É uma “visita guiada a um mundo possível”, razão pela qual a autora nem hesitaria na data se as viagens no tempo não fossem ainda instrumento reservado à ficção. 1173, ano da chegada sigilosa à cidade das relíquias do mártir São Vicente, seria o período escolhido para recuar na História da cidade de Lisboa e das festas em que a cúpula do poder e as ruas estreitas se interligaram. Acrescentaria assim o seu testemunho à carência de registos sobre esse momento épico de alvoroço popular que culminou com uma compra. “Sangue não houve, mas houve corrupção, o que é muito interessante. Para as relíquias de São Vicente irem para a Sé, dá-se ao pároco da igreja de Santa Justa uma cátedra na Sé”.
Mestre em História Moderna pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, especializada no poder feminino na corte portuguesa, Ana Cristina Pereira acompanha em “Lisboa em Festa”, esta e outras nove cerimónias que marcaram o pulsar da cidade entre o século XII e o século XIX, culminando com “o último grande conto de fadas da monarquia portuguesa”, o enlace entre Dona Amélia e Dom Carlos, com a capital do reino a ganhar um majestoso boulevard, uma fantasia que não apaga uma dura trajetória. “Se há coisa que se percebe ao longo deste livro é que a esmagadora maioria das vezes a festa em Lisboa nasce da dor, do luto.”
A longa história festiva escreve-se com aclamações, cercos, pestes, chegadas apoteóticas, encenações de desfecho imprevisto, faustosos bailes, touros e torneios, e no final, claro, uma fatura choruda, que a folia não se paga sozinha. Contas acertadas, uma coisa é certa: “Os lisboetas têm uma grande pertença à cidade”.
Sabemos que o projeto desta obra nasce na Feira do Livro mas como chegou a esta ideia de uma Lisboa que festeja, nem sempre no rescaldo de um motivo feliz?
Estava a dar autógrafos, e as pessoas de História não são assim tão requisitadas que não possam estar a conversar. O José Sarmento de Matos, olissipógrafo, bastante sapiente, olhou para mim, que trabalho casa real, e propôs-me descer do palanque: como é que a cidade e o poder se integrariam? Foi este o desafio.
Pelo livro sente-se que foi difícil seguir o rasto dessa cidade.
Sim, muito, porque quando se trata a história de Lisboa em si o que se vai buscar são os quotidianos, os registos paroquiais, e o que queria era uma coisa diferente. Como é que a cidade participava ativamente nessa festa de poder, como se ligava com ele? Mas mais do que isso como é que o comum lisboeta participava nessas festas, não no papel que o poder lhe atribuía, mas como ele genuinamente partilhava desse momento comum… foi um pouco loucura mas está feito.
Falamos de uma participação moderada, já que o povo quase sempre ocupa o lugar que lhe pertence, cumprindo uma função ornamental, como assinala?
No fundo, sim. Ao longo da cronologia vai havendo uma transformação na forma como participa. Lisboa é uma cidade onde convergem culturas e gentes diversas, com formas de divertimento muito próprias, e isso vai divergindo com a própria cidade. Como participante observador, a multidão assiste a touradas, momos, justas, torneios, mas depois a festa que a cidade vive nas suas ruas estreitas, mesmo do povo, essa é ligada à religiosidade, espiritualidade, com romarias, procissões. Depois claro que há momentos de celebração especiais ligados à construção da monarquia, com os nascimentos, batizados, casamentos.
A festa que é também um instrumento do poder.
Sim, sim, mas o objetivo era encontrar realmente o viver real, o pulsar da cidade e suas gentes.
Temos de facto esta agenda oficial da monarquia, mas depois também essa relação com o divino. Lisboa vive sob ordens transcendentes, entre o milagre oferecido pela peste, com o princípio do fim do cerco, e castigos como o terramoto. Sente-se que a conjugação deste dois ritmos é permanente?
É verdade. Temos que ver que culturalmente estas pessoas estão dependentes da vontade dos santos e de Deus para as suas vidas. Aliás, Lucien Febre tem um belíssimo livro, “Le Problème de l’incroyance [au XVIe siècle, la religion de Rabelais (1942)]”, que em português não significa descrença, como está traduzido, mas sim o prelúdio de quando as pessoas começam a pensar se realmente não haverá Deus. Porque até aí as pessoas estão muito dependentes da vontade divina, o que não significa que não tomem nas suas mãos as rédeas do seu destino. E nós vemos isso na chegada de São Vicente. Podia-se pensar numa solução para as relíquias e não foi isso que aconteceu…
O povo discutiu de forma violenta nas ruas o destino das relíquias.
