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TOMAS SILVA/OBSERVADOR

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

Os mil e um trabalhos de Marco Delgado

É um dos atores mais reconhecidos da sua geração. Entre o teatro, o cinema e a televisão criou um percurso onde sempre preferiu o risco ao caminho seguro. Agora dá voz ao novo podcast do Observador.

A certa altura da peça, Malvólio lê uma carta que diz: “Há quem nasça grande, há quem atinja a grandeza, e há quem veja a grandeza ser-lhe deposta nos ombros. O teu destino traz-te uma oferta, atira-te a ela de corpo e alma”. Em palco, a interpretar esta personagem de Shakespeare, na peça “Noite de Reis”, com encenação de Ricardo Neves-Neves, está Marco Delgado, o ator português que é um dos rostos mais reconhecidos e estimados da sua geração. Aos 50 anos e com mais de três décadas de carreira, feita entre o teatro, o cinema e a televisão, o ator está hoje num lugar que sempre ambicionou: “Tenho tido sorte, mas trabalhei muito e construí um percurso do qual me orgulho. Neste momento da minha vida, estou curioso para ver o que é que se vai passar daqui para a frente”, diz em entrevista ao Observador.

Transversal enquanto intérprete e fazendo uso da voz como importante ferramenta de trabalho, Marco Delgado é também o narrador do novo podcast narrativo do Observador, “Um Espião no Kremlin”, uma série para ouvir em seis episódios que relata a ascensão de Vladimir Putin ao poder na Rússia. “Tenho feito muitas locuções, mas nunca tinha feito algo semelhante como ser narrador de um projeto tão extenso, de grande investigação jornalística. Foi muito gratificante para mim”, diz. O ator, que não esconde a admiração pelos livros de História, explica que se trata de um projeto que, de forma explicativa e minuciosa, desvenda curiosidades e factos que se revelam importantes para entender a atualidade. É mais um dos projetos em que se envolve este ano, depois da peça “Noite de Reis”, do filme “Abandonados”, de Francisco Manso, bem como de “Pôr do Sol: O mistério do colar de São Cajó”, spinoff cinematográfico da série televisiva que foi um fenómeno de sucesso pela paródia ao formato e aos ingredientes habituais de uma telenovela, com um enredo de drama, crime, amor, traição, sobre a família Bourbon de Linhaça, proprietária da herdade do Pôr do Sol.

No filme "Corte de Cabelo", com Carla Bolito (1995) e na telenovela "Ilha dos Amores", da TVI (2007)

“Está a ser um ano muito intenso e por isso bastante enriquecedor”, explica Marco Delgado, mesmo não escondendo a surpresa perante o sucesso de “Pôr do Sol”, como sátira às telenovelas que, afinal de contas, fez durante anos e continua a fazer. “Tornou-se algo tão grande, cativou pessoas dos 8 aos 80 anos, e isso foi uma surpresa. Arriscámos agora num filme e quem sabe se ainda haverá mais alguma coisa daqui para a frente.” Não podia estar num melhor momento para olhar para o seu percurso, que ainda assim foi construído de forma inusitada, sem que o ator procurasse o sucesso como objetivo. A busca por uma ligação à arte e à cultura revelou-se tardiamente, ainda que tenha chegado para ficar em definitivo. “Essa descoberta e esse fascínio costuma surgir mais cedo, mas foi o percurso que escolhi fazer e não me arrependo.”

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[Ouça aqui todos os quatro episódios já publicados de “Um Espião no Kremlin”, o podcast do Observador sobre Vladimir Putin com narração de Marco Delgado. Na próxima terça-feira sai o quinto de seis episódios.]

