Depois da aprovação do Parlamento Europeu, da ratificação final do Conselho e da publicação em jornal oficial da União Europeia, as novas regras de governação orçamental europeia entraram em vigor esta terça-feira, 30 de abril, tendo em conta “a crescente heterogeneidade das situações orçamentais, das dívidas públicas e dos desafios económicos, bem como de outras vulnerabilidades dos diferentes Estados-membros”.
O processo demorou vários anos até ver a luz do dia e teve de atravessar uma pandemia que até deu mais tempo para se aprofundar a discussão. Durante a crise da Covid-19, as regras que vigoravam foram postas em suspenso. Os países aumentaram as suas dívidas e serviram-se dos respetivos orçamentos para responderem à emergência. Também aí surgiu o instrumento europeu do Next Generation EU (financiamento com dívida europeia), que contém o Mecanismo de Recuperação e Resiliência onde está o PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) nacional.
Já antes de o mundo ser atingido pelo surto pandémico, a Comissão Europeia tinha notado a necessidade de revisitar as regras orçamentais europeias. Uma discussão que também ela acabou em stand by. Foi retomada em 2021 com o lançamento do debate público sobre a análise do quadro de governação económica da União Europeia e depois de aprovado no Parlamento Europeu o relatório de iniciativa da autoria da eurodeputada socialista Margarida Marques, que convocava Bruxelas a rever as regras.
O documento invocava a obsolescência das determinações decorrentes do Tratado de Maastricht de 1992. Foram precisos mais três anos para que as novas normas vissem a luz do dia. Mas agora, a partir deste ano, os Estados-membros vão ter de olhar para os seus orçamentos de maneira diferente. Sendo certo que os limites de dívida e de défices se mantêm, os Estados-membros têm de fazer correções para garantir que ficam abaixo desses níveis. Não podem ter desequilíbrios orçamentais acima de 3%, nem podem continuar com dívidas superiores a 60% do PIB, ainda que se contenham essas correções a quem tenha uma dívida entre os 60% e os 90%.
Segundo se determina nas novas regras, a dívida pública tem de diminuir em cerca de 1% do PIB por ano se estiver acima de 90% ou em 0,5% se estiver abaixo de 90%, mas acima de 60%. Portugal está com uma dívida abaixo dos 100%, mas ainda acima dos 90%, o que determinaria uma redução anual de cerca de 2,7 mil milhões de euros, já que o PIB está em torno dos 270 mil milhões de euros.
Face a estes dados, a Comissão Europeia indicará uma trajetória de referência “expressa em termos de despesas líquidas plurianuais” aos Estados-membros que ultrapassem esses limites. O período de ajustamento é de quatro anos, mas pode ir aos sete. A 21 de junho, Portugal saberá a sua trajetória de referência, tendo de enviar para Bruxelas até 20 de setembro o plano de médio prazo para fazer face a essas determinações.
Ou seja, passam a ser consideradas, para ajustamento, as despesas primárias, não considerando medidas discricionárias do lado das receitas, juros, as despesas cíclicas com o desemprego e o cofinanciamento de fundos europeus.
“Os planos orçamentais-estruturais nacionais de médio prazo deverão reunir os compromissos em matéria de política orçamental, de reformas estruturais e de investimentos assumidos por cada Estado-membro”. Os planos deverão definir “a trajetória orçamental, bem como as reformas e os investimentos públicos prioritários que, conjuntamente, assegurem uma redução sustentada e gradual da dívida e um crescimento sustentável e inclusivo, evitando uma política orçamental pró-cíclica”, indica-se no diploma.
Também terão de “incluir reformas e investimentos de alcance mais geral, nomeadamente no que diz respeito às prioridades comuns da União, a saber, a transição ecológica, incluindo o Pacto Ecológico Europeu e a transição para a neutralidade climática até 2050; a transição digital, incluindo o Programa Década Digital para 2030; a resiliência social e económica e a aplicação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, incluindo as metas conexas em matéria de emprego, competências e redução da pobreza até 2030; a segurança energética; e o reforço das capacidades de defesa, se for caso disso, incluindo a Bússola Estratégica para a Segurança e a Defesa ou os atos subsequentes da União relevantes para essas prioridades”. Antes deste plano haverá diálogo técnico entre os países e a Comissão Europeia.
Margarida Marques, que foi a conegociadora do Parlamento Europeu com o Conselho da UE para que o acordo fosse alcançado, acredita que “se nós olharmos de uma forma pura e dura, sem outros critérios, e antes da negociação, tendo em conta o superávite e o atual modelo de receita, Portugal poderia aumentar significativamente a despesa”. O número “pode ser ainda reservado, mas Portugal pode aumentar a despesa no atual contexto”, acrescenta em declarações ao Observador, realçando, no entanto, que há vários fatores em jogo nessa definição da trajetória de referência, aproveitando para questionar o “irrealismo do cenário macroeconómico” do Governo que é de cor oposta à sua.
