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Na estrutura hierárquica da Igreja Católica, a eventual demissão de um bispo é uma decisão que compete ao Papa
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Na estrutura hierárquica da Igreja Católica, a eventual demissão de um bispo é uma decisão que compete ao Papa

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Na estrutura hierárquica da Igreja Católica, a eventual demissão de um bispo é uma decisão que compete ao Papa

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O que acontece quando um bispo se demite? Na Igreja Católica, tudo está nas mãos do Papa

Depois das notícias sobre denúncias de abusos no Patriarcado de Lisboa, D. Manuel Clemente foi a Roma encontrar-se com o Papa e há especulação sobre a demissão. Como funciona o processo?

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A visita do cardeal-patriarca de Lisboa ao Vaticano para uma reunião com o Papa Francisco na semana passada, após vários dias de debate público em torno da crise dos abusos sexuais de menores na Igreja Católica em Portugal, levantou grande especulação sobre se estaria para breve uma possível saída de D. Manuel Clemente do cargo.

O Patriarcado de Lisboa, no curto comunicado em que revelou a reunião, disse apenas que o cardeal tinha sido recebido “pelo Papa Francisco, em audiência privada, no Vaticano”. Sobre o tema do encontro, o Patriarcado falou apenas de um “clima de comunhão fraterna” e de um “diálogo transparente sobre os acontecimentos das últimas semanas que marcaram a vida da Igreja em Portugal“.

Patriarca de Lisboa reuniu-se com Papa Francisco após polémica sobre denúncia de abusos que não foi entregue à polícia

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No fim de semana, o jornal Nascer do Sol publicou um artigo dando conta de que a reunião teria servido para D. Manuel Clemente colocar o lugar à disposição do Papa Francisco, pedindo para sair o mais rapidamente possível, mas o líder da Igreja Católica teria recusado, pedindo a Clemente que ficasse no cargo, pelo menos, até à Jornada Mundial da Juventude, em 2023 — evento de que D. Manuel Clemente é um dos grandes impulsionadores.

O Patriarcado de Lisboa não confirmou nem desmentiu as informações divulgadas pelo jornal Nascer do Sol. O que é certo é que a crise dos abusos de menores na Igreja em Portugal — um problema que durante anos foi rejeitado pela hierarquia católica portuguesa, que considerou sempre que no país apenas houvera um conjunto de casos pontuais — chegou pela primeira vez ao gabinete do Papa Francisco.

A pergunta, contudo, mantém-se atual: poderá a sucessão de notícias que vieram a público nos últimos dias (no Observador, na RTP e no Expresso), e que apontam para casos em que D. Manuel Clemente teve conhecimento de suspeitas de abuso sem as levar às autoridades, levar o patriarca de Lisboa a considerar a demissão?

A antiga candidata presidencial e ex-eurodeputada Ana Gomes foi uma das primeiras figuras públicas a reagir às notícias dos últimos dias. Aos microfones da Rádio Observador, apelou à demissão de D. Manuel Clemente. “Já se devia ter demitido ou ser demitido pelo Papa, naturalmente. Substituído por alguém que não tenha os mesmos padrões de tolerância relativamente a este tipo de práticas”, disse, transpondo para a realidade da Igreja o vocabulário habitual do mundo político e empresarial.

O magno chanceler e cardeal patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, intervém durante a cerimónia de inauguração da Faculdade de Medicina da Universidade Católica Portuguesa, em Talaíde, Sintra, 14 de setembro de 2021. MIGUEL A. LOPES/LUSA

D. Manuel Clemente

MIGUEL A. LOPES/LUSA

Mas o mundo da Igreja Católica tem especificidades próprias, de uma complexidade considerável. Em vários países do mundo, situações de crise em relação ao escândalo dos abusos de menores já levaram outros bispos a renunciar aos seus cargos, a ser demitidos ou a serem pressionados para se reformarem mais cedo. A comparação entre essas situações e as notícias conhecidas em relação a D. Manuel Clemente sugere que o patriarca de Lisboa não está no caminho da demissão. Mas, afinal, como funcionam estes processos? O Observador procura algumas respostas.

