Uma mulher prepara uma peça de caça trazida pelo marido para o jantar. Dias depois dá entrada numa clínica com sintomas gripais e morre a 11 de agosto com febre hemorrágica. Os rituais fúnebres tradicionais expuseram várias pessoas ao vírus do ébola com que a mulher estava infetada. Menos de um mês depois morreram 13 pessoas e 80 daquelas com quem contactou, direta ou indiretamente, foram colocadas sob vigilância médica. Na terça-feira passada já tinham morrido 31 pessoas, segundo o ministro da Saúde do país, Felix Kabange Numbi.
A história, relatada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), conta como o ébola se começou a espalhar na República Democrática do Congo. Esta situação não está diretamente relacionada com a da Guiné-Conacri, mas revela como se podem originar os surtos da doença – a ingestão de carne de caça contaminada, como morcegos (o principal reservatório do vírus) ou primatas (vítimas frequentes do vírus) – e como eles se espalham facilmente – os primeiros sintomas são comuns a várias outras doenças e os rituais de lavagem do morto expõe os familiares ao vírus.
Os rituais da morte que se realizam ao longo de vários dias implicam a lavagem do corpo potenciando o contágio dos familiares que contactam com os fluidos corporais do morto. O ébola transmite-se pelas secreções orgânicas, como suor, saliva, urina, sangue ou fluidos seminais e pode manter-se vivo pelo menos 24 horas depois de a pessoa morrer, diz ao Observador Jorge Atouguia, especialista em doenças infecciosas e medicina tropical.
A intervenção da ajuda humanitária e dos profissionais de saúde falhou sobretudo por não ter tido em consideração as tradições e costumes das populações. Quando as pessoas começaram a perceber que os doentes entravam nas clínicas moribundos e saiam já mortos e que as pessoas nos fatos brancos, que mais pareciam fantasmas, não deixavam que se realizassem os rituais fúnebres começaram a desconfiar das equipas de saúde e a esconder os mortos. O problema agravou-se.
Países como a Guiné-Conacri, Serra Leoa ou Libéria, onde a epidemia está “completamente descontrolada”, são muito frágeis do ponto de vista político e social e deveriam ter sido considerados os contextos antropológicos e sociológicos antes da intervenção das equipas médicas, refere Jorge Atouguia. Na Libéria, os padres dizem que o ébola é um castigo de Deus aos homossexuais e promovem missas, contrariando as recomendações de não juntar muitas pessoas num mesmo local. Ainda na Libéria há mortos abandonados nas ruas ou lançados ao rio, aumentando o perigo de contágio.
A própria Presidente da Libéria Ellen Johnson Sirleaf considera que a fé pode ajudar a resolver o problema. “Peço a todos os liberianos que façam três dias de jejum e oração nacionais para pedir a Deus que tenha misericórdia, nos perdoe os nossos pecados e nos ajude a curar a nossa terra.” Jejum num país onde as carências alimentares já são enormes não é a melhor solução para o problema. “Uma pessoa bem alimentada tem um sistema imunitário em melhores condições e tem maior probabilidade de sobreviver à doença”, diz ao Observador Ivo Saruga, diretor-adjunto do Departamento Internacional da Assistência Média Internacional (AMI).
Educar a população para a prevenção
Uma boa alimentação é uma das medidas de prevenção apontadas pelo enfermeiro Ivo Saruga, que passam pela sensibilização da população para o ébola, mas também para outras doenças. “É preciso alertar a população para o problema, mas ter o cuidado de não criar estigmatização, para não levar à violência.” A ideia é que as pessoas possam passar umas às outras boas práticas sobre prevenção: não comer carne de caça, lavar as mãos, não defecar ao ar livre e criar sistemas de saneamento básico. E, como referido, manter uma boa alimentação, o que se vai mostrar cada vez mais difícil. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) alerta que alimentos estão cada vez mais caros porque são cada vez mais escassos: há menos pessoas em condições de cultivar ou colher alimentos e as fronteiras com os outros países estão fechadas.
