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Ana Paula Bernardo, deputada socialista relatora do inquérito, diz que as suas conclusões não são versão do PS.
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Ana Paula Bernardo, deputada socialista relatora do inquérito, diz que as suas conclusões não são versão do PS.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Ana Paula Bernardo, deputada socialista relatora do inquérito, diz que as suas conclusões não são versão do PS.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

"Omissões, ficções e branqueamentos". Quem foi culpado e quem se livrou no relatório (para já só do PS) sobre a TAP

Temas quentes que ficaram de fora, "branqueamentos" de decisões do Governo, quem se safou de responsabilidades e a culpada do costume. O relatório ao inquérito à TAP que para já é só a versão do PS.

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Menos de 200 páginas e 75 conclusões, pontuadas por muitas descrições, citações e com um número significativo de omissões em matéria de temas que marcaram as audições da comissão parlamentar de inquérito (CPI) à tutela política da gestão da TAP.

O relatório apresentado pela deputada socialista Ana Paula Bernardo ainda é preliminar, mas apesar da “total disponibilidade” manifestada para acomodar as propostas de alteração a apresentar pelos partidos até à próxima segunda-feira, e a avaliar pelas reações dos partidos da oposição, será muito difícil conciliar posições sobre a maioria dos temas. E não havendo abertura do PS para introduzir mudanças substanciais o relatório final arrisca-se a ficar para a história como aquilo que a relatora afirmou não ser: “Uma versão do Partido Socialista”.

As omissões. O que ficou de fora e porque ficou de fora

A noite de 26 de abril

Nascida e criada na CPI, a polémica dos acontecimentos da noite de 26 de abril no Ministério das Infraestruturas não teve, para a deputada relatora, sinais vitais suficientes para merecer um lugar no relatório preliminar da comissão de inquérito. “Não tendo posto em risco o cumprimento do mandato, a inquirição sobre factos e acontecimentos ‘externos’ ao nosso mandato acabou por estender desnecessariamente os trabalhos da CPI, sem que tal tivesse dado contributo válido, por vezes antes pelo contrário, para o aprofundamento das matérias relacionadas com a gestão da TAP”, lê-se no relatório.

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Para a relatora, a exoneração de Frederico Pinheiro, ex-adjunto que era o guardião do plano de reestruturação da TAP, e a sua incursão no Ministério com alegados atos de violência para levar um computador com documentos classificados sobre a companhia são, assim, acontecimentos “externos” à comissão, apesar de terem origem nas notas de reuniões que o ex-adjunto de João Galamba não enviou a tempo aos deputados.

Questionada sobre esta omissão, Ana Paula Bernardo manteve-se irredutível: “Foi discutido na comissão um conjunto de acontecimentos que não dizem respeito ao objeto da TAP e muitos não são da competência de um inquérito” parlamentar. No caso concreto da noite de 26 de abril, justificou ainda que o tema está a ser investigado pelo Ministério Público.

A intervenção do SIS 

Na sequência do “sequestro”, nas palavras do próprio, de Frederico Pinheiro, e do “roubo”, nas palavras de vários governantes, de um computador do Estado, o SIS entrou em ação. Quem chamou as secretas? Quem deu a ordem? O primeiro-ministro sabia? Durante semanas o tema engoliu tudo o que tivesse que ver com as origens da comissão de inquérito, e chegou a dar origem a um pedido para uma comissão de inquérito própria, chumbado pelo PS.

Frederico Pinheiro, que protagonizou uma das audições mais "quentes", quase não é referido na proposta do relatório do PS

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

“A sua não inclusão não desvaloriza a sua pertinência ou relevância, mas tão somente que, conforme já referido, os mesmos devem ser analisados e apurados e, se for esse o entendimento, assumidas as correspondentes ações corretivas pelas entidades, organismos ou órgãos competentes e apropriados para o efeito. E, nesse âmbito, importa aliás lembrar que as situações acima referidas estão já a ser acompanhadas naquelas que parecem ser as sedes adequadas para o efeito”, lê-se no relatório.

Sobre o caso SIS, lembrou Ana Paula Bernardo, a Assembleia da República “realizou um conjunto de diligências para esclarecer este assunto”, nomeadamente pela comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais, que ouviu os responsáveis dos serviços de informações.