Uma instituição com leis próprias

A Igreja Católica é mais do que uma mera empresa, associação ou organização com manuais de conduta internos. Pelo contrário. Mais antiga do que qualquer estado, país, império ou reino do mundo contemporâneo, a Igreja Católica foi durante séculos o principal poder terreno da Europa e criou as suas próprias instituições de poder, que ainda hoje perduram, de modo paralelo às instituições seculares, reguladas por acordos bilaterais com todos os países onde existe implantação católica — o Estado português, por exemplo, tem em vigor a Concordata com a Santa Sé, acordo que regula a presença da Igreja Católica no país e lhe dá um conjunto de benefícios e prerrogativas relacionadas com a sua própria gestão interna e a sua relação com o Estado.

A Igreja Católica tem o seu próprio sistema judicial, composto por tribunais próprios e por leis próprias, codificadas no Código de Direito Canónico, reconhecido civilmente pelas autoridades portuguesas. Entre as principais proteções asseguradas pela Concordata encontra-se a nomeação dos bispos católicos portugueses — que compete exclusivamente à Santa Sé, num processo no qual o Estado não pode ter intervenção.

Outro mito comum diz respeito ao patriarca de Lisboa: D. Manuel Clemente tem o título de patriarca e a dignidade de cardeal por causa de uma tradição histórica, mas do ponto de vista eclesial é somente o bispo de Lisboa e não o líder da Igreja portuguesa.

No caso português, a Igreja Católica encontra-se organizada em 21 dioceses (que correspondem, grosso modo, aos distritos civis, a que se soma a diocese das Forças Armadas), encabeçadas por um bispo titular. Os bispos são a autoridade máxima da Igreja Católica global: em cada diocese, o bispo é a autoridade última; no governo da Igreja a nível mundial, a autoridade é exercida pelo corpo coletivo dos bispos, unidos em torno do Papa.

Para facilitar a organização a nível regional e nacional, surgiram as conferências episcopais nacionais, organismos colegiais que reúnem todos os bispos de um determinado país ou território. Ao contrário do que por vezes se julga, a Conferência Episcopal Portuguesa não é um organismo de liderança da Igreja em Portugal. É, na verdade, o colégio dos bispos portugueses, que podem tomar por unanimidade decisões que digam respeito a todas as dioceses do país. O presidente da Conferência Episcopal (cargo eletivo atualmente ocupado pelo bispo de Leiria-Fátima, D. José Ornelas) não é o líder da Igreja portuguesa, embora possa ser considerado o seu atual porta-voz ou representante. Outro mito comum diz respeito ao patriarca de Lisboa: D. Manuel Clemente tem o título de patriarca e a dignidade de cardeal por causa de uma tradição histórica, mas do ponto de vista eclesial é somente o bispo de Lisboa e não o líder da Igreja portuguesa.

Este contexto sobre a hierarquia da Igreja Católica traz-nos à pergunta: em que circunstâncias é que um bispo se demite ou é demitido? Que consequências tem a saída de um bispo da sua diocese? Quem é responsável por determinar a saída do bispo?

A demissão do cargo

O caso de D. Manuel Clemente é um bom exemplo para perceber o que está em causa numa eventual renúncia. D. Manuel Clemente é cardeal-patriarca de Lisboa, um título com três palavras, cada uma com a sua importância:

  • Cardeal. O facto de D. Manuel Clemente ser cardeal não significa que esteja hierarquicamente acima de um bispo. A hierarquia dos cargos eclesiásticos é independente dos títulos cardinalícios. O título de cardeal tem origem na designação antigamente atribuída aos colaboradores mais próximos do Papa, padres e bispos de Roma que colaboravam no governo da Igreja a nível global e que tinham o privilégio de eleger o Papa. Atualmente, este título é atribuído pelo Papa a padres e bispos de todo o mundo consoante critérios históricos, de tradição ou até de escolha pessoal do Papa. Os cardeais têm a dignidade de vestir vestes vermelhas, integram o colégio cardinalício (podendo eleger o Papa), colaboram com a Cúria Romana e assumem a titularidade simbólica de uma igreja na cidade de Roma. Contudo, podem manter os seus cargos normais na Igreja, como bispos de uma determinada diocese. Habitualmente, a escolha dos cardeais é vista como uma ferramenta ao dispor do Papa para influenciar a composição do colégio cardinalício e, por conseguinte, a eleição do próximo Papa. No caso de Lisboa, trata-se de uma das muitas dioceses europeias em que existe a tradição de atribuir ao bispo local a dignidade de cardeal, algo que o Papa Francisco decidiu manter. Mas o título de cardeal não significa uma subida na hierarquia da Igreja portuguesa. Veja-se o caso do cardeal D. António Marto, nomeado cardeal por escolha pessoal do Papa Francisco, que se manteve como bispo de Leiria-Fátima até ao final da sua carreira eclesiástica e hoje é bispo emérito daquela diocese.
  • Patriarca. Estamos habituados a ouvir o termo “patriarca” associado às Igrejas orientais ou ortodoxas. No universo católico latino, o termo patriarca é um título honorífico usado por apenas cinco bispos. Um deles é o bispo do Patriarcado de Lisboa (que recebeu o título no século XVIII); outro é o bispo do Patriarcado de Veneza (que recebeu o título no século XV). O título é ainda usado pelo Patriarcado das Índias Orientais (o bispo latino que lidera a diocese de Goa e Damão) e pelo patriarca latino de Jerusalém. Finalmente, também o Papa, bispo da diocese de Roma, tem o título de patriarca do Ocidente — o patriarca de Roma era, de resto, um dos cinco patriarcas da pentarquia cristã do primeiro milénio, ao lado dos patriarcas de Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém.
  • De LisboaD. Manuel Clemente é, na essência, o bispo da diocese de Lisboa, apesar dos títulos mais sonantes do que a generalidade dos bispos portugueses.