De Moçambique para Portugal

Marco Bruno Tavares Delgado nasceu a 18 de outubro de 1972, em Moçambique. Num tempo de grande efervescência política e de tensão devido à guerra colonial, as suas recordações desse tempo são, no entanto, de grande felicidade. “Morávamos numa casa muito grande, eu, os meus irmãos e os meus pais, junto ao aeroporto da Beira. A minha mãe trabalhava na TAP e o meu pai era controlador de tráfego aéreo. Tenho memórias de um grande pombal que tínhamos em casa, de um jardim grande… E lembro-me do calor e da terra, de andar descalço, das cores vivas e quentes de África”, recordou em entrevista ao semanário Sol. Em 1976, já depois da Revolução de Abril, a família regressa a Portugal e os pais continuaram no ramo da aviação, fixando a família na cidade de Lisboa, onde acabou por crescer.

“Tenho tido sorte, mas trabalhei muito e construí um percurso do qual me orgulho. Neste momento da minha vida, estou curioso para ver o que é que se vai passar daqui para a frente.”

Os primeiros anos, depois do regresso, foram conflituosos e contraditórios, realçou por diversas ocasiões. Havia preconceito, ao ponto de serem anos incomodativos para a família. “Até as pessoas nos voltarem a aceitar como portugueses que éramos, também… houve quase uma reinserção social”, sustentou o ator em entrevista recente à revista Sábado. Melhores anos viriam. Ainda que marcado pelo divórcio dos pais, Marco Delgado recorda ao Observador que os anos 80 foram, ainda assim, de grande descoberta, numa época em que o país também se começou a abrir ao que vinha de outras latitudes – nomeadamente em termos musicais e no domínio do entretenimento. “Vivia próximo do aeroporto, não ia muito ao cinema ou ao teatro, mas já ouvia muita música e lia bastante”, diz. Não foi de fases, modas ou tendências e foi apenas e só como rumo para o percurso escolar que tomou a decisão de tentar enveredar pela área artística.

“No final do 12.º ano sabia que queria estar ligado às artes e experimentar. Foi quando decidi fazer um curso de ator e perceber se teria ou não algum talento”, diz. Primeiro matriculou-se no Instituto de Formação, Investigação e Criação Teatral e mais tarde especializou-se em Formação de Atores de Teatro pelo Instituto Franco-Português. “Tive a sorte ter professores maravilhosos que me ensinaram muito e que me fizeram ter este desejo ainda mais presente. Talvez já lá estivesse o bichinho, mas aqueles anos serviram de gatilho”, sintetiza Marco Delgado. Próximo de Jorge Silva Melo, de Manuela de Freitas ou de Luís Miguel Cintra, entrou no mundo onde a poesia se juntava ao teatro e ao cinema de forma singular. Onde não faltavam os clássicos, mas também textos de grande contemporaneidade, um desafio para o jovem ator.

Na peça "Noite De Reis" (foto de Estelle Valente) e na série "Pôr do Sol"

E tudo sucedeu naturalmente a partir de então. A sua estreia no teatro regista-se em 1992, ao integrar o elenco de “Os Possessos”, de Dostoiévski, pelo Grupo Teatral In Periculum. Depois correu as “diferentes capelinhas”, nesses primeiros anos, com experiências que o marcam até hoje. A Cornucópia, a Barraca, mas também os Artistas Unidos foram verdadeiras escolas. “Uma peça que fiz com o Teatro da Cornucópia em 1994, ‘Diálogos sobre a Pintura na cidade de Roma’, marcou-me bastante. Partia de um texto de um pintor renascentista português, o Francisco de Holanda, que estagiou com o Miguel Ângelo em Itália, na altura do grande Renascimento italiano. Como era a minha estreia, ao lado do Luís Miguel Cintra, na Cornucópia, acabado de fazer o curso, foi marcante. Isto em teatro”, recordou em entrevista à Sábado.

