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Se na gíria judicial americana os casos costumam ser designados de “X vs Y”, o novo imbróglio jurídico do sistema judicial nacional à volta da Operação Lex arrisca-se a ficar conhecido como “Supremo Tribunal de Justiça vs Supremo Tribunal de Justiça vs Supremo Tribunal de Justiça”.
É que três juízes conselheiros já decidiram de forma diferente sobre a mesma questão: qual o tribunal competente para julgar o caso que envolve os ex-juízes Rui Rangel e Fátima Galante, além do desembargador Vaz das Neves (ex-presidente da Relação de Lisboa) e Luís Filipe Vieira (ex-presidente do Benfica)?
Pior: a separação do processo, que pode ter “efeitos nefastos” na Operação Lex (como um dos três conselheiros reconhece), já foi decretada, tendo sido anulada pouco depois. E, apesar de essa decisão que manteve o processo unificado ter transitado em julgado, a mesma questão foi reapreciada esta semana para partir a Operação Lex em dois processos.
Supremo divide Operação Lex e decide que processo terá dois julgamentos
Está em causa a sobrevivência do próprio caso que provocou um sismo no Tribunal da Relação de Lisboa e levou o então presidente do STJ, conselheiro Joaquim Piçarra, a dizer que as suspeitas contra os então três desembargadores sob suspeita punham em “causa um dos pilares do Estado de Direito”: o da Justiça.
O Observador explica-lhe o caso em 9 perguntas e respostas.
Qual foi a última decisão e que imbróglio jurídico está criado?
O conselheiro António Latas, o juiz relator do tribunal coletivo de julgamento no Supremo Tribunal de Justiça (STJ) a quem foram distribuídos os autos da Operação Lex após a pronúncia dos 17 arguidos acusados pelo Ministério Público, decidida em dezembro de 2022, decidiu dividir o caso em dois processos.
O primeiro mantém-se no STJ e apenas terá como objeto os crimes imputados ao desembargador Vaz das Neves e a outros co-autores dos mesmos ilícitos. Significa isto que apenas os seguintes factos serão julgados no Supremo:
- Os crimes de corrupção passiva e abuso de poder imputados ao desembargador Vaz das Neves e a outros arguidos em regime de co-autoria: Rui Rangel (ex-juiz desembargador), Otávio Correia (ex-funcionário da Relação de Lisboa) e José Santos Martins (advogado e alegado testa-de-ferro de Rangel);
- E o crime de corrupção ativa imputado a José Veiga, o alegado corruptor de Vaz das Neves.
Já um segundo processo será aberto no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa e abrangerá todos os restantes crimes imputados a Rui Rangel, à sua ex-mulher e também ex-desembargadora Fátima Galante e aos restantes 14 arguidos.
Em termos formais, o conselheiro Latas fez cessar a conexão de processos que permitia que todos os factos da Operação Lex, e que tinham Rui Rangel como principal arguido, fossem julgados no mesmo tribunal.
E por que razão tal instância era o Supremo Tribunal de Justiça, a cúpula do sistema judicial?
Porque no momento em que Rui Rangel e a sua ex-mulher Fátima Galante foram constituídos arguidos, a 30 de janeiro de 2018, ambos eram juízes desembargadores. Logo, tinham direito a foro especial, sendo tal foro o Supremo.
Acresce que os dois magistrados e os cinco detidos na operação policial daquele dia, como o funcionário judicial Octávio Correia, o advogado José Santos Martins e outros que não eram juízes, foram todos levados para o STJ para serem sujeitos aos primeiro interrogatório judicial. Porquê? Pelas seguintes razões:
- Primeiro, porque o inquérito corria termos nos serviços do Ministério Público do STJ, sendo a procuradora-geral adjunta Maria José Morgado a titular do inquérito enquanto coordenadora do MP no STJ;
- Também porque Rui Rangel e Fátima Galante tinham direito a foro especial, o que fez com que o MP tenha promovido a conexão processual com os factos relacionados com os restantes arguidos;
- Consequentemente, o STJ assumiu as funções de tribunal de instrução criminal e foi designado o conselheiro Pires da Graça como juiz de instrução criminal para acompanhar a fase de inquérito, interrogar os arguidos e fixar as medidas de coação.
Como tudo começou?
A Operação Lex teve a primeira diligência com visibilidade pública a 30 de janeiro de 2018. Foi nessa altura que, além da detenção de cinco arguidos, foram realizadas buscas judiciais com impacto mediático às casas de Rui Rangel, Fátima Galante e outros arguidos mais relevantes.
Mais tarde, veio a saber-se que, além das suspeitas de corrupção (nomeadamente a alegada venda de decisões judiciais), estava igualmente sob suspeita a alegada manipulação dos sorteios de juízes da Relação de Lisboa — matéria que envolve Luís Vaz das Neves e o seu sucessor na presidência do tribunal, Orlando Nascimento.
