São 2h30 da madrugada deste sábado e um grupo de jovens, entre os 17 e os 19 anos, surge em ritmo acelerado junto à pastelaria Mabi, um dos locais mais famosos de Vila Nova de Milfontes, ponto de chegada e de partida para quem está de férias. Vêm ofegantes, assustados e dizem estar em fuga de um grupo de habitantes locais que os agrediu minutos antes. Garantem ainda que nada têm a ver com os atos de vandalismo que têm atormentado a vila nos últimos — atos que levaram a que muitos habitantes locais, frustrados com as noites sem dormir e com o rasto de destruição, tenham decidido sair à rua para exigir o fim do caos. Outros, segundo algumas denúncias, terão mesmo chegado ao ponto de começar a fazer justiça pelas próprias mãos.
“Estávamos a sair de casa, vimos três homens entre os 30 e os 35 anos, vestidos de preto, com máscaras, só se viam os olhos. Perseguiram-nos e atiraram-nos pedras da calçada e gritavam ‘saiam daqui, vão para a vossa terrinha’”, conta ao Observador António (nome fictício), um jovem de 19 anos, natural de Cascais, que desde criança passa férias em Vila Nova de Milfontes. Ao seu lado, um rapaz de 17 anos, com as calças rasgadas, alegadamente devido a uma queda enquanto fugia do grupo de vigilantes. Dizem que já nem em casa se sentem seguros, relatando que na habitação que alugaram foram abordados com ameaças por grupos de habitantes locais.
Devido ao medo de represálias, pedem o anonimato para denunciar o que consideram “o lado que não aparece nas redes sociais”, contraste com as notícias dos últimos dias que dão conta de atos de vandalismo na vila, sobretudo no início da semana, antes de o contingente policial ser reforçado, com um aumento substancial de oficiais da Guarda Nacional Republica (GNR) a patrulhar as ruas, seja a cavalo, de carro ou a pé. Entre esses atos de vandalismo contam-se vidros de janelas partidos, lixo nas praias, muros e passadiços grafitados com imagens fálicas — desacatos causados por jovens entre os 14 e os 21 anos, segundo informações dadas pela GNR ao Observador.
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Pouco depois deste incidente, os jovens, todos eles naturais de Cascais, desaparecem na noite que, tirando este caso, está tranquila, com as ruas praticamente desertas, sob o olhar constante das autoridades. As praias nas proximidades, como a do Malhão ou a dos Aivados, estão vazias, ao contrário de outras noites, em que houve festas até altas horas da manhã, deixando centenas de garrafas vazias no areal, conforme comprovam algumas das imagens divulgadas nas redes sociais nos últimos dias.
Devido a estes incidentes, e apesar do atraso, o contingente policial foi reforçado e, esta sexta-feira, conforme contou à rádio Observador o presidente da Junta de Freguesia de Vila Nova de Milfontes, Francisca Lampreia, estavam na vila cerca de 100 oficiais da GNR, incluindo forças especiais, que foram chamados para travar os “desacatos e destruição” causados por grupos de jovens, a grande maioria menores de idade, oriundos da Área Metropolitana de Lisboa, especialmente de Oeiras e Cascais.
A chegada de centenas de jovens a Vila Nova de Milfontes nas últimas duas semanas de julho, conforme relatam moradores, não é algo de novo — repete-se há mais de 10 anos. E as festas de arromba são habituais, muitas vezes para sofrimento dos residentes da vila, impedidos de dormir devido à confusão. Este ano, no entanto, é consensual entre os habitantes locais que foram ultrapassados todos os limites.
“Há 50 anos que vivo aqui e nunca vi uma pouca vergonha como esta”, relata ao Observador Emília Baptista, vendedora ambulante, de 72 anos. “Só vêm causar distúrbios. Partem tudo, e o que não partem, roubam”, acusa.
As agressões, o elefante em papel machê roubado e os estragos nos alojamentos locais
Numa altura em que parte significativa dos jovens já começou a sair da vila e a regressar a casa, é tempo de começar a fazer contas aos estragos, uma tarefa que ocupa grande parte dos proprietários de alojamentos locais. Rui Cabecinha, de 59 anos, 35 dos quais dedicado ao negócio do alojamento na Casa Amarela, corre de um lado para o outro, ainda a recompor-se do caos dos últimos dias, que, além dos prejuízos nos dois estabelecimentos de que é proprietário, deixou-lhe mazelas no corpo.