A reunião preparatória

“Carlos Pereira”, dito com sotaque francês. O momento ficará para a história da comissão de inquérito à TAP. Após revelada, pelo deputado Bernardo Blanco da IL, a existência de uma reunião preparatória com a então CEO da TAP e o grupo parlamentar do PS, no âmbito da audição que Christine Ourmières-Widener teria a 18 de janeiro, na comissão de Economia, na sequência da saída de Alexandra Reis da TAP, os deputados quiseram saber se na sala da CPI estava algum deputado do PS que tivesse participado nessa reunião “secreta”. Estava Carlos Pereira, coordenador dos socialistas na CPI, que acabaria por abandonar o inquérito na sequência desse caso. No relatório de Ana Paula Bernardo, não há referências a esse episódio, no qual terão sido combinadas perguntas e respostas.

O nome de Carlos Pereira surge duas vezes no documento. Uma para referir que era membro efetivo da CPI, outra numa nota de rodapé, onde se lê que “pediu a sua substituição na Comissão de Inquérito em 19 de abril. Em 20 de abril sua excelência o presidente da Assembleia da República informou que o senhor Ddeputado Carlos Pereira seria substituído pela senhora deputada Cristina Sousa, até então membro suplente, tendo sido indicado o senhor deputado Pedro Coimbra como novo membro suplente, em 10 de maio. A partir do dia 20 de abril, a coordenação do GP do PS passou a pertencer ao senhor deputado Bruno Aragão”. É “assunto resolvido e não teve interferência na CPI”, justifica a relatora.

O caso foi tratado na comissão de Transparência, que concluiu que a reunião foi “politicamente censurável” por “suspeita sobre o condicionamento das perguntas”, mas que não podia ser impedida.

A fundamentação do despedimento com justa causa

Fernando Medina, ministro das Finanças, e João Galamba, ministro das Infraestruturas, anunciaram, em conferência de imprensa, a demissão de Christine Ourmières-Widener e Manuel Beja por terem feito um acordo de saída de Alexandra Reis que foi considerado ilegal por parte da Inspeção-Geral das Finanças.

O relatório preliminar da deputada socialista Ana Paula Bernardo, no âmbito da comissão de inquérito, passa quase em claro a demissão da ex-presidente executiva e do ex-chairman, decisão tomada pelos atuais titulares das pastas. Sobre estes despedimentos, as conclusões do relatório fazem apenas referência à consequência do relatório da IGF sendo assumido pela deputada socialista que este processo “decorreu segundo os normativos existentes, nomeadamente o direito ao contraditório”.

A decisão de demitir a presidente e o chairman da TAP, anunciada por Fernando Medina e João Galamba, não consta do relatório

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Este é o caso que envolve diretamente Medina e Galamba e que suscitou, até, algumas polémicas, nomeadamente sobre a forma como Christine e Beja foram informados da intenção de demissão, mas também pelo facto da IGF não ter ouvido presencialmente a ex-CEO e também sobre se tinha havido pedidos de pareceres jurídicos para justificar a justa causa da demissão. E, apesar de Medina ter sido bastante questionado no inquérito sobre essa questão, nada é transposto para as conclusões.

Nem é referida a mensagem que foi divulgada no decurso da comissão de inquérito da chefe de gabinete de João Galamba, Eugénia Correia, dizendo que havia fragilidades na argumentação para a demissão que não deviam estar vertidas na deliberação unânime. Sobre esta divergência entre os dois ministérios também não há qualquer referência no relatório final, ainda que tenha havido questões sobre o assunto.

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A justificação dos 3,2 mil milhões de ajuda pública

O Estado português injetou 3,2 mil milhões de euros na TAP. As conclusões do inquérito, produzidas preliminarmente por Ana Paula Bernardo, assumem que foi opção do Governo “não deixar falir a TAP, pela sua dimensão económica, social e estratégica para o país”. E, segundo as conclusões, face à indisponibilidade dos acionistas privados de entrarem, em 2020, com dinheiro para a transportadora no decorrer da pandemia, o Governo não encontrou outra alternativa.

Mas nada é referido sobre a responsabilidade do montante injetado e, em particular, sobre a forma como foi negociado o plano de reestruturação com Bruxelas, ainda que se tenha salientado nas conclusões que foi conseguido pelo Governo junto da Comissão Europeia uma redução de slots da TAP menor. Sobre este plano, é referido o impacto para os trabalhadores – a comissão de inquérito fez questão de ouvir 13 sindicatos e a comissão de trabalhadores – ainda que nas conclusões se acresce que os cortes estão já a ser revertidos.

