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Firmino Filipe vai acordar cedo esta quarta-feira. As urnas abrem às 7h da manhã e este trabalhador-estudante conta ir votar cedo e passar o resto do dia na sua assembleia de voto, no Uíge, no norte de Angola. É um dos angolanos que vai aderir ao movimento “Votou, sentou”, uma campanha da sociedade civil adotada entretanto pela oposição, pedindo aos eleitores que se mantenham nas assembleias de voto ao longo do dia para controlar possíveis fraudes eleitorais.
Angola. A última semana de uma campanha tensa mas pacífica, onde cresce o medo do “day after”
“Não vou à assembleia de voto para ir contra a Constituição, vou lá para exercer os meus direitos: o de voto e o de fiscalização”, resume pelo telefone ao Observador Firmino, a partir do Uíge. Estudante de Direito de 32 anos, trabalha para se sustentar num armazém e pretende prosseguir os estudos na área da Ciência Política. Até há alguns anos, Firmino Filipe nem era um cidadão politizado, definindo-se como “apartidário”. Estas eleições, porém, tem um voto definido: vai apoiar a lista da Frente Patriótica, da oposição, e em particular Adalberto da Costa Júnior, candidato da UNITA, por serem “os que têm mais condições de ganhar” e “acabar com a ditadura do MPLA”.
Este angolano diz que é essa a posição da maioria das pessoas que conhece, razão pela qual está confiante numa vitória da oposição. Mas Firmino diz ter receio de que haja fraude eleitoral. E, se suspeitar que tal aconteceu, não tem dúvidas sobre o que vai fazer: protestar. “Isso é legal, não temos de nos contentar”, afirma.
O jovem do Uíge é apenas um de milhões de angolanos que podem sair às ruas no rescaldo desta eleição se houver suspeitas fortes de fraude — um cenário que levanta receios a vários analistas, tendo em conta a mobilização total da polícia anunciada e o historial de repressão violenta de protestos por parte das forças da autoridade.
Risco de violência espontânea no pós-eleições é real
“Não sei qual vai ser a postura da UNITA. Mas se as pessoas sentirem que houve fraude e que eles não estão a contestá-la, podem reagir”, prevê Justin Pearce, professor da Universidade de Cambridge especialista na política angolana. “Outros setores da oposição também podem promover manifestações. E sabemos que o historial das forças de autoridade perante protestos populares é de violência”, resume ao Observador.
“O risco existe”, diz, sem margem para dúvidas este académico.
É esse receio da possível violência no período pós-eleitoral, combinada com uma campanha eleitoral hiper-competitiva, que tem trazido a lume repetidamente a comparação com as eleições de 1992, as primeiras eleições no período pós-independência de Angola. Há 20 anos, a campanha entre MPLA e UNITA decorreu taco-a-taco e terminou com a vitória de José Eduardo dos Santos na primeira volta, com 49,6%, contra 40,1% para Jonas Savimbi.
A segunda volta, porém, nunca chegaria a realizar-se. A UNITA contestou os resultados e as suas forças ocuparam várias zonas do país. Não demoraria muito para que a violência voltasse a abater-se sobre Angola: a 31 de outubro, milícias populares próximas do MPLA e a Força de Intervenção Rápida (popularmente conhecidas como “ninjas”) assassinaram centenas de figuras relevantes da UNITA em Luanda, naquilo que ficou conhecido como “o massacre de outubro”. “As imagens dos corpos espancados e em decomposição foram emitidas pela televisão pública de Angola, com vozes off a justificar as ações do governo”, ilustra Ricardo Soares de Oliveira na sua obra Magnífica e Miserável: Angola desde a Guerra Civil (ed. Tinta-da-China). A guerra civil reacendeu-se de imediato — e duraria mais dez anos, terminando apenas com a morte de Savimbi, em 2002.