Seguiu-se “António, Um Rapaz de Lisboa”, peça com encenação de Jorge Silva Melo, em 1995 e, em 1997, ingressou na Companhia Teatro da Garagem, onde participa em inúmeros espetáculos. Na mesma década chegou o boom televisivo, ao qual não foi alheio e que o levou a desdobrar-se nas muitas produções que se seguiram. “Tempo de Viver”, “O Olhar da Serpente”, “Queridas Feras”, “O Beijo do Escorpião”, “Santa Bárbara”, “Rainha das Flores”, “Paixão” ou “Na Corda Bamba” foram apenas algumas telenovelas, em muitos casos como protagonista ou principal antagonista, que o mantiveram como um rosto conhecido. “Foi o início de mais de vinte anos de percurso em televisão”, salienta. O mesmo sucede com o cinema, onde participa em filmes como “Corte de Cabelo” (1994) de Joaquim Sapinho, “António, Um Rapaz de Lisboa” (1999) de Jorge Silva Melo, “Refrigerantes e Canções de Amor” (2016) de Luís Galvão Telles ou “Ruth” (2018) de António Pinhão Botelho.

“Estamos num momento interessante e vivo, em que estamos mesmo a concorrer com outros países, com produções muito melhor orçamentadas, estamos a ir no caminho certo; prova disso mesmo é o sucesso da série 'Rabo de Peixe'. Isto vai ser ótimo para a nossa indústria e estamos a mostrar que mesmo sem ovos conseguimos fazer omeletes muito bem feitas.”

Em busca da verdade

Mais de três décadas depois de ter começado este caminho, Marco Delgado é um ator de caixa alta, como já foi descrito, e cujo papel desempenhado deve ser a verdade (mesmo que dentro da mentira). “Tem de ser pela verdade e tem de ser por nós próprios, não pode ser por qualquer artifício, porque as pessoas vão sentir isso. Parto sempre para os meus trabalhos e para as minhas personagens sem qualquer julgamento. Quando me propõem interpretar uma personagem, parto do princípio de que aquilo é tudo verdade”, sublinhou em entrevista ao Sol.

Não sendo alheio a polémicas, hoje diz-se pacificado com a forma como é visto pelas pessoas – mesmo que, por diversas ocasiões, a persona pública não corresponda à sua forma de ser e estar na esfera privada. A certa altura da sua vida, assumiu a sua bissexualidade, algo que por receio dos comentários chegou mais tarde na sua vida. Atualmente está tranquilizado com essa decisão, explica. “A sexualidade é uma coisa que fascina as pessoas, mas há outras questões… Tenho uma relação há 12 anos. Os cuidados e as preocupações que tinha no princípio da relação não são os mesmos que tenho hoje. Estou confortável, sinto-me completamente à vontade. Não tenho que assumir publicamente nada”, explicou em entrevista ao Sol.

Marco Delgado é o narrador do novo podcast do Observador, "Um Espião no Kremlin", que relata a ascensão de Vladimir Putin ao poder na Rússia

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

Continua a ter sonhos e ambições, como no primeiro dia. Neste momento, diz, é “bom ver o bom momento que a produção nacional está a viver em termos de séries” e à qual não quer ser alheio. Talvez ter mais oportunidades de fazer produções internacionais, diz, seja outro desejo. “Estamos num momento interessante e vivo, em que estamos mesmo a concorrer com outros países, com produções muito melhor orçamentadas, estamos a ir no caminho certo; prova disso mesmo é o sucesso da série ‘Rabo de Peixe’. Isto vai ser ótimo para a nossa indústria e estamos a mostrar que mesmo sem ovos conseguimos fazer omeletes muito bem feitas”, sublinha ao Observador.

Para já, está contente com os muitos desafios que lhe continuam a bater à porta. “Mas falta-me muita coisa.” Falta-lhe mais cinema, autores de teatro que ainda quer ler e quiçá vir a encenar, umas quantas personagens, pelo desafio que acarretam – “alguma delas vão chegar mais tarde, nomeadamente algumas personagens de Shakespeare”, explica. Não tem reservas para o futuro: “Gosto de arriscar, mas espero que, venha o que vier no futuro, que seja proveitoso e gratificante como foi até agora”.

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