A privatização da TAP

Fernando Medina, João Galamba, João Nuno Mendes e Humberto Pedrosa. Foram apenas algumas das várias personalidades inquiridas sobre o processo de privatização da TAP atualmente em curso. Medina garantiu que os valores “estratégicos” para o país vão ser prioritários na venda, e João Nuno Mendes assegurou que o Estado não vai vender a totalidade da TAP, uma “convicção que existe no Governo, expressa muito recentemente pelo primeiro-ministro”. Foi ainda conhecido que a venda não foi uma imposição de Bruxelas.

Na audição de Humberto Pedrosa, o ex-acionista da TAP chegou a admitir que estaria disponível para voltar a investir, se surgisse um grupo de empresários nacionais que tivesse disponibilidade para comprar a companhia. Mas a privatização, que deverá arrancar oficialmente ainda no verão, não foi considerada relevante pela relatora, que apenas lhe dedica um parágrafo nas 181 páginas do documento.

“Uma outra matéria que foi igualmente abordada na CPI concerne ao anúncio realizado pelo Governo sobre uma futura reprivatização da TAP. Contudo, perante a ausência de informações 25 e de dados sobre o assunto”, havendo à data da redação apenas a resolução do conselho de ministros que mandata a Parpública a contratar os serviços de avaliação independente necessários ao processo de reprivatização (entretanto atribuído à EY e ao banco Finantia), “considera-se extemporânea a sua inclusão neste relatório”. E acrescenta: “procurámos não repetir neste Relatório o que se verificou na CPI, focando os nossos trabalhos no objeto da comissão”. Sem dispersar.

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O papel dos advogados 

Os advogados estiveram nas negociações para o acordo entre a TAP e Alexandra Reis, cuja negociação a relatora põe toda nas mãos de Christine Ourmières-Widener. Mas como salienta Ana Paula Bernardo o facto de não ter sido permitido à comissão inquirir os advogados nem ter acesso à sua correspondência delimita a conclusão sobre se houve esclarecimentos de que os gestores da TAP estão abrangidos pelo Estatuto do Gestor Público. Foi o facto de as regras vertidas neste estatuto não terem sido seguidas na saída de Alexandra Reis que levou a Inspeção Geral das Finanças a considerar ilegal a indemnização à gestora e a determinar a devolução do dinheiro.

Nas conclusões Ana Paula Bernardo salienta, mesmo, que “foram requeridas e aprovadas as audições dos advogados que intermediaram este acordo. Todavia, por terem invocado o seu dever de sigilo profissional não foi possível realizar as audições pretendidas” e assim, conclui, “fica a dúvida se os intervenientes foram ou não devidamente esclarecidos sobre as normas do EGP, sobre os diferentes entendimentos doutrinários que existem nesta matéria e o risco associado à celebração do acordo em apreço”. Ainda assim refere-se no relatório que os intervenientes sabiam que se lhes aplicava o estatuto pelo menos outras matérias.

Ou seja neste caso a omissão sobre o que foi ou não referido pelos advogados no caso Alexandra Reis não se deve à redação do relatório preliminar, mas sim ao facto de ter sido invocado sigilo profissional por parte dos juristas e o Tribunal não ter autorizado o levantamento desse segredo.

Sobre o papel dos advogados a relatora conclui que o departamento jurídico da TAP não esteve nas negociações, ainda que tenha tido acesso ao acordo, mas não fez qualquer alerta sobre a sua legalidade. Pouco é referido sobre a falta de verificação dessa legalidade por parte do Ministério das Infraestruturas, dizendo-se que “não terão sido objeto [conformidade legal dos atos] de confirmação por parte dos ex-membros do Governo”. E recorda o diploma de 1933 que desresponsabiliza os governantes pelo facto de não terem tomado decisão distinta das informações recebidas.

IGF invoca lei de 1933 na auditoria à TAP para ilibar de responsabilidades ex-membros do Governo

Os Fundos Airbus 

Terá sido uma das expressões mais repetidas ao longo de uma parte das audições da CPI. Se no começo do inquérito a referência a Fundos Airbus remetia para território desconhecido, no final já não era assim. Estes fundos resultaram da renegociação dos aviões feita por David Neeleman com a Airbus, e permitiram ao empresário capitalizar a TAP.