A referência à possibilidade de D. Manuel Clemente renunciar ao cargo prende-se com uma eventual renúncia à liderança da diocese de Lisboa. Isto significa deixar o cargo de bispo de Lisboa (e, portanto, deixar de ser patriarca, uma vez que o título é atribuído à diocese e não à pessoa), mas não o seu título de cardeal, que é atribuído a nível pessoal. Deixar o cargo — ou, como diz o Direito Canónico, o “ofício eclesiástico” — não é o mesmo que deixar o sacerdócio o ou episcopado. Na prática, o bispo de uma determinada diocese pode deixar de ser bispo dessa diocese, mas não deixa de ser bispo.

O Código de Direito Canónico prevê que um ofício eclesiástico possa ser perdido de várias formas: por limite de idade ou de tempo, por renúncia, por transferência, por remoção ou por privação.

epa10098165 Pope Francis holds a news conference aboard the papal plane on his flight back after visiting Canada, 30 July 2022.  EPA/GUGLIELMO MANGIAPANE / POOL

Papa Francisco

GUGLIELMO MANGIAPANE / POOL/EPA

No que toca ao limite de idade, as normas da Igreja Católica determinam, atualmente, que todos os bispos devem apresentar a sua renúncia ao Papa quando completam 75 anos. Apresentar a renúncia não significa abandonar de imediatamente o cargo: é necessário que o Papa aceite a renúncia de determinado bispo. É comum que o Papa não aceite a renúncia dos bispos logo aos 75 anos, pedindo-lhes que continuem em funções durante mais um ou dois anos. Além do limite de idade, o Direito Canónico também determina que os bispos devem apresentar a renúncia quando, “em virtude da sua precária saúde ou outra causa grave, se tenham tornado menos aptos para o desempenho do seu ofício”. D. Manuel Clemente tem atualmente 74 anos e completa 75 em julho do próximo ano.

Os motivos de saúde são os mais frequentemente invocados por bispos que abandonam o cargo antes dos 75 anos. Mas também pode acontecer que um bispo considere já não ter condições para continuar em funções por outras causas graves, incluindo a possibilidade de ter perdido a confiança do seu clero ou dos fiéis da sua diocese na sequência de algum escândalo. Basta lembrar o caso do cardeal Bernard Law, antigo arcebispo de Boston, que em 2002 foi forçado a pedir a renúncia depois de vários padres da sua diocese terem assinado uma carta aberta dizendo que tinham perdido a confiança nele. Nesse ano, o jornal Boston Globe tinha publicado as reportagens Spotlight que representaram um ponto de viragem na crise dos abusos de menores na Igreja. Quando renunciou, Law tinha apenas 71 anos. Também pode acontecer que o próprio Papa peça a um bispo que apresente a renúncia na sequência de algum escândalo, de modo a poupar ao bispo a humilhação de ser removido do cargo.

Ainda no plano das hipóteses, uma eventual renúncia de D. Manuel Clemente ao cargo de patriarca de Lisboa transformá-lo-ia no patriarca emérito de Lisboa. Manteria o título de cardeal e, até aos 80 anos, continuaria a ter direito a participar e a votar num eventual conclave para a eleição do próximo Papa.