Felizmente, ou infelizmente, o representante de Dom Afonso Henriques tem um papel preponderante e consegue negociar uma solução mais ou menos pacífica, mas na verdade as pessoas pegam em armas quando percebem que as relíquias estão na cidade. Esta constante luta entre a vida real e o que aspiram, entre o ideal e o real, vai também definir muito esta vida da cidade.
Mencionava a capacidade de assumirem os seus destinos, apesar dessa dependência do divino. É de facto uma marca da cidade, mais do que do país?
Em Lisboa, como é um meio urbano, é sempre muito evidente esta preponderância entre aquilo a que chamamos povo, globalmente. Ainda agora, quando discutimos as vacinas, basta comparar um centro de saúde no interior e em Lisboa. Aqui sente-se muito que Lisboa apoia D João I incontestavelmente. As pessoas sabem que vão ser cercadas, que vão passar fome, que provavelmente até vão perder, mas estão ali para apoiar e vão defender e aclamar. Objetivamente que isto não espelha o reino. Na verdade Lisboa ganha destaque como cabeça do reino a partir de D. Afonso III… esta pressão de uma cidade que está muito exposta ao Tejo, que é muito central no país no ponto de vista geográfico… De facto os lisboetas vão ser muito senhores dos seus destinos. Quando comparamos com outras cidades, nota-se em Lisboa uma pertença de povo, uma pertença à cidade que não existe noutras.
Não é por acaso que até hoje sobrevivem expressões muito ingratas como “Portugal é Lisboa e o resto é paisagem”?
É, pela própria geografia da cidade. A partir de D. Manuel aportam a Lisboa todas as pessoas vindas de todo o mundo. É aqui que estando o rei, a partir dos Descobrimentos, toda a organização da expansão feita a partir da cidade traz uma visão diferente. Mas também é interessante verificar, e eu quando comecei esta investigação não tinha noção disso, esta sensação de pertença e da criação de um grupo muito importante de mercadores, intelectuais, que vem pressionar esta força que Lisboa vai ganhando com os séculos.
Há muito essa marca do trânsito permanente de gentes. Essa ideia forte de identidade é um sentimento para consumo doméstico ou também reconhecido lá fora?
Mesmo quando analisamos as crónicas espanholas no tempo dos Filipes, o espanto que têm pela cidade, a admiração pela forma como está organizada e pelo viver das gentes, é algo que eles registam. Os lisboetas têm uma grande pertença à cidade. Podemos recuar mais até, à carta do cruzado na Conquista de Lisboa em que ele já descreve uma população que é diferente do resto do reino. Foi o que mais me surpreendeu.
Esta vocação da cidade enquanto plataforma, de entradas e saídas permanentes, está muito refletida nestas festas, associadas a partidas e chegadas. Noivas que vêm casar, exploradores que regressam a casa, etc.
É um bocadinho uma escolha minha. Ainda hoje Lisboa é uma plataforma Atlântica. Até durante o Estado Novo, com a fuga de judeus, Lisboa sempre teve este carácter de plataforma de entradas e saídas. Acabei por ir por aí. Deixei várias festas de fora, por já ter trabalhado algumas noutras publicações. A chegada de D. Miguel para vir ser aclamado rei, por exemplo, é todo ele um processo que podia estar neste livro. Deixei de lado vários batizados e casamentos reais, exatamente porque não quis tanto falar da cerimónia real em si mas de vir para a rua. Por isso é que escolho casamentos em que o povo está a participar. Vemos o que comeram, o que fizeram, quase como um álbum de casamento, no caso de Afonso e Beatriz. Foi o meu intuito pôr-nos a observar estas festas.
Aí estamos em 1309, com uma festa na Sé, mas esse provavelmente não é o casamento mais marcante na cidade. Podemos dizer que o de Carlos e Amélia, em 1886, é o que tem mais impacto na estrutura da cidade?