O relatório conclui que tiveram a anuência da Parpública, que o Governo PSD/CDS só teve conhecimento sobre eles em outubro de 2015 e que constavam nos documentos de transição do governo do PSD/CDS para o do PS, contrariando o que disseram alguns governantes socialistas. Mas nem tudo é dito no relatório sobre os Fundos Airbus. Afinal, a capitalização da TAP através destes fundos foi ou não legal? Para Ana Paula Bernardo, essa é uma conclusão a tirar pelo Ministério Público, que está a investigar os fundos após uma queixa do Ministério das Infraestruturas.

A relatora reconheceu que foi por este motivo que a CPI evitou tirar conclusões sobre o tema. Além disso, também há uma nova auditoria do Tribunal de Contas a correr e que desta vez incluirá o caso.

As conclusões que livram o Governo socialista

A expressão branqueamento foi usada pelo líder do PSD, Luís Montenegro, mas teses comparáveis foram defendidas por quase todos os partidos da oposição. O Bloco de Esquerda falou em encenação e um relatório que “não seria muito diferente do que João Galamba ou António Costa teriam escrito”. A IL denuncia uma obra de ficção e André Ventura chamou-lhe: “um frete grande, claro e evidente ao Governo”. O PCP referiu o enterrar de consequências.

A ingerência política (que não houve) das tutelas na gestão da TAP

É seguramente uma das conclusões mais controversas deste documento já que, desde a audição à ex-presidente executiva da TAP, foram apontadas várias ingerências na gestão da companhia.

Desde o famoso email do ex-secretário de Estado, Hugo Mendes, a aconselhar a TAP, em resposta a uma pergunta de Christine Ourmières-Widener, a mudar o dia de um voo de Moçambique para acomodar uma viagem oficial do Presidente da República. Passando pela renovação da frota automóvel da TAP (que o próprio Pedro Nuno Santos assumiu como pressão, na medida em que a TAP foi aconselhada a recuar na decisão, o que o fez), pela pressão de outro ex-secretário de Estado de Pedro Nuno Santos (Alberto Souto de Miranda) relativa ao orçamento da companhia no tempo da gestão privada que foi revelada pelo aparentemente insuspeito Lacerda Machado (então administrador nomeado pelo Estado na TAP) e pelo puxão de orelhas dado a Christine Ourmières (por Hugo Mendes) por ela se multiplicar em contactos com ministérios (sem informar a tutela), uma ressalva que não se aplicava às Finanças, esclareceu o ex-secretário de Estado. E ainda pela intervenção de Hugo Mendes nos esclarecimentos prestados pela TAP que o próprio pediu sobre a negociação da saída de Alexandra Reis.

As respostas por escrito de David Neeleman a denunciar pressões sobre a gestão privada foram ignoradas nas conclusões

João Pedro Morais/Observador

O capítulo que justifica esta conclusão não ignora estes episódios, mas desvaloriza o seu impacto no condicionamento das decisões da gestão da TAP. E valoriza os testemunhos de ex-gestores  — Miguel Frasquilho, Antonoaldo Neves e Raffael Quintas — e de atuais administradores como Ramiro Sequeira e Gonçalo Pires para concluir: “A generalidade dos depoimentos aponta para a inexistência de interferência ou ingerência política das tutelas na gestão corrente da empresa”. Ao mesmo tempo que ignora o testemunho do ex-acionista David Neeleman, o qual elenca três casos de pressão sobre a gestão privada e tira força à “pressão” indicada por Lacerda Machado considerando que pode tratar-se “de uma mera orientação de sentido do voto” ao acionista que representava o Estado no board da TAP.

Neeleman expõe “pressões muito duras” do Governo e de Pedro Nuno Santos para TAP recuar nos prémios

A pergunta que valia 55 milhões (pagos a David Neeleman para sair da TAP)

Foi uma das perguntas mais repetidas e cujas respostas menos satisfizeram os deputados, apesar das longas explicações dadas pelos políticos que orientaram a negociação levada a cabo sob enorme pressão nos primeiros meses da pandemia para retirar David Neeleman da TAP e permitir a ajuda que o Governo queria dar, mas que tinha a oposição dos privados.

