes das eleições internas do PSD, o Observador explicava que muitos dos apoiantes do antigo líder parlamentar sentiam que seria mais vantajoso deixar Rui Rio terminar o seu ciclo político do que permitir que Paulo Rangel iniciasse o seu próprio, atirando para as calendas as hipóteses de Montenegro (ou de alguém desse grupo) chegar à liderança.
A equipa de Paulo Rangel nunca acreditou nesta tese e fez-se rodear de quase todo o aparelho que tinha sobrado de Luís Montenegro – que chegou mesmo a aparecer ao lado de Rangel na tomada de posse de Carlos Moedas, sem nunca, no entanto, declarar o apoio ao eurodeputado. O resto da história é conhecido: as bolsas de voto teoricamente dominadas por Montenegro falharam e a campanha de Rangel acabou a queixar-se de que tinham sido “traídos”.
Traição ou não, é verdade que o facto de alguns dos antigos apoiantes de Montenegro terem tirado o pé do acelerador durante campanha interna, ajudou Rio a conseguir uma vitória contra todas as expectativas. E, traição ou não, alguns dos antigos apoiantes de Montenegro acabaram premiados com lugares nas listas de deputados. Agora é tempo de escrever uma nova página. Se Rui Rio ganhar, logo se verá que papel terá Montenegro nessa história; se Rui Rio perder, o adversário de sempre terá uma oportunidade para reescrever a sua.