Ao fim de 1664 dias como ministro das Finanças, e depois do primeiro excedente orçamental e de três anos com a dívida do Estado a cair, a herança que Mário Centeno deixa ao sucessor é pesada. Dívida pública volta a disparar para a percentagem mais alta de sempre do produto, 134,3% do PIB (mais 16,7 pontos percentuais que no final de 2019), e um défice comparável aos piores anos da troika, 6,3%. A culpa é do Covid. E mais do que gastar mais e receber menos, é a contração da atividade económica — que o Governo antecipa venha a ser de 6,9% este ano, mas ainda há muita incerteza — que explica o agravamento dos dois indicadores.
Essa foi uma das notas que o ministro quis deixar na conferência de despedida para apresentar a proposta de Orçamento Suplementar — em vez de Retificativo porque Centeno se identifica como o homem das contas certas que acertou nas previsões no passado, desafiando estimativas mais negativas de instituições internacionais. Segundo o ainda ministro das Finanças, a maior percentagem da degradação da dívida pública, cerca de 10 pontos percentuais, resulta da contração do produto. O resto vem da degradação do saldo orçamental que resulta da combinação de mais despesas com menos receitas.
A previsão aponta para um saldo negativo de 14.450 milhões de euros, o que representa uma deterioração implícita de 10.581,8 milhões de euros face à execução de 2019, enquanto o saldo primário se cifra em 6.741 milhões de euros negativos (902,8 milhões de euros positivos em 2019). De onde vem este défice?
Segundo números revelados pelo sucessor de Centeno, João Leão, a receita vai cair 4.400 milhões de euros, “em grande parte resultante da redução da receita de impostos do Estado, cerca de 4.000 milhões, mas também da redução de 400 milhões de contribuições para a Segurança Social”.
Não o disse na altura, mas estes 4.400 milhões de euros são a diferença face à receita fiscal de 2019. Comparando com o que o Governo inscreveu no Orçamento do Estado para 2020, os números pioram. O relatório que acompanha a proposta de Orçamento suplementar deixa uma ideia mais clara: face ao que o governo previa arrecadar este ano em receita fiscal, o impacto da crise da Covid-19 é maior: 5,2 mil milhões de euros.
João Leão acrescentou que se prevê-se, “para além da redução da receita, um aumento da despesa para fazer face à crise de saúde publica e às consequências, de cerca de 4.300 milhões de euros a mais do que estava previsto para o Orçamento do Estado para 2020”.
A receita fiscal cai sobretudo no IRC, IVA e imposto petrolífero
A proposta orçamental antecipa que a receita fiscal do Estado vai cair mais de 8%, face ao ano passado. Nos impostos direto a maior talhada vem do IRC, o imposto das empresas, cuja cobrança deve recuar 24% face a 2019. Esta descida resulta da travagem da economia, mas também de medidas de ajustamento dos pagamentos por conta.
Quanto aos impostos indiretos, estima-se uma queda de 2.462 milhões de euros face ao ano passado (-9%), para a qual concorre a perda da receita estimada de IVA, de 1.815 milhões de euros (-10%), motivada pela evolução estimada para o consumo privado e para as importações. Nesta quebra pesam também o imposto sobre os produtos petrolíferos, que recua 268 milhões de euros, o imposto sobre veículos com uma perda antecipada de de 236 milhões de euros, por via da forte quebra nas vendas de automóveis.
As contribuições para a Segurança Social devem cair 6,2% face ao ano passado e representar menos 2.304 milhões de euros do que estava previsto para este ano.
Segurança Social vai liderar aumento da despesa
Do lado da despesa, a Segurança Social vai ser a principal fonte de pressão. Face ao ano passado, o Orçamento Suplementar aponta para um aumento de 17,5% da despesa, mais 4.663 milhões de euros. Este acréscimo, refere o documento, é sobretudo explicado por medidas de apoio a empresas e ao emprego que equivalem a 1.944 milhões de euros, com “particular destaque para o apoio às empresas via layoff simplificado e incentivo extraordinário à normalização da atividade empresarial, bem como para apoio aos trabalhadores, nomeadamente através do apoio extraordinário à redução da atividade económica dos trabalhadores independente.
Aqui o documento aprovado esta terça-feira trouxe algumas novidades. Os contornos da medida de apoio que vai substituir o layoff simplificado a partir de julho já foram explicados no Programa de Estabilização Económica e Social, mas a proposta de orçamento suplementar especificou que as empresas apenas vão poder usá-la por um período máximo de cinco meses.
“O empregador que esteja em situação de crise empresarial, nos termos da alínea anterior, pode aplicar um regime de redução do período normal de trabalho e respetiva remuneração, com a duração de um mês, prorrogável mensalmente até ao máximo de cinco meses”, refere a proposta de Orçamento Suplementar.
Em simultâneo, este novo regime vai ainda prever limites à redução temporária do período normal de trabalho, podendo estes “variar em função da dimensão da quebra de faturação e do período de aplicação do regime”.
Tal como sucede com o layoff simplificado, o regime que lhe vai suceder também estabelece limites a despedimentos e “ao início dos respetivos procedimentos pelo empregador abrangido pelo apoio à retoma progressiva de atividade”. A medida do layoff simplificado (que acaba em julho) e o seu novo modelo “custarão cerca de 1.100 milhões de euros adicionais de despesa”.