Ana Paula Bernardo arruma a “pergunta de 55 milhões de euros” num capítulo vasto intitulado “as decisões de gestão da TAP que possam ter lesado os interesses da empresa e públicos. Estão aqui a privatização de 2015 — que se desdobra nos fundos Airbus e nas cartas de conforto enviadas aos bancos credores —, a recompra, a ajuda pública (onde se insere a contrapartida paga ao empresário americano) e o plano de reestruturação.

A necessidade de negociar a saída de David Neeleman é uma consequência da decisão política de salvar a TAP durante a pandemia face à oposição privada ao plano de ajuda pública massiva enquadrado no regime europeu de resgate e reestruturação. “Após uma negociação difícil com os acionistas privados, num processo intermediado por consultores externos, foi possível obter um acordo, nos termos do qual o Estado passa a deter 72,5% do capital social e os respetivos direitos económicos”. A contrapartida dos 55 milhões de euros resultou desse acordo — o valor alcançado resulta de uma negociação até um ponto de entendimento entre as partes — pelo qual o empresário abdicou de toda a litigância, um objetivo fundamental para o Governo face à necessidade de negociar um plano de reestruturação com a Comissão Europeia.

A proposta de conclusão não aprofunda as razões pelas quais o Governo temia essa litigância — por causa dos direitos contratuais que David Neeleman tinha ao abrigo do acordo parassocial assinado em 2017 com o Estado. No âmbito da recompra negociada pelo Governo do PS, o empresário protegeu-se do risco de o Estado retomar a TAP à sua revelia e a transformar numa empresa pública.

Com exceção do negociador Lacerda Machado, que defendeu que a Covid-19 era circunstância excecional que permitia ao Estado libertar-se da obrigação desse acordo, os ex-ministros Pedro Nuno Santos e João Leão, e o então secretário de Estado do Tesouro, Miguel Cruz, argumentaram que essas obrigações tinham força legal (havia um parecer jurídico da VdA nesse sentido) e existia um risco significativo de o Estado ser obrigado a reembolsar as prestações acessórias colocadas pelo acionista privado na TAP, 224 milhões de euros. Os mesmos responsáveis reconheceram que essas obrigações resultavam do acordo parassocial assinado entre as partes em 2017.

No entanto, e apesar de estabelecer uma ligação entre o pagamento e as prestações acessórias, o relatório considera que essa ligação “resulta do direito originário adquirido em 2015 com a assinatura do acordo de privatização da TAP (feito pelo Governo PSD/CDS) e do acordo de estabilidade económica e financeiro que nesta dimensão não sofreu alterações no acordo parassocial de 2017”. Reconhecendo que este pagamento “não foi amplamente consensual”, sobretudo pela “incerteza jurídica sobre os termos em que foi realizada a privatização em 2015 com recurso ao mecanismo Fundos Airbus”, cujas implicações a relatora não quis aprofundar neste relatório.

A quem o relatório aponta culpas e quem se safa

O papel central da CEO da TAP

Desta vez Christine Ourmières-Widener não se pode queixar de falta de oportunidade para exercer o contraditório em direto e presencialmente. A audição à então ainda presidente executiva foi cheia de revelações que marcaram o resto dos trabalhos — o email de Hugo Mendes a recomendar a mudança de voo de Marcelo para não “irritar” o maior apoiante do Governo no tema TAP e a reunião preparatória secreta com deputados e membros do gabinete que levou o coordenador do PS, Carlos “Pe…rei…ra” a demitir-se da comissão de inquérito.

No entanto, na hora de apontar responsabilidades, o resultado não foi diferente do que saiu da auditoria da Inspeção-Geral das Finanças sobre o processo de saída de Alexandra Reis da TAP. Nem para Christine, nem para as conclusões relativas ao acordo de saída com indemnização da gestora que era ilegal que, segundo a deputada relatora, foram “densificados” nos trabalhos da CPI.

Christine teve direito ao seu contraditório presencial, mas a conclusão da sua "culpa" no acordo de Alexandra Reis não mudou

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

A ex-CEO é apontada como tendo tido o papel central na medida que “partiu da exclusiva vontade e iniciativa de Christine Ourmières-Widener, foi por ela integralmente gerido e, só num momento final e depois de concluído o processo negocial, foi dado a conhecer a todos os membros do conselho de administração”. Já o papel de Manuel Beja, que sofreu a mesma sanção da CEO — o despedimento por justa causa — é pouco valorizado na hora de apontar responsabilidades.