Sim, sim, até porque já estamos no século XIX, a monarquia já está noutra fase, a forma como se pensa as cidades é outra, porque já passámos pela Comuna de Paris, pelas barricadas. Este grande boulevard, hoje a Avenida da Liberdade, nasce para combater esse tipo de revoluções. É interessante como a monarquia já estando frágil ainda vai construir um boulevard à moda parisiense, quase como se fosse um aviso de que aqui não se fazem barricadas, que depois vão acontecer em 1910, com a zona do Marquês de Pombal a ser um dos pontos da República.
Neste caso, apontamos para a organização da cidade. Quanto a impacto político, nada bate o enlace entre Dona Catarina de Bragança e Carlos II de Inglaterra?
É exatamente isso, o casamento que promove a paz entre Portugal e Castela, e que acaba completamente com a Guerra da Restauração. Este casamento tem toda uma pressão diplomática que é improvável, não há nenhum na história com este peso. Catarina de Bragança acaba por ser o garante da dinastia. Se pensarmos que a irmã mais velha, Dona Joana, já tinha morrido, o irmão mais velho D. Teodósio, já tinha morrido… o próprio Afonso VI que já nesta época se percebe que não estaria apto a reinar. É um casamento também de esperança e de medo porque ninguém sabe o que vem a seguir.
É aliás um ritual com várias etapas e pretextos para festa nas ruas: a chegada, a cerimónia, depois o facto de ser levada pelo embaixador Sandwich para Inglaterra…
Sim, aqui ainda mais porque é ela que se vai embora. Há várias cerimónias realizadas em Portugal e quando chega a Inglaterra terá outras tantas.
No caso de Joana de Áustria, que se casa em 1552, novo roteiro. A começar pela fronteira do Caia, ponto de entrada e troca de princesas ibéricas, como lhe chama. Daí a chegada ao Barreiro, depois Lisboa. Todos estes passos também seguidos euforicamente pela população?
Sim, e há relatos. Normalmente estas comitivas vêm acompanhadas por pessoas que vão registar as cerimónias. O objetivo é as pessoas que estão fora do reino verem a mesma cerimónia, é por isso que temos este nível de detalhe. De qualquer forma o mais relevante para nós é a entrada na cidade, e também o facto de ser a princesa da Esperança.
Falamos da neta de D. Manuel I, uma princesa com sangue português…
Exatamente. Tudo isto faz com que as coisas ganhem uma roupagem importante. Mais do que um casamento e uma princesa estamos a falar da garantia do reino e tínhamos razões para se preocuparem com isto porque logo a seguir vão chegar aos Filipes…
Nem de propósito, vamos a Filipe II e à sua chegada a Lisboa, outro dos momentos de apoteose neste livro. Tem uma entrada “comparada à do Messias em Jerusalém”.
Vou ser muito honesta, foi o capítulo que me deu mais gozo escrever. Na verdade o que estamos a assistir é que o trono de Portugal é reivindicado pelo primeiro dos Filipes, pelo direito dinástico mas também pela força das armas; é uma verdadeira conquista do trono. Mas depois quando Filipe II vem a Portugal entra primeiro como peregrino, um pouco clandestino, como se viesse só celebrar com a cidade, e na verdade o que ele está é a acompanhar politicamente todas as sensibilidades… o que se ouve, os rumores, a forma como as pessoas cumprimentam.
Todos os passos muito bem calculados? Falamos de uma chegada que demorara 18 anos.
Sim, e as pressões que são feitas na corte… quando ele vem está tudo muito expectante. É uma grande encenação de poder, que aliás é a capa do livro, onde vemos os barcos triunfais. Como acabo por dizer, no fim de contas foi uma montanha que pariu um rato, porque as coisas não se concretizam, a nobreza portuguesa e os comerciantes não ficam satisfeitos com o que veem e ouvem, e no fundo é uma viagem que tem um final muito infeliz para os portugueses que tiveram que pagar imenso pelo privilégio de verem o seu rei.
Falando de balúrdios, vamos à fatura destas festas todas. São várias as referências de despesas associadas a alguns eventos. D. Dinis, por exemplo, queixa-se de uma conta de casamento avultada que tem que pagar. O de Dona Amélia também não foi uma barateza, incluiu a decoração de três palácios, quatro dias de gala, um baile na Ajuda com 2.700 convidados… Que balanço fazer destes gastos?