Ao longo dos últimos anos, têm-se verificado múltiplos casos de bispos que pediram a renúncia ao Papa na sequência de escândalos públicos relacionados com o modo como agiram perante denúncias de abuso sexual de menores no passado. Nem sempre a renúncia foi apresentada por motivos estritamente pessoais. No ano passado, por exemplo, o cardeal alemão Reinhard Marx, antigo presidente da Conferência Episcopal Alemã, apresentou a renúncia ao Papa Francisco por considerar que, pelo seu cargo, devia partilhar da responsabilidade pelo modo como a Igreja alemã tinha lidado no passado com situações de abuso. O Papa não aceitou a renúncia.

O Direito Canónico prevê ainda a possibilidade de remoção e de privação de um ofício eclesiástico, como pena para um delito ou por causas graves. Nestes casos, um bispo só pode ser removido do cargo eclesiástico depois de ser feito um processo canónico que comprove a sua culpa e de a Santa Sé dar luz verde a essa pena. Segundo o Direito Canónico, o título de bispo ou patriarca emérito está reservado àqueles que abandonarem o cargo por renúncia ou por limite de tempo. Estes podem continuar a ser sustentados pela Igreja, preferencialmente pela diocese a cuja liderança renunciaram. Atualmente, em Portugal, existem mais de duas dezenas de bispos eméritos, que têm assento na Conferência Episcopal, embora não tenham direito de voto.

Ainda no plano das hipóteses, uma eventual renúncia de D. Manuel Clemente ao cargo de patriarca de Lisboa transformá-lo-ia no patriarca emérito de Lisboa. Manteria o título de cardeal e, até aos 80 anos, continuaria a ter direito a participar e a votar num eventual conclave para a eleição do próximo Papa. Igualmente, do ponto de vista formal, D. Manuel Clemente continuaria a ser elegível para o trono papal num futuro conclave — aliás, esta possibilidade não advém do facto de ser cardeal, mas do simples facto de ser homem, maior de idade e batizado pela Igreja Católica. Formalmente, embora o direito de voto esteja reservado aos cardeais, o escolhido pode ser qualquer homem católico. Ainda assim, desde o século XIV que o Papa foi sempre escolhido de entre os cardeais.

A perda do estado clerical

Diferente da renúncia ou demissão de um cargo de bispo — situação na qual o clérigo apenas perde a função que tinha, sem perder o seu estatuto de clérigo — é a possibilidade de demissão do estado clerical. Esta é a pena mais grave que pode ser aplicada a um clérigo ao abrigo do Código de Direito Canónico e apenas pode ser aplicada na sequência de um processo judicial nos tribunais eclesiásticos. Não é, por isso, uma decisão de âmbito político ou simbólico, e está reservada aos casos mais graves, particularmente aos abusadores sexuais condenados.

Segundo o Direito Canónico, um clérigo que perde o estado clerical é efetivamente expulso do clero, perdendo os direitos associados a essa pertença e deixando igualmente de estar sujeito às obrigações, incluindo, por decisão do Papa, o celibato.

No caso da demissão do estado clerical, o que está em causa é realmente uma mudança de estatuto da pessoa — e não apenas no plano das funções. No caso de D. Manuel Clemente, esta hipótese não se coloca.

Segundo o Direito Canónico, um clérigo que perde o estado clerical é efetivamente expulso do clero, perdendo os direitos associados a essa pertença e deixando igualmente de estar sujeito às obrigações, incluindo, por decisão do Papa, o celibato. A decisão de demitir um clérigo do estado clerical é definitiva, pelo que um padre ou bispo nesta situação não podem ser reintegrados entre o clero — ainda que não percam o sacramento da ordem, que é impossível de reverter.

Esta pena tem sido aplicada a muitos padres condenados por abuso sexual de menores. Há também casos em que foi o próprio padre a pedir a dispensa por iniciativa própria, por ter sido alvo de acusações de abusos sexuais.

Esta pena também pode, naturalmente, ser aplicada a um cardeal. O caso mais conhecido é o do cardeal norte-americano Theodore McCarrick, ele próprio condenado por ter abusado sexualmente de jovens seminaristas. McCarrick foi inicialmente suspenso e demitido do colégio cardinalício (o que significa que deixou de ser cardeal, mas não deixou de ser bispo). Posteriormente, foi-lhe aplicada a pena de demissão do estado clerical, transformando-o, na prática, num leigo.

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