A CEO também colocou pressão temporal no processo. “Apesar de terem ficado por apurar os motivos concretos da saída de Alexandra Reis, foi visível o sentido de urgência que a então CEO imprimiu a todo o processo, o qual se encontra bem patente no curto espaço de tempo em que decorreu a negociação da indemnização e dos temos do acordo”, sendo feita uma referência às eleições de 30 de janeiro e ao receio de que alterações no Governo gerassem incerteza,

Os gestores da TAP são ainda responsabilizados pela ausência da assinatura de contratos de gestão individuais, uma obrigação decorrente do estatuto de gestor público e cuja iniciativa pertence aos próprios gestores. Ainda que, Ana Paula Bernardo refira que a tutela do Governo e do Ministério das Finanças nada fizeram para sinalizar essa falta.

Alexandra Reis foi figura central na constituição do inquérito, mas intervenção não foi valorizada nas suas conclusões

Assumindo-se no relatório que o caso de Alexandra Reis em termos de indemnizações pagas pela TAP “é específico, visto que foi acordado um valor indemnizatório elevado que não respeitava o estatuto do gestor público”, certo é que a gestora sai das conclusões como um fio condutor para a ação de governantes e da presidente executivo à época Christine Ourmières-Widener. Aliás, sobre esta ex-CEO recai, para a relatora, todo o processo de saída da Alexandra Reis, até pela urgência que demonstrou para chegar a esse acordo e sem que tenha ficado claro, segundo o relatório preliminar, as razões que levaram Christine a querer que Alexandra Reis fosse embora. “Foram avançadas à CPI diferentes situações, nem sempre convergentes e francamente sustentadas em provas documentais”.

Sobre o papel de Alexandra Reis na negociação para a sua saída a referência vai para os seus advogados. Ana Paula Bernardo refere a diminuição “substancial” do valor da indemnização face ao valor inicialmente proposto, ainda que, acrescente, “importa notar que foi reconhecido que o valor da indemnização é um valor alto”. Alexandra Reis recebeu perto de 500 mil euros (brutos), tendo a TAP determinado a devolução 266,4 mil euros, o que a comissão de inquérito diz não ter informação que já tenha acontecido.

Em relação a esta gestora, na qual a comissão de inquérito teve origem, quando se soube o valor da sua indemnização, há ainda as inquirições sobre a sua ida para a NAV, a convite do então secretário de Estado das Infraestruturas, Hugo Mendes, mas que a relatora diz não ter tido relação entre a saída da TAP e a ida para a NAV. Nada é referido no relatório sobre a sua ida para a secretaria de Estado para o tesouro e de como foi o seu nome escolhido por Fernando Medina. Aliás, “o perfil, as sólidas competências e o conhecimento profundo do setor por parte de Alexandra Reis foram os motivos apontados pelos então governantes para esta escolha”, lê-se nas conclusões.

Alexandra Reis. Foi a saída da gestora da TAP como uma indemnização que esteve na origem do inquérito

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

 TAP falhou na comunicação

Foi Christine Ourmières quem decidiu recorrer a consultores jurídicos externos, uma prática comum na TAP, e não há evidências de que o departamento jurídico da empresa tenha participado no processo. Ainda assim, o departamento jurídico teve acesso ao acordo final, “não havendo registo de que tenha alertado Christine Ourmières-Widener e/ou Manuel Beja da ilegalidade do mesmo perante o estatuto do gestor público”.

O relatório concluiu ainda que foram identificadas lacunas na informação prestada pela TAP ao mercado, como a não discriminação da indemnização paga a Antonoaldo Neves no relatório e contas de 2020 ou ainda sobre a informação enviada à Comissão de Mercado de Valores Mobiliários sobre o processo de saída de Alexandra Reis. Neste caso existe um processo de contraordenação aberto pela CMVM que pode sancionar a empresa.

Hugo Mendes assumiu erros… o relatório registou, mas não os valorizou

O ex-secretário de Estado chegou a esta comissão de inquérito como o principal responsável político pela saída de Alexandra Reis, processo que acompanhou e orientou nos limites do valor, e com uma imagem desgastada pelos casos de pressão ou interferência relatados pela ex-CEO da TAP. Mas Hugo Mendes não é o mau da fita do relatório até porque os temas que o poderiam prejudicar mais perdem força perante a conclusão de que não houve interferência política na gestão da TAP. A esse propósito, o próprio Hugo Mendes acabou por ser mais autocrítico na sua audição ao reconhecer erros, nomeadamente no caso da reunião na qual foi preparada a resposta d TAP ao despacho com pedidos de explicação do próprio Governo:

“Eu não saí da reunião, e esse foi o meu erro, que assumo”.