Com a exceção de Orlando Nascimento (que foi alvo de uma certidão para um inquérito autónomo), foram acusados pelo Ministério Público um conjunto de 17 arguidos no dia 18 de setembro de 2020 por um conjunto muito alargado de crimes, que inclui corrupção, fraude fiscal, branqueamento de capitais, abuso de poder, falsificação de documento, entre outros ilícitos.
Rui Rangel e Luís Filipe Vieira acusados do crime de recebimento de indevido de vantagem
O processo foi distribuído para instrução apenas a 12 de maio de 2021 — ou seja, quase um ano depois do despacho de acusação da equipa liderada pela procuradora Maria José Morgado. E a instrução só arrancou em setembro de 2022, dois anos após a dedução da acusação.
Apenas sete arguidos optaram por contestar a acusação: Luís Filipe Vieira (ex-presidente do Benfica), Fernando Tavares (vice-presidente do Benfica), Jorge Rodrigues Barroso (advogado de Vieira) Otávio e Elsa Correia e Rita Figueira (ex-mulher de Rui Rangel) e o seu pai.
O conselheiro Sénio Alves foi o juiz de instrução criminal designado — e começou por tomar uma decisão marcante ainda antes de decretar aberta a fase de instrução criminal e admitir os respetivos requerimentos de abertura de instrução.
Que decisão crucial tomou o conselheiro Sénio Alves?
É o conselheiro Sénio Alves quem começa por criar o primeiro imbróglio jurídico, visto que ordena a cessão da conexão dos processos e ordena a separação do processo, ficando apenas os crimes relacionados com o desembargador Vaz das Neves, seja como autor ou co-autor, sob a jurisdição do STJ e atuando este tribunal superior como tribunal de instrução de criminal para apreciar as matérias relativas aqueles crimes.
E quais os argumentos do conselheiro? Essencialmente, quatro:
- Rui Rangel foi expulso da magistratura a 1 de março de 2020, “por via da aplicação da pena disciplinar com efeitos reportados a 6 de dezembro de 2019”, lê-se no acórdão datado de 12 de julho de 2021. Enquanto Fátima Galante foi aposentada compulsivamente a 12 de maio de 2020, com efeitos a 14 de dezembro de 2019. Significa isto que quer Rangel, quer Galante já não eram juízes, logo não tinham direito ao foro especial do STJ.
- Porquê? Diz Sénio Alves, invocando jurisprudência do próprio STJ, que o “foro próprio é uma garantia funcional, que se prende de uma forma íntima e indissociável ao exercício de funções como juiz, cessando a partir do momento em que este é desligado do serviço”. Logo, à data da acusação, “os arguidos Rui Rangel e Fátima Galante não reuniam os pressupostos necessários para a aplicação de foro próprio”, lê-se no acórdão.
- Logo, “o único elo de ligação que atribui competência ao STJ é o sr. juiz desembargador, Luís Vaz das Neves”. Para os restantes crimes que não envolvessem aquele desembargador, o “tribunal competente é o Tribunal de Instrução Criminal da 1.ª Instância” para apreciar os respetivos requerimentos de abertura de instrução.
- Acresce, por último, que Vaz das Neves não requereu a abertura de instrução, preferindo ir diretamente para julgamento. Ou seja, se o processo se mantivesse unificado, o ex-líder da Relação de Lisboa teria de esperar pela decisão instrutória relativa à contestação de outros arguidos — o que faria com que o processo relativo ao ex-líder da Relação de Lisboa se atrasasse. Argumento que o conselheiro Sénio Alves também utiliza para ordenar a separação do processo.
Refira-se, por último, que o conselheiro estava consciente dos “efeitos nefastos” que a separação do processo acarretava. “Os efeitos nefastos que daí derivam são os mesmos que resultam de qualquer outra separação. Existe matéria factual com o mesmo denominador comum que terá de discutido em dois processos distintos, com o risco de decisões contraditórias. Mas é um risco de que o legislador estava ciente, optando pela celeridade processual”, concluiu Sénio Alves no seu acórdão.
Houve recurso do Ministério Público ou de algum arguido?
Sim. O procurador Vítor Pinto e a defesa de Octávio e Elsa Correia, assegurada pelo advogado Paulo Graça, intentaram recurso da decisão de Sénio Alves no próprio STJ.
Isto porque, sendo matéria recorrível, a mesma tem de ser apreciada no mesmo tribunal superior, visto que é a mais alta instância do sistema judicial. Não há outro tribunal superior acima do STJ na ordem jurídica nacional.
Existe o Tribunal Constitucional mas o mesmo só aprecia matérias relacionadas com eventuais violações da Constituição — e não matérias puramente jurisidicionais.
O que argumentaram o Ministério Público e a defesa?