Os analistas consultados pelo Observador consideram, contudo, que, apesar do risco de violência, a situação atual é diferente da que Angola vivia em 1992. “À altura a UNITA ainda tinha forças armadas sob o seu controlo, bem como o MPLA, e havia uma atmosfera de desconfiança dos dois lados”, resume Justin Pearce. “Agora, o MPLA ainda controla o aparelho de Estado, mas a oposição já não tem forças armadas.” Para além disso, considera que atualmente há “uma maior aceitação do processo eleitoral” por ambas as partes — “mas o MPLA tem meios para produzir uma votação fraudulenta”, considera o investigador.
Já Paula Cristina Roque, que tem experiência como investigadora em analisar várias eleições ao longo da História de Angola, destaca outro ponto: “Em 1992 o MPLA levou a cabo uma estratégia de abate à UNITA, foi uma violência instrumentalizada, planificada. Agora, se houver violência pós-eleitoral, será espontânea.”
UNITA já não é a dos tempos das “calças novas” e de um Savimbi “belicista”, dizem analistas
O fantasma de 1992 continua a assombrar Angola e é repetidamente invocado, até por atores políticos. Em janeiro deste ano, o Presidente João Lourenço referiu-se a essas eleições para descredibilizar a UNITA e tentar mostrar que o principal partido da oposição continua sem aceitar as regras democráticas: “Desde as primeiras eleições de 1992 que a oposição, de forma errada, tem feito uma má avaliação”, afirmou o líder do MPLA. “Com a abertura para o multipartidarismo, antes de as eleições acontecerem, já diziam ‘calças novas em setembro’, mas isso não aconteceu.”
Lourenço referia-se a um do slogans usado pela UNITA nessa campanha eleitoral, em que as “calças novas” simbolizavam a mudança para uma “vida melhor” caso a UNITA vencesse as eleições — por contraste com a campanha de José Eduardo dos Santos, focada antes na sua imagem de “arquiteto da paz” e de estabilidade. Apesar de Savimbi protagonizar comícios populares, não evitou a retórica militarista e não conseguiu convencer a maioria dos angolanos.
https://www.youtube.com/watch?v=COCELFgNF-s
https://www.youtube.com/watch?v=vtTjylKlQkg
Herman Cohen, responsável do governo norte-americano para os assuntos africanos à altura, resumiu assim o decurso da campanha, em declarações à Voice of America prestadas em 2011: “[Savimbi] fez uma campanha com armas e sempre de camuflado e com isso assustou as pessoas. E Eduardo dos Santos falava de paz e segurança e jogava futebol com as crianças. O contraste foi grande. E apesar de no inicio Savimbi ser favorito, assustou as pessoas e acabou por perder”.
O MPLA soube explorar a imagem de Savimbi como líder belicista e sanguinário e este acabou por reforçar ainda mais essa ideia ao contribuir para o reinício da guerra. Mas as comparações da UNITA de 1992 com a UNITA atual, como fez João Lourenço em janeiro, não fazem sentido para os investigadores consultados pelo Observador: “Quando desmobilizou em 2002 [após a morte de Savimbi], a UNITA encaixou mentalmente que esta luta tem de ser política”, considera Paula Roque. Justin Pearce concorda: “A UNITA aceitou completamente o seu papel como ator no sistema democrático. O MPLA, pelo contrário, continua a achar que tem o direito a estar no poder.”
Herói ou sanguinário? Savimbi vai ser enterrado, mas a discussão sobre o seu legado não desapareceu
A única comparação relevante, acreditam, é o facto de esta ser uma eleição altamente competitiva, como a de 1992. E para isso contribuem não as tensões como as que inflamaram o regresso à guerra civil há 20 anos, mas sim as questões do dia-a-dia ligadas à crise económica. “Esta é a primeira eleição em que vão votar pessoas nascidas no pós-guerra. Para as gerações mais novas a guerra já não é relevante”, declara o professor de Cambridge, que destaca antes “o desemprego, a desigualdade e a pobreza” como temas definidores da eleição.