“Face ao exposto, evidenciamos que Hugo Mendes assumiu expressamente que ter continuado presente na segunda fase da reunião se tratou de um erro”.

A proposta de relatório regista que o ex-secretário de Estado “foi acompanhando o processo de negociação da compensação”, mas não conhecia o clausulado do acordo, ainda que conhecesse a discriminação das parcelas englobadas no meio milhão de euros. E assumiu as suas responsabilidades políticas ao demitir-se no final de 2022. O uso do mensagens whatsapp para gerir todo o processo, recorrente, mas do qual “não se pode inferir que o processo de decisão não é informal” e a falta de comunicação com o Ministério das Finanças sobre o caso Alexandra Reis, foram registados, mas igualmente desvalorizados.

Pedro Nuno Santos. De protagonista a ator secundário

O protagonista político maior desta comissão de inquérito acabou por sair como ator secundário no relatório preliminar. As considerações feitas para o envolvimento de Hugo Mendes são quase as mesmas para Pedro Nuno Santos, mas com a nuance de não ter acompanhado o processo de negociação da saída de Alexandra Reis conduzido pela presidente executiva da TAP e pelos advogados das duas partes. Foi Pedro Nuno Santos quem autorizou Christine Ourmières-Widener a proceder à reconfiguração da sua equipa, para poder escolher os membros da sua confiança. E no final do processo deu a sua aceitação ao valor acordado.

Pedro Nuno Santos já avisou que não irá votar relatório no qual é referido, mas pouco visado

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Não há referência ao email enviado semanas antes por Alexandra Reis a colocar o cargo na TAP à disposição (por saída do acionista privado) ao qual Pedro Nuno Santos não respondeu e que poderia, se tivesse sido aceite, evitado a indemnização. O ex-ministro das Infraestruturas também não sai comprometido da decisão de nomear Alexandra Reis para a presidência da NAV, poucos meses depois da gestora ter saído da TAP com uma indemnização. O relatório desliga os dois processos, o de saída da TAP e entrada na NAV.

E como Pedro Nuno Santos assumiu as suas responsabilidades políticas ao demitir-se, tal como Hugo Mendes, não é visado na proposta de relatório que aceita sem dar grande relevo a explicação sobre falha de memória (de ter dado orientações sobre o valor da indemnização) e sobre a a falta de verificação prévia, por parte do ministério que liderava, da legalidade da decisão da TAP.

“Não me foi sequer apresentado nenhum enquadramento jurídico, nenhuma alternativa jurídica, eu fui confrontado com um valor, ao qual dei a minha opinião pessoal. Mas queria dizer algumas coisas, também, sobre isto: cada um de nós tem as suas responsabilidades. Os membros do Governo têm as suas, os gestores das empresas também têm as suas responsabilidades”, declarou Pedro Nuno Santos no inquérito, citado no relatório preliminar.

João Galamba e a demissão que não existiu (nem no relatório)

Demitiu-se durante a comissão de inquérito, mas a intenção foi travada por António Costa. Foi ouvido de urgência na CPI, na sequência dos acontecimentos de 26 de abril no Ministério das Infraestruturas e da intervenção do SIS. Esteve perto de oito horas a responder a perguntas sobre essa noite, a exoneração de Frederico Pinheiro, a quem fez acusações graves, a gestão do dossier TAP e a documentação do ministério. Mas sai incólume no relato de Ana Paula Bernardo sobre o filme que gira em torno da companhia, que passou a tutelar após a saída de Pedro Nuno Santos.

A única referência ao ministro tem que ver com os resultados da TAP de 2022, que não foram apresentados publicamente, apenas através de comunicado. A medida partiu de uma sugestão do CFO da TAP à qual Galamba anuiu, ressalvando que “não deve ser efetuada qualquer conferência de imprensa ou dada qualquer entrevista sobre este assunto”. Esta interferência do ministro não surge nas conclusões do relatório mas apenas no ponto em que se descrevem os resultados de 2022 da companhia.