Em termos de festas, e como acabei por escolher momentos que não são comuns, nota-se que no geral há uma grande contenção de gastos. D. Dinis queixa-se das despesas com o casamento do filho e essa vai ser uma constante. Dona Catarina de Bragança vai para Inglaterra e o dote nunca é completamente pago, a própria viagem de Vasco da Gama podia ter sido mais equipada e não foi porque não havia dinheiro.
É oficial: a escassez de recursos não é de hoje, portanto, mesmo em tempo de festa.
Sim, não falando de D. João V, porque aí pensamos numa chegada imensa de diamantes e de ouro. Há todo um aparato que não é comum. Com Dona Amélia é muito engraçado porque temos a rainha a querer renovar o palácio e D. Luís a dizer “não, não, vire-se o papel do avesso que está muito bom”. Porque ali os gastos já eram controlados pelo Parlamento, há um carácter de prestação de contas.
Voltemos ao princípio desta viagem, ao século XII e a São Vicente, com esta primeira festa, de pendor religioso, feita a partir dos restos mortais de um mártir. E ainda assim determinante para a vida da cidade?
Feita com os restos mortais de um mártir que é particularmente importante para esta comunidade lisboeta porque a população moçárabe acaba por fazer as pazes com o rei a partir deste momento. Não se faz uma festa por acaso. São Vicente é recebido em armas porque vem clandestino, durante a noite. Depois a forma como as próprias crónicas reais vão ligar São Vicente a D. Afonso Henriques, a vontade férrea atribuída ao santo que só queria vir para Lisboa e deixar-se achar por estes cristãos. Estamos a falar de ir buscar a um santo que também está ligado aos muçulmanos, trazer como símbolo da paz que se pretende, porque a comunidade moçárabe foi muito violentada durante a Conquista, apesar de serem cristãos. Há aqui um regular dos cruzados, da religião estrangeira que chegou, e isso fala-nos também da diferença de liturgias. Estas pequenas diferenças acabam por marcar uma identidade própria. Fiquei ainda mais lisboeta depois de fazer este trabalho. E eu já sou muito.
Há aqui marcas de grande divisão mas também de grande abertura, de conjugação de culturas e credos, e no entanto falamos de uma chegada a Lisboa que não é pacífica, com as pessoas a disputarem o local onde será sepultado, provavelmente com sangue à mistura…
Sangue não houve, mas houve corrupção, o que é muito interessante. Para as relíquias de São Vicente irem para a Sé, dá-se ao pároco da igreja de Santa Justa, que seria essa primeira igreja cristã moçárabe que já existiria, uma cátedra na Sé, ou seja compra-se as relíquias de São Vicente, Portanto, não há sangue, há escaramuças, alarido, mas isso é comum, há é uma compra.
Um processo banal à época.
Era perfeitamente comum. Aliás, na parte diplomática era normal dar-se diamantes aos embaixadores estrangeiros para comprar o apoio em determinado tratado.
Falando de diplomacia, ou ainda de uma certa abertura, ainda no século XIII: com o reinado de Afonso III, nota-se essa ponte com o povo quando por exemplo as inquirições permitem mesmo que os funcionários régios escutem as comunidades. É uma novidade mais ou menos inesperada, esta ponte com o povo?
É uma novidade introduzida por Afonso III, que é grande construtor do Estado moderno, que vai permitir que D. Dinis depois consiga mudar a legislação e siga uma certa modernidade. Repare-se que Afonso III vem de França, vem educado na corte francesa, e o que traz para Portugal são práticas modernas já experimentadas lá fora. Vai fazer isso com objetivo concreto: dizer a todos os senhorios e municípios que quem manda aqui é o rei. O rei está cá para vos proteger, podem queixar-se à vontade. É um elemento diferenciador.
Quando falamos da folia associada a todas estas cerimónias, falamos de outra eventual benesse para os populares: assistimos a indultos, ao perdão de delitos, como por exemplo acontece com a chegada de Vasco da Gama a Lisboa, em 1499.
Mesmo relacionado com casamentos e batizados era muito usual os reis exercerem o seu direito de perdão. Eram perdoados crimes menores em várias circunstâncias. O perdão é uma das grandes características régias, e assim de alguma forma o rei também exerce a sua graça.
É uma cidade muito briosa aquela que aclama D. João, entre 1383 e 84. Lisboa é tão ágil a vestir o traje de gala como a cota de guerra?