Firmino Filipe é um desses casos. Nascido na Maquela do Zombo, Firmino e a família mudaram-se para a capital da província do Uíge — uma das mais afetadas pelos confrontos durante a guerra — precisamente no ano em que terminou oficialmente o conflito, em 2002. Mas esse não é um tema que oriente minimamente a sua intenção de voto: “A guerra dos irmãos desavindos durou 27 anos. De lá para cá são 20 anos de paz efetiva. Dizer que a UNITA é isto ou aquilo já não colhe”, diz. “O povo já não tem medo do fantasma de Jonas Malheiro Savimbi que o MPLA, desesperado, tenta agitar.”
Prova disso é a popularidade de que hoje em dia a UNITA goza na capital Luanda, zona historicamente favorável ao MPLA. “O MPLA tem na sua capital uma população que está a votar contra ele e estamos a falar de milhões de pessoas”, aponta Paula Roque. “São muitos desempregados, pessoas com fome, pessoas que não conseguem que os filhos vão à escola. Sentem que já não têm nada a perder.”
“Votou, sentou” contra “Votou, bazou” será primeiro ponto de tensão
Perante uma oposição tão galvanizada e a possibilidade mais real do que nunca de uma vitória da oposição ao MPLA, crescem os receios de fraude eleitoral por parte de vários analistas e junto de uma fatia considerável da população. “Temos desconfiança até das nossas instituições”, ilustra Firmino Filipe, apontando o dedo à Comissão Nacional de Eleições (CNE), pelo atraso na publicação dos cadernos eleitorais e pela oposição declarada à iniciativa “Votou, sentou”, que disse ter “potencial para gerar atrito”. Uma posição em linha com a do MPLA, que tem tentado dissuadir os eleitores de permanecerem nas assembleias de voto ao longo do dia, com alguns a sugerirem antes o slogan “Votou, bazou”.
“Não sei porque é que o MPLA tem medo do ‘Votou, sentou’. Quem controla toda a máquina do Estado é o MPLA, controla os ministérios do Interior e o da Defesa”, aponta Firmino, que considera a mobilização de polícia e Forças Armadas como uma “intimidação”.
Paula Roque resume o potencial explosivo por haver “uma expectativa enorme da oposição” que coabita com “um MPLA com medo de perder o poder” e “um aparelho de segurança fortíssimo e em prontidão”. “Não há forma de conciliar estas duas visões. Uma vai ter de perder e a outra vai ter de saber encaixar essa perda”, afirma.
Perante este cenário, em caso de vitória do MPLA, como irá a oposição — e a população — reagir? A UNITA, que irá fazer uma contagem de votos paralela, já deixou duas promessas. A de que “vai recorrer de todas as decisões que violam a lei”, o que abre a porta a uma possível contestação dos resultados se houver suspeita de fraude, mas também a de que “não está interessada na criação de um ambiente de desestabilização”.
Adalberto da Costa Júnior pode por isso tentar colocar água na fervura, mas isso não elimina a possibilidade de protestos até de outros setores da oposição, como sugeriu Justin Pearce. “Não sei se a UNITA quererá organizar manifestações de massas, porque sabe que do outro lado os esperam polícias armados e dispostos a disparar”, acrescenta Roque. “Mas será que a população não vai sair à rua espontaneamente? Isso não sabemos”.
A avaliar por Firmino Filipe, é garantido que sim. “Se as eleições forem justas e transparentes, amanhã será o último dia do MPLA no poder”, prevê o jovem do Uíge. “Mas, infelizmente, o partido está a agarrar-se com unhas e dentes ao poder”. Perante a possibilidade de fraude, Firmino garante que estará “pacificamente a protestar” nas ruas ao longo dos próximos dias. Mesmo sabendo do risco que corre: “A qualquer momento o país pode mergulhar num mar de sangue. Foi o que aconteceu em 1992”, sentencia.