O encerramento das fronteiras não é suficiente para controlar a epidemia e torna ainda mais susceptível uma sociedade já fragilizada, nota Jorge Atouguia. “As fronteiras foram criadas pelos colonos, nada têm a ver com as populações que vivem na zona”, diz o médico dando como exemplo da ineficácia da medida o caso de um cidadão da Guiné-Conacri infetado que viajou para o Senegal, rompendo o cordão sanitário que pretendia conter a doença nos três países onde tinha sido identificada. Existem mais exemplos como este: um homem que fugiu de um centro de quarentena na Libéria e foi para um mercado à procura de comida ou um passageiro que levou o vírus da Libéria para a Nigéria. E ao contrário das expectativas iniciais, o surto na Nigéria não será facilmente controlado, segundo a revista Science.
“É preciso um regime de autoridade para controlar o problema”, afirma Jorge Atouguia. E não pode ser baseado apenas nas forças locais. “Neste momento todas as pessoas têm perto de si alguém que morreu com a doença. No círculo de família e de amigos há doença próxima.” E este problema aplica-se tanto às forças militares como aos profissionais de saúde. Os países afetados com este surto epidémico não têm recursos para enfrentarem o problema sozinhos, são precisos recursos externos, financeiros e humanos.
“O cenário é caótico: há descoordenação das equipas, duplicação de tarefas e hiatos na intervenção local”, alerta Ivo Saruga. Os sistemas de saúde dos países afetados estão em rotura e todos os cuidados de saúde estão debilitados, refere Jorge Atouguia. Com os recursos esgotados, pessoas que deem entrada com malária ou outras doenças tropicais podem não ter acesso aos cuidados adequados. Além disso, por precaução todas as pessoas que deem entrada com febres ou outros sintomas frequentes no ébola, são considerados como infetados com o ébola até prova em contrário.
A comunidade internacional não mostra interesse pelo problema
Apesar de a OMS ter anunciado um plano de ação que resolverá a epidemia em seis a nove meses, com um custo de 371 milhões de euros, os Médicos Sem Fronteiras acusam de inatividade os países exteriores a esta catástrofe. Ivo Saruga tem a mesma opinião. Num momento em que o número de casos continua a crescer exponencialmente e que a OMS declarou a epidemia do ébola como um problema mundial poucos fundos foram recolhidos – 86 milhões de dólares (cerca de 66 milhões de euros) doados para controlar o ébola contra 1.700 milhões de dólares (cerca de 1.300 milhões de euros) já encaminhados para a crise na Síria -, refere o enfermeiro, embora entenda que os problemas não são absolutamente comparáveis. “Há um forte desinteresse da comunidade internacional. Os países doadores têm outras prioridades.”
Números diferentes são apontados pela Comissão Europeia que disse, em comunicado de imprensa, já ter providenciado 147 milhões de euros desde março deste ano para ajudar os países afetados com o vírus – Guiné-Conacri, Serra Leoa, Libéria e Nigéria. Esta segunda-feira anunciou um financiamento adicional de cinco milhões de euros especificamente para a missão da União Africana – um plano de apoio para o surto de ébola na África Ocidental (Aseowa, na sigla em inglês). O plano estará em funcionamento durante os próximos seis meses, com sede na Libéria, e os objetivos são: dar aconselhamento as estruturas de coordenação dos vários países, fornecer meios médicos adicionais às equipas que já se encontram no terreno e criar condições para controlar e erradicar o ébola.
O surto que começou na Guiné-Conacri em dezembro passou incógnito até março. “Esta epidemia surgiu de uma forma inesperada e apanhou a Guiné-Conacri desprevenida. A doença tem sintomas idênticos a doenças endémicas naquelas regiões”, lembra Jorge Atouguia. “Quando começa um surto epidémico e não se tem nenhuma experiência anterior deste tipo de doenças, como aconteceu na Guiné-Conacri, é muito difícil estabelecer uma relação com o ébola.” Para o médico, o surto na República Democrática do Congo ficará rapidamente controlado porque o país já tem experiência a lidar com a doença.