O próprio momento de pôr D. João no trono nasce de uma conspiração lisboeta, a grande mentira da História, que é dizer que estão a matar o mestre de Avis e na verdade o mestre é que está a matar. Depois aqui temos o magnífico Fernão Lopes que explica como ninguém a cidade. Obviamente que quando lemos isto apetece-nos muito mergulhar no Fernão Lopes, mas temos que nos manter distantes e ver também o que está escrito em fontes espanholas, cartas de embaixadores, etc. Se lêssemos só o Fernão Lopes, Lisboa era uma coisa perfeita, e não é.
Quando avançamos mais nesse cruzamento de fontes, percebemos onde costumamos falhar?
Falhamos pela forma como nos encantamos com Lisboa. Encantamo-nos demasiado com a nossa História, e eu incluída, é um mea culpa. Isto para mim é um trabalho científico, temos que desconstruir, mas às vezes até fico irritada. Estava tão feliz a ler algo e depois há algo que diz o contrário e depois outra coisa que corrobora a primeira [risos]. Deixamo-nos levar por esta luz de Lisboa, este rio, e é muito fácil imaginar as pessoas nestes momentos. Daí ter incluído sugestões de passeios. Este é um livro de História, claro, com as suas fontes, mas há esta marca, de facto, de uma cidade única pela forma como encanta.
Para lá desse encanto à superfície, é impossível ignorar o fosso profundíssimo entre classes ao longo destes séculos. Parece evidente que a festa não chega para enganar essa assimetria.
Sim, e isso ficou muito claro no livro. A diferença entre quem precisa de estar a comer pão feito com castanhas, ou favas, porque não têm mais nada, e depois a comida dos palácios. É um fosso social muito grande que se manteve ao longo de todo o século XX. Mesmo em Lisboa havia uma clivagem imensa entre a classe média e zonas de estivadores como Alfama, ou as zonas operárias da Graça.
Mas é curioso que entre as atrações festivas que acompanham os diferentes séculos há motivos de interesse que são transversais a todos os estratos. Falo dos touros, por exemplo.
Sim, as touradas são das coisas que mais unem.
E um acidente de trabalho, digamos assim, que resulta em morte enquanto se prepara uma destas cerimónias, como aconteceu em Xabregas, é encarado com grande placidez.
As pessoas morriam num momento de divertimento mas na verdade estavam a dar a sua vida pela imagem da coroa. Há uma ideia de sacrifício pelo reino.
Um reino que tem um dos seus momentos mais negros com o grande terramoto, em 1755. Vinte anos depois, é inaugurada a estátua de D. José, no Terreiro do Paço. Que peso adquire esta grande festa na vida de uma cidade que se reconstrói?
Se há coisa que se percebe ao longo deste livro é que a esmagadora maioria das vezes a festa em Lisboa nasce da dor, do luto. Este entendimento não é imediato, mas a estátua equestre é paradigmática disso mesmo: a cidade que é completamente destruída em 1755, a cidade que se quer abandonar, porque há todo um projeto para construir uma cidade nova, ideal, na zona de Belém, e 20 anos depois inaugura-se esta estátua de D. Jose I, como se aquela festa fosse uma celebração da vida. Mais do que o rei e o poder está-se a celebrar a grandiosidade da cidade, que já está a ser reconstruída, como se a vida estivesse a renascer.
É uma cidade que resiste, também, que insiste naquele coração da cidade, quase desafiante face ao seu futuro?
Na verdade toda aquela zona a que hoje chamamos baixa Pombalina… esta construção naquele local, recuperando as casas de madeira mas agora com outra construção, é uma prova de resistência. Vemos esta cidade em Voltaire, no seu Cândido, e percebemos a dor das pessoas. Toda essa ideia mostra como Lisboa reagiu a tudo isto.
Se pudesse viajar no tempo e escolher apenas uma destas 10 cerimónias, qual testemunharia?
Gostaria muito de ter estado na paróquia de Santa Justa quando chegaram as relíquias de São Vicente, voltando a 1173. Por uma razão simples: é aquele momento em que temos menos informação. Sabemos mais o que nos quiseram contar do que aquilo que aconteceu. Se pudesse voltar atrás, gostaria de ter estado ali escondidinha, disfarçada de monge, para perceber exatamente o que aconteceu naquela conversa à porta secreta, entre o pároco e o chantre da Sé.