Em particular, denuncia um caso de “assédio” de que foi alvo — e que já denunciou à GNR — que começou no último ano, com provocações por parte um de jovem na casa dos 20 anos que, este ano, regressou à vila e, juntamente com outro jovem, arrombou-lhe ao pontapé a porta de um dos dois alojamentos que gere. Quando decidiu chamar a GNR, Rui Cabecinha foi empurrado por um desses jovens e caiu ao chão, ficando com várias feridas no braço.
Além das agressões de que foi alvo, Cabecinha, um apaixonado por viagens que garante já ter visitado 87 países, queixa-se de roubos num dos seus alojamentos locais de peças de artesanato e, em particular, de dois objetos que, além do valor monetário, têm um valor sentimental — um elefante em papel machê, fabricado em Caxemira e comprado numa viagem à Índia em 2004; e uma máscara tradicional que comprou na República do Benim, numa viagem em 2008.
Como se não bastasse, o empresário diz que é impossível controlar o número de jovens no interior dos alojamentos locais. Apesar de apenas alugar os espaços a um número determinado de pessoas, Rui Cabecinha conta que os jovens, a grande maioria na casa dos 17 anos, “entravam por todos os lados, dormiam para lá do número de pessoas autorizadas e ficavam a fazer barulho e a destruir”. “São jovens que, em grupo, gostam imensamente de beber, e bebem nas casas que alugam ou nas casas que visitam ou invadem”, relata.
Descrições como esta são comuns entre outros proprietários de alojamentos locais, que falam em uníssono para dizer que nunca viram um ano com tanto vandalismo como este e para denunciar casos em que recebem marcações para um número restrito de pessoas e, quando se apercebem, deparam-se com o “dobro ou o triplo” da lotação. Fernando Cintra, de 68 anos, proprietário dos apartamentos Cintra do Vale, diz ao Observador que, no passado domingo, 18 de julho, alugou um T0 a quatro pessoas, mas, após denúncias de outros turistas que se queixaram do barulho proveniente de festas que duravam até às 6h ou 7h da manhã, percebeu que no apartamento estavam umas “10 ou 12 pessoas”.
“Os jovens sentem a necessidade de canalizar a sua energia, mas fazem-no através da bebida. E perdem o controlo”, afirma o proprietário, que, entre os prejuízos que já apurou — o grupo saiu na sexta-feira, 23 de julho —, ficou com um barbecue parcialmente partido.
No mesmo sentido, Alberto Aroeira Gonçalves, de 79 anos, também proprietário de apartamentos de alojamento local na vila, diz ao Observador que, na manhã de sexta-feira, por volta das 5h30, foi alertado por um casal de clientes, com duas crianças, uma delas bebé, para o barulho no apartamento ao lado. Quando foi verificar o que se passava, viu que na casa que alugou a seis raparigas estavam vários rapazes que não sabia quem eram, e, por isso ameaçou chamar a GNR. Um desses jovens, relata, terá ameaçado ir buscar uma faca ao carro, embora a situação se tenha resolvido passado pouco tempo, sem recurso a violência, o que não apaga o “momento difícil” que diz ter vivido naquela altura.
“As pessoas andam revoltadas, e com razão. Temos muitas despesas, quer nos investimentos, quer na manutenção, e depois vem esta gente uma semana, causar estragos e criar esta imagem perante o país e o estrangeiro. Isto é insustentável”, lamenta.
“Pode não ser por vossa causa, mas hoje vai pagar alguém.” Grupos de vigilantes perseguem “crianças mimadas que pensam poder fazer tudo o que querem”
Este sentimento de revolta, que se intensificou depois da onda de destruição na vila no início da semana, tem levado a que vários habitantes locais estejam a sair à rua dispostos a fazer justiça pelas próprias mãos.
Por volta das 03h00 da madrugada deste sábado, A.A, de 16 anos, natural de Cascais, a passar férias pela primeira vez em Vila Nova de Mil Fontes, descreve ao Observador um cenário de pânico que viveu na noite anterior. Segundo o próprio, quando estava na rua com um amigo, foi abordado por um “grupo de indivíduos de fato treino, todos tapados, em que se só se viam os olhos”, que, após algumas ameaças, começaram a tentar despi-los. “A nossa sorte foi terem aparecidos uns amigos meus de Cascais com carro, que nos deram logo boleia e fugimos”, conta.