Por outro lado, as contas revistas da Segurança Social antecipam ainda uma subida de 5,4% na despesa com pensões, o qual incorpora um novo aumento extraordinário com incidência a partir de maio e o previsível acréscimo de despesa com o subsídio de desemprego, mais 27%, e também do reforço da ação social, mais 12,9%.
A Saúde é outro setor apontado como tendo um reforço de 504 milhões de euros, mais 4,5% do que o inscrito no Orçamento aprovado para este ano e que já previa um acréscimo dos gastos nesta área. Segundo contas da proposta, a saúde vai receber mais 8,1% (ou 883 milhões de euros) do que a execução do ano passado. Este bolo divide-se por despesas com pessoal, mais 205,8 milhões de euros, aquisição de bens e serviços (mais 250 milhões de euros que incluem os meios de combate e prevenção à Covid-19) e por investimento, mais 21%.
Outra nota para o Programa de Estabilização Económica e Social, o PEES. Ao apresentá-lo, o primeiro-ministro disse que as medidas lá contidas somadas ascendiam a mais de 5 mil milhões de euros. Mas o orçamento suplementar que se ficou a conhecer dá conta que o impacto orçamental do PEES será de 1.635 milhões de euros. E desses, 1.182 milhões vem direitinhos do SURE, o programa europeu de ajuda à proteção do emprego.
A ajuda à TAP. Empréstimo de 946 milhões para já
Outra fonte de despesa pública ainda não totalmente esclarecida é a ajuda do Estado à TAP, cuja referência é feita apenas na última frase do relatório que acompanha a proposta entregue no Parlamento.
O secretário de Estado do Tesouro, Álvaro Novo, revelou que o Orçamento Suplementar contempla uma ajuda máxima de 1.200 milhões de euros (esse é o valor em negociação com a Comissão Europeia num processo que deverá estar concluído esta semana). Mas esse montante inclui já uma percentagem para imprevisibilidade da evolução no setor da aviação comercial. A proposta orçamental inscreve um empréstimo (presume-se que público) de 946 milhões de euros à transportadora, sem se conhecer mais sobre os instrumentos a usar, nem quais as contrapartidas que o Governo vai impor à gestão privada na companhia aérea.
As contas apresentadas também apontam para um crescimento do investimento público de 36,4% face a 2019, o que se traduz em 6.447 milhões de euros, mas a proposta não especifica projetos, para além dos destinos referidos no setor da saúde. Isto num contexto em que a retração dos privados deverá conduzir a uma queda de mais de 12% no investimento total para este ano.
Portugal pode ter de emitir mais 10 mil milhões de dívida
E como será financiado este saldo negativo? O documento antecipa um “aumento excecional da dívida direta do Estado, como reflexo do impacto da pandemia COVID-19 e das medidas necessárias para combater este efeito. O financiamento destas medidas, num contexto de quebra da atividade económica, deverá elevar o saldo da dívida direta do Estado para 271,8 mil milhões de euros no final de 2020, representando um crescimento de 8,3% face a 2019.”
O Orçamento Suplementar aumenta o limite de endividamento líquido do Estado este ano para 20 mil milhões de euros, o dobro do que está inscrito no orçamento em vigor. Para além do acréscimo da dívida emitida no mercado internacional, a proposta prevê também um reforço significativo do contributo dos aforradores privados de onde virão mais de 4.000 milhões de euros.
A proposta discrimina qual será o impacto orçamental das medidas previstas no Programa de Estabilização Económica e Social (PEES).
E como se dá a volta? Na última entrevista que deu como ministro (na última sexta-feira à Antena 1), Mário Centeno afastou medidas de austeridade no sentido de aumento de impostos e do cortes na despesa. A proposta de Orçamento Retificativo confirma esta orientação, com a eventual exceção para uma nova contribuição solidária sobre o setor bancário. Este adicional de solidariedade, com uma receita prevista de 33 milhões de euros, “deverá contribuir para suportar os custos da resposta pública à atual crise, através da sua consignação ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social”.
Nos documentos que acompanham a proposta orçamental é ainda mencionado o relançamento do Crédito Fiscal Extraordinário de Investimento, permitindo uma dedução para as despesas de investimento tidas no segundo semestre de 2020 e no primeiro semestre de 2021, mas sujeito ao cumprimento da obrigação de manter postos de trabalho durante um período de três anos.
Mas isso é em 2020. Para 2021, o documento antecipa uma recuperação económica com um crescimento de 4,3% da economia e um défice abaixo dos 3%, referido na conferência de imprensa por João Leão. Como se chega lá? O futuro ministro das Finanças sinalizou no final que só com a recuperação da economia “é que se conseguem boas contas e contas certas”.
E o que ficou por responder
Porque sai agora Centeno depois de apresentar uma proposta de Retificativo que já não irá defender no Parlamento? O ministro das Finanças nunca respondeu diretamente às questões, mas o timing da exoneração terá sido concertado para se antecipar à reunião do Eurogrupo onde Mário Centeno teria de indicar se era candidato a um novo mandato. Desfeito o tabu da saída do Governo, fica o outro tabu: a ida para governador do Banco de Portugal. Mário Centeno apenas esclareceu que não ia ser deputado.
Quem vai fazer parte da nova equipa das Finanças? João Leão evitou responder à pergunta feita. De acordo com informação saída ao longo do dia, saem com Centeno, Ricardo Mourinho Félix e Álvaro Novo. Resta saber se António Mendonça Mendes fica nos Assuntos Fiscais e quem serão os novos secretários de Estado.