Fernando Medina sem conclusões (nem sobre a justa causa)

Encerrou o capítulo das audições presenciais na CPI, a 16 de junho, numa sessão anti-climática, sem revelações de maior. Medina, que é ministro das Finanças desde março de 2022, escolheu Alexandra Reis para secretária de Estado do Tesouro (e nunca disse quem a recomendou) e despediu Christine Ourmières-Widener e Manuel Beja “com justa causa”, tendo por base apenas o relatório da IGF, num processo que será contestado, pelo menos pela gestora francesa. Mas no relatório preliminar da CPI, Medina não surge em nenhuma das conclusões de Ana Paula Bernardo. O nome do ministro surge apenas em duas descrições de factos. E apenas em citações. Uma sobre os contratos de gestão da TAP, na qual Medina assume que “ainda não foi apresentado” e, por isso, não tem um prazo que possa apontar para a sua aprovação.

A outra sobre o impacto do plano de reestruturação nos trabalhadores da TAP. Aqui, a relatora considerou relevante incluir a posição do ministro sobre a construção em curso das “bases de um caminho mais virtuoso do ponto de vista do que é a recuperação gradual dos vencimentos acompanhada do que sejam novos acordos de empresa”. Neste seguimento, é referido ainda que “após o término das audições foi veiculado pela comunicação social que, no âmbito da reabertura dos processos negociais, a TAP já celebrou um novo acordo de empresa com os pilotos e com os tripulantes de cabine”.

As outras Alexandras Reis que não são comparáveis e os prémios “discriminatórios” da gestão privada 

Uma das justificações dadas por Christine Ourmières para a negociação do pagamento de meio milhão de euros a Alexandra Reis foi a existência de precedentes, ou seja, outras indemnizações avultadas pagas pela TAP no passado. A gestora francesa apontou apenas o caso de Antonoaldo Neves que saiu em setembro de 2020 (demitido) e que fez um acordo para receber os salários até ao final do ano, mas ao longo da comissão de inquérito foram conhecidos outras situações do tempo da gestão privada.

A pré-reforma atribuída a um ex-administrador que teve três anos de vínculo à TAP também como diretor e que foi considerada ilegal depois de terem sido pagos 1,3 milhões de euros. O acordo de prestação de serviços de consultoria fechado com Fernando Pinto após este ter saído da presidência da TAP em 2018 e que custou 1,6 milhões de euros. E prémios de gestão pagos sem “aparente ligação ao cumprimento de objetivos ou metas fixadas a dois administradores, mas antes para aparentemente garantir compromissos assumidos pelo presidente aos membros da equipa vinda do Brasil. Para além de considerarmos esta prática discriminatória, também não é adequado fixar os critérios de desempenho anuais após o termo do ano em apreço”.

A comissão de inquérito recebeu a auditoria pedida pela TAP à EY sobre pagamentos a ex-administradores ou altos quadros da empresa. Apesar de identificados 14 casos que custaram 8,5 milhões de euros à TAP, o relatório considera que não são comparáveis ao de Alexandra Reis que descreve como “específico”, para além de a maioria ter sido negociada pela gestão privada com base em condições prévias estabelecidas e com pagamentos feitos antes da data de saída.

Montenegro fala em “branqueamento político completo”. IL não vai fazer propostas de alteração porque “não participa em farsas”.

O Governo de Passos Coelho e a privatização que não devia ter concluída

A relatora elenca os acordos finais e as decisões políticas adotadas pelo segundo Governo do PSD/CDS para concluir a operação de venda da TAP a privados, já na vigência de um executivo que não tinha o necessário apoio parlamentar. E entende “que, no contexto político que se vivia no momento (de oposição de uma maioria de esquerda), a reprivatização não deveria ter sido concluída”. As cartas de conforto então assinadas a favor dos bancos credores “equipararam o Estado à qualidade de acionista único”.

A proposta de relatório sinaliza a mudança na proposta da Atlantic Gateway para capitalizar a TAP apresentada em 2015 com recurso a capitais próprios, o que não se verificou. E diz que o Governo liderado por Pedro Passos Coelho teve conhecimento com detalhe do recurso aos fundos Airbus por parte da David Neeleman em outubro desse ano, tendo validado a operação que veio a ser posta em causa já em 2022 por auditoria pedida pela TAP, mas cujas implicações Ana Paula Bernardo deixa para outras instâncias.

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