Num vídeo enviado pelo jovem de 16 anos ao Observador — que, segundo o próprio, foi filmado minutos antes deste incidente —, vê-se um homem vestido de preto, de cara tapada, dirigindo-se a A.A. e a dizer que não dorme há três noites, enquanto passa um carro da GNR. “Pode não ser por vossa causa, mas hoje vai pagar alguém, meu querido. Vão para casa, que eu não vos veja mais hoje”, afirma o homem, com o vídeo a terminar pouco depois, sem qualquer registo de violência.
Os relatos de grupos de vigilantes a atuar na vila não são exclusivos de jovens vindos de fora. M.C, uma residente de Vila Nova de Milfontes que trabalha na área da restauração, confirma ao Observador que já viu “pessoas encapuzadas, com máscaras, atrás dos jovens para lhes bater”. A jovem de 19 anos, que pediu para não ser identificada, condena veementemente os atos de vandalismo na vila, e não hesita em apontar o dedo a “crianças mimadas que pensam poder fazer tudo o que querem”.
Contudo, também condena o modo de atuação de grupos de vigilantes, que, segundo os relatos que tem ouvido — e que vão ao encontro de outros que o Observador ouviu de jovens turistas —, em alguns casos, andam armados com facas. Por esse motivo, M.C. diz que não se sente segura em andar na rua, apesar de ser habitante local.
“Não é com agressão nem com violência que vão chegar a algum lado”, afirma, deixando ainda críticas à atuação da GNR, que, na sua ótica, “tem exagerado” na abordagem em alguns casos, o que vai ao encontro de uma outra denúncia feita por A.A., que diz ter sido agredido com um cassetete quando a GNR estava a dispersar um ajuntamento de jovens na rua, garantindo que não estavam a fazer nada de mal.
O Observador questionou a GNR local sobre a existência de grupos de vigilantes e sobre um eventual excesso de força policial, tendo a Divisão de Comunicação e Relações Públicos referido que não foram feitas quaisquer queixas nesse sentido. Além disso, acrescentou que foi detida uma pessoa por condução sob efeito de álcool e duas constituídas arguidas por posse de arma proibida e ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva.
Distúrbios em Vila Nova de Milfontes. “Pedimos reforço policial um mês antes”, garante autarca
Já o presidente da Junta de Freguesia de Vila Nova de Milfontes, em declarações à rádio Observador, admitiu que “as pessoas estão fartas desta desordem” e “sentem-se no direito de fazer justiça por mão própria”, apesar de garantir não ter conhecimento de casos de “violência física” e sublinhar que espera que tal “nunca venha a acontecer”.
Praias vazias durante a noite, os últimos cartuchos e a tranquilidade a regressar aos poucos
Na manhã deste sábado, junto à Mabi, o clássico ponto de encontro, vários grupos de jovens, muitos deles com malas, prestes a regressarem a Lisboa, sentam-se nas esplanadas a queimar os últimos cartuchos das férias, entre refeições e copos de cerveja, embora reine a calma comparativamente aos relatos dos primeiros dias da semana.
As festas de arromba nas praias e nos parques de campismo, conforme relataram vários jovens — todos menores de idade — ao Observador, tornaram-se impossíveis perante o reforço do contingente policial, o que fez com que, nos últimos dias, a alternativa tenha sido fazer festas dentro dos apartamentos alugados. Vários jovens admitem que podem ter abusado um pouco no barulho, mas todos eles negam categoricamente qualquer responsabilidade nos atos de vandalismo, atirando culpas para outras pessoas que terão chegado antes deles e insistindo que têm sido feitas “generalizações” e que pelos erros de alguns “pagam todos”.
Com o final desta semana, os moradores esperam que a calma comece a regressar à vila, à medida que os jovens entre os 14 e os 21 anos começam a dar lugar a outro tipo de turistas e a esperança de Fernando Cintra é que agosto seja um mês melhor, em que os seus inquilinos possam desfrutar tranquilamente das maravilhas de Vila Nova de Milfontes.
Apesar da revolta perante o vandalismo dos últimos dias que sente entre os moradores, notam-se também sinais de alguma tranquilidade que começa a chegar. Se for seguido o guião dos últimos dez anos, tal deverá manter-se, pelo menos, até às duas últimas semanas de julho de 2022, quando centenas de jovens hão de voltar a escolher Vila Nova de Milfontes para férias longe dos pais.