No programa da AD, no cenário macroeconómico, apontava-se para um crescimento da despesa primária de 100 milhões de euros de 2023 para 2024, ou seja, 0,24% para atingir os 41,3 mil milhões de euros. Ainda assim, Margarida Marques reforça a ideia de que Portugal está numa situação “privilegiada” para aumentar a despesa, até porque em 2023 fechou o ano com um excedente de 1,2%.
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“Se nós olharmos para a atual situação da dívida e para a atual situação orçamental, podemos dizer que Portugal pode aumentar significativamente a despesa. Pode. Mas compete a Portugal decidir quais são as suas prioridades. Se é pagar a dívida, se é reduzir as receitas. Uma coisa é certa, Portugal não pode desculpar-se com o quadro das regras orçamentais”.
O alerta sobre as regras europeias já tinha sido dado por Mário Centeno, governador do Banco de Portugal, dizendo que, por causa delas, seria um erro pensar que o caminho é outra coisa que não “muito estreito” mesmo considerando os recentes bons resultados na frente económica e orçamental. Esses bons resultados dão alguma “margem” para a política económica criar “almofadas” para o futuro mas, à luz dessas novas regras europeias, a “margem” existente torna-se “essencialmente nula”, disse o governador do Banco de Portugal.
Margarida Marques realça, por outro lado, ao Observador, em conversa telefónica, que agora é, no entanto, ao Estado-membro que compete definir as suas políticas e as suas prioridades.
“Muito difíceis” negociações entre Parlamento e Conselho
As regras entram em vigor depois do acordo alcançado, em fevereiro, entre Parlamento Europeu e Conselho. Um acordo que demorou 18 horas a alcançar. Depois de chegarem a um entendimento, o Parlamento Europeu votou-o a 23 de abril, a última sessão plenária antes das eleições europeias.
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Margarida Marques, conegociadora e correlatora pelo Parlamento Europeu, admite que as negociações que envolveram as regras europeias foram “muito difíceis”. Mas acredita que os eurodeputados conseguiram algumas vitórias. “É um assunto muito divisivo”, salienta, falando mesmo das famílias partidárias no Parlamento. E também aí teve de negociar para que, no final, o acordo fosse aprovado por 359 votos a favor, 166 contra e 61 abstenções. Já antes, para receber mandato para negociação com o Conselho, teve de haver movimentações.
????️Parte final da minha intervenção sobre a Reforma das Regras de Governação Económica onde fui co negociadora pelo Parlamento Europeu.
As novas regras foram aprovadas hoje por larga maioria no parlamento num processo liderado por 4 mulheres!✊ pic.twitter.com/g2wGoxFLrg
— Margarida Marques MEP (@mmargmarques) April 23, 2024
As negociações acabaram por ficar a cargo de Margarida Marques, socialista e de um país do sul da Europa, em conjunto com a eurodeputada neerlandesa, Esther de Lange, do PPE (Partido Popular Europeu) — grupo que tem os portugueses do PSD/CDS. Margarida Marques acaba por recordar as declarações do então presidente do Eurogrupo, o holandês Jeroen Dijsselbloem, em 2017, em que dizia que “como social-democrata considero a solidariedade um valor extremamente importante. Mas também temos obrigações. Não se pode gastar todo o dinheiro em mulheres e álcool e, depois, pedir ajuda”.
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O mandato para as negociações tripartidas entre Comissão Europeia, Parlamento Europeu e Conselho da UE foi dado em janeiro. “A reforma do PEC (Pacto de Estabilidade e Crescimento) é um dos mais controversos temas da agenda europeia. Tem gerado profundas divisões ao nível europeu, nacional e mesmo dentro das diversas famílias políticas. A reforma atual não é exceção”, dizia Margarida Marques, então, num artigo de opinião no Público.
Já aí antecipava negociações difíceis. É que conforme diz se a primeira proposta da Comissão Europeia era “uma boa base de trabalho”, esta acabou por se distanciar um pouco e com evoluções lentas até pelo silêncio da Alemanha, acabando o compromisso aprovado, em dezembro, pelo Conselho de União Europeia por se distanciar da posição do Parlamento.
“Acho que o que conseguimos foi muito bom”, realça Margarida Marques, lembrando os seis trílogos com o último a durar as tais 18 horas. “Sem interrupção”.
E daí resultou o diploma agora publicado e que entrou em vigor. Margarida Marques reforça algumas conquistas deste novo quadro, nomeadamente o facto de a Comissão Europeia poder ouvir os Estados-membros antes de comunicar a trajetória de referência. “Tem de ouvir os Estados-membros, caso os Estados-membros o desejem, e espero que Portugal deseje”, salienta a eurodeputada que não cumprirá novo mandato, já que ficou de fora das listas do PS às eleições europeias marcadas para 9 de junho.