Os argumentos do MP e do advogado Paulo Graça foram muito semelhantes e resumem-se em três pontos:
- O procurador Vítor Pinto defendeu que a princípio do juiz natural tinha sido violado porque, como diz a lei, “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”;
- O ponto central, para o MP, é que os pressupostos processuais de conexão que fizeram com que os interrogatórios e respetivas medidas de coação aplicadas aos arguidos tivessem decorrido no STJ e com que a acusação tenha sido deduzida pelo serviço do MP no STJ, “são verdadeiras regras de fixação de competência, excecionais, correspondentes ao propósito do legislador de evitar a pendência simultânea de vários processos criminais contra as mesmas pessoas, com a consequência de uma infindável apreciação da sua situação processual”;
- O advogado Paulo Graça concordou e até fez uma alusão histórica à origem do principio do juiz natural: “Se o fundamento histórico do princípio do juiz natural foi a ingerência do Rei de França nos litígios judiciais, a tese em presença [do conselheiro Sénio Alves] permite a ingerência do Conselho Superior da Magistratura no julgamento das causas criminais”. Ou seja, faz com que seja retirado o foro ao STJ através de uma decisão que pode ser classificada como “arbitrária” — o que é um dos fundamentos para a violação do princípio do juiz natural.
O que decidiu o Supremo?
Os recursos foram distribuídos ao conselheiro Cid Geraldo, um conhecido ex-desembargador da Relação de Lisboa, que contou com o conselheiro António Gama como adjunto. Cid Geraldo não teve qualquer dúvida em dar razão aos recorrentes num acórdão datado de 24 de fevereiro de 2022 e tomou duas decisões: decretou a nulidade no acórdão de Sénio Alves e determinou a ida dos autos na íntegra para julgamento no Supremo.
Os fundamentos do relator Cid Geraldo explica-se da seguinte forma:
- Deu como provado que o princípio do juiz natural foi violado com a decisão do seu colega Sénio Alves. Porquê? Porque, “uma vez determinado o tribunal de acordo com os critérios legais existentes, a causa não lhe poderá ser retirada, sob pena de desaforamento”. Isto é, a partir do momento em que o Supremo foi declarado como o tribunal de instrução criminal competente para acompanhar o inquérito liderado pelos serviços do MP no STJ, é o tribunal competente e é este o juiz natural destes autos.
- Discordando totalmente de Sénio Ales, o conselheiro Cid Geraldo não só afirma que não faz sentido o argumento de celeridade invocado a propósito da situação processual de Vaz das Neves, como garante que a competência do STJ define-se pelo momento em que foi obrigado a intervir pela primeira vez nos autos. No caso, quando o Supremo teve de avaliar as medidas de coação sobre aqueles magistrados e outros arguidos através do conselheiro Pires da Graça.
É verdade que, “se um magistrado deixar de exercer funções, cessa a competência determinada pela qualidade do arguido”. Mas, recorda Cid Geraldo, nesse momento retomam-se “a aplicação de critérios materiais gerais de determinação de competências”.
Por último, a própria lei define que, em caso de risco de separação de processo de tribunais hierarquicamente diferenciados, é o tribunal com maior poder hierárquico que fica com os autos. Ou seja, neste caso é o STJ — a mais alta instância do poder judicial.
A decisão do conselheiro Cid Geraldo transitou em julgado?
Sim, transitou em julgado ainda em março de 2022. A decisão não admitia recurso mas apenas reclamação.
Se a decisão transitou em julgado, como foi possível reapreciar novamente a questão?
Esta é uma questão que muito provavelmente será levantada nos recursos que serão interpostos contra a decisão do conselheiro António Latas. Basta ler o acórdão deste conselheiro para perceber que há uma clara reapreciação de uma matéria que Cid Geraldo já tinha decidido e a mesma já tinha transitado em julgado.
Ou seja, em linguagem jurídica, verifica-se o caso julgado. Isto quer dizer que a matéria já foi decidida e está encerrada. E, por princípio jurídico, não pode ser reaberta.
Os mais que prováveis recursos da decisão de António Latas deverão invocar precisamente a alegada violação do caso julgado — o que é matéria para a nulidade do acórdão de Latas.
Por outro lado, não deixa de ser curioso que o conselheiro Latas fez questão de responder diretamente aos argumentos invocados por Cid Geraldo, nomeadamente a interpretação de que, mesmo que a competência do Supremo cessasse com a perda de qualidade de juízes desembargadores por parte de Rui Rangel e Fátima Galante, o Supremo mantinha-se como o foro competente.
Olhando para o mesmo artigo do Código do Processo Penal, o 27.º, o conselheiro Latas conclui algo oposto ao seu colega Cid Geraldo. Isto é, Latas entende que a norma não se limita apenas a dizer que o tribunal de hierarquia mais elevada é aquele que deve ficar com os autos. Tal norma também “indica qual é o crime determinante da conexão de processos”.
E, no caso, o conselheiro António Latas entende que são os “crimes imputados ao arguido Vaz das Neves”. Assim, deve “constituir-se” um “processo único” para tais ilícitos, sendo que os “crimes imputados aos arguidos Rui Rangel e Fátima Galante” já não competem ao STJ, lê-se no acórdão datado de 10 de março.
Qual o prazo para recorrer da decisão do conselheiro António Latas e quem deverá recorrer?
O prazo é de 30 dias. Provavelmente, o MP e as defesas de Octávio e Elsa Correia vão voltar a recorrer mas não deverão ser os únicos.