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Por outro lado, garante-se que, caso haja uma mudança no Governo, possa ser pedida uma modificação ao programa de ajustamento. “Comparando com a crise de 2011, é particularmente importante para que os cidadãos percebam que se há mudança de governo também há mudança de políticas”, diz a eurodeputada. “No caso de um governo recém-nomeado, os Estados-Membros deverão ter a possibilidade de apresentar à Comissão um plano orçamental-estrutural nacional de médio prazo revisto. Se existirem circunstâncias objetivas que impeçam a execução de um plano orçamental-estrutural nacional de médio prazo, os Estados-Membros deverão ter a possibilidade de solicitar a apresentação de um plano revisto à Comissão o mais tardar 12 meses antes do termo de vigência do plano em vigor”, lê-se no diploma em vigor.
Das negociações resultou ainda uma maior flexibilidade para o investimento. O Conselho da UE pretendia essa flexibilidade para a defesa, nomeadamente num momento em que se exige uma dotação orçamental de 2% para esta área no âmbito da NATO. A União Europeia fala de avançar com um programa específico para a defesa que poderá incluir, tal como aconteceu com o Next Generation EU, dívida europeia. Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, admitiu já que esse é um “trabalho em curso”.
“Fiquei positivamente surpreendido por observar que este não foi um debate muito idealista. Por vezes, quando se fala de dinheiro, acaba por ser muito ideológico, mas desta vez foi pragmático, e alguns Estados-membros normalmente mais relutantes com a ideia de uma dívida comum para um investimento comum foram, desta vez, menos ideológicos e mais no espírito de que o que conta é o objetivo, o propósito e depois logo se veem as ferramentas”, realçou, citado pela Lusa, numa alusão ao ceticismo de países mais “frugais” como Alemanha e Países Baixos.
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O trabalho está a ser feito, mas poderá acontecer só depois dos reembolsos associados ao mecanismo de resiliência criado para a emergência da Covid-19 em 2026 — Margarida Marques defende que devia ser estendido para 2027, como aliás foi defendido pelo anterior Governo português.
A par dos investimentos na defesa relevam para os planos de médio prazo os investimentos ligados à transição ecológica e digital justa, a resiliência social e económica e a segurança energética. Além disso, durante a vigência do Mecanismo de Recuperação, “sempre que os planos de recuperação e resiliência incluam reformas e investimentos ambiciosos, em especial no que diz respeito ao crescimento económico e à sustentabilidade orçamental a médio prazo, deverá considerar-se que cumprem os requisitos para a prorrogação do período de ajustamento para os primeiros planos orçamentais-estruturais nacionais de médio prazo”.
Mesmo a abertura de procedimentos por défices excessivos ou, neste novo quadro, de desequilíbrio excessivo, só acontecerá com as justificações dos Estados-membros. Margarida Marques também aponta esta questão como uma conquista do novo plano. “Conseguimos salvaguardar que não há uma entrada automática no procedimento, ou seja, se houver um problema no programa de ajustamento, o país tem de apresentar um relatório para explicar o que não funcionou. Se foi por causa do investimento terá um tratamento diferenciado, porque o investimento é um fator chave relevante”.
Sendo a despesa líquida o critério chave neste novo quadro, garantiu-se que as contrapartidas nacionais, exigidas nos fundos europeus, não fossem consideradas para apurar o valor do indicador. O Conselho já admitia essa não inclusão, mas com um teto. “Quando à uma e meia da manhã eu digo ao ministro das Finanças belga [o negociador pelo Conselho] que ainda havia cinco pontos de divergência e um deles era o cofinanciamento sem teto, ele diz-me que sim. Eu voltei-me para o meu assistente e perguntei: ‘percebi bem?’. E a minha conegociadora diz-me ‘sim, percebeste bem’, porque ela era contra, mas aceitou”. E assim ficou sem teto a isenção das contrapartidas nacionais. “Para Portugal é muito importante”. Numa questão enviada à Comissão, foi referido que na média dos 27 países o impacto era de 1% do PIB. Portugal é mais, é de 3,7%, segundo escreveu Margarida Marques num artigo de opinião no Expresso.
No geral, Margarida Marques faz um balanço positivo das regras, mas gostava que fossem mais simples. “Podiam ser mais simples”, mas conquistou-se a definição do “caso a caso” e na auscultação dos Estados-membros. Ficou ainda a orientação política para que os planos de médio prazo sejam aprovados pelos parlamentos nacionais, sendo certo que não pode ser uma imposição por via das limitações constitucionais de alguns países.
“Cada plano orçamental-estrutural nacional de médio prazo deverá mencionar o seu estatuto no contexto dos procedimentos nacionais, referindo em especial se foi apresentado ao parlamento nacional e se foi aprovado pelo parlamento nacional. O plano orçamental-estrutural nacional de médio prazo deverá igualmente indicar se o parlamento nacional teve oportunidade de debater a recomendação do Conselho sobre o plano anterior e, se aplicável, quaisquer outras recomendações ou decisões do Conselho, ou uma eventual advertência da Comissão”. O CFP deve ser consultado, assim como “os parceiros sociais, as autoridades regionais, as organizações da sociedade civil e outras partes interessadas nacionais pertinentes”. E também “deverão ser incluídas, no plano orçamental-estrutural nacional de médio prazo, informações sobre a consulta dos parlamentos nacionais e sobre o processo de consulta”.