“Há um tempo de incógnita sobre o que é a doença que é suficiente para se estabelecerem os primeiros contactos e as pessoas migrarem para outros locais, estabelecendo novos contactos”, refere o médico. É assim que se desencadeia um surto epidémico não contido, que atingiu rapidamente a Serra Leoa e a Libéria, e mais recentemente à Nigéria e o Senegal. Quanto maior o número de pessoas infetadas, maior o número de contactos (pessoas com quem o infetado interage, sejam familiares, amigos e médicos). Uma das maiores preocupações do médico neste momento é que o surto tenha chegado a outros países que, com receio das consequências ou por estarem sujeitos a um regime ditatorial, escolham não divulgar o problema.
A Guiné-Bissau está atenta à evolução da doença nos países com os quais faz fronteira: Guiné-Conacri e Senegal. Embora não tenha experiência em surtos de ébola, já teve um surto de cólera, que tem “traços semelhantes em termos de transmissão”, refere Ivo Saruga. As equipas médicas no país estão preparadas para identificar os sintomas da doença e intervir e a AMI tem uma equipa permanente no local, para esta e outras situações de emergência médica, com capacidade de alerta e disponibilidade de stocks e equipamentos. O enfermeiro refere que a Guiné-Bissau tem planos de contingência e equipas no terreno para verificar se os rumores sobre surtos são verdadeiros ou não.
Se o ébola chegar à Europa
Também os países da Europa ou da América do Norte estão preparados para lidar com a chegada de casos de ébola. Com as condições que os sistemas de saúde destes países têm, não se prevê que casos pontuais originem surtos descontrolados. Portugal tem três unidades de referência para o ébola – os hospitais de São João, no Porto, D. Estefânia e Curry Cabral, em Lisboa –, todos com condições de tratamento e de isolamento, em quartos de pressão negativa.
“O meu maior receio é em zonas do país que não são centrais”, diz Jorge Atouguia. O médico receia que os colegas não estejam tão atentos às questões relacionadas com a doença ou que não perguntem aos doentes onde estiveram. Com tantos portugueses a trabalhar em África é importante saber onde estiveram as pessoas quando chegam ao médico com febre. Outros profissionais de saúde, que não os médicos de medicina interna ou de cirurgia, também têm de manter-se alerta – um doente pode recorrer a um dentista porque tem um sangramento da gengiva (um dos sintomas do ébola) sem referir de onde veio. Jorge Atouguia incita os colegas de profissão a “pensarem tropical” e não apenas em relação a esta doença. Cabe também aos doentes informar os médicos dos locais onde estiveram antes.
É preciso lembrar também, que quanto melhor o estado de saúde inicial do doente e quanto melhores os cuidados de saúde que receba, maior a probabilidade de sobrevivência. O ébola não é 100% mortal, mas também não tem cura. “Não é possível tirar qualquer tipo de conclusão científica em relação às duas pessoas que sobreviveram nos Estados Unidos”, nota Jorge Atouguia. “E esta não é altura para se fazerem estudos clínicos com novos medicamentos. Nunca se podem fazer ensaios clínicos durante uma epidemia, porque não é possível fazer estudos comparativos.” Além disso, com uma quantidade tão pequena de medicamentos e vacinas disponíveis, quem poderia ter acesso a eles? É uma questão ética difícil de gerir, refere o médico.
Para finalizar, Jorge Atouguia deixa alguns alertas. Os homens, mesmo depois de curados, podem continuar a transmitir a doença durante cerca de sete semanas, porque o vírus se mantém vivo no esperma. Outra agravante do risco de contágio é o facto desta estirpe do vírus poder ter um período de incubação mais longo – 25 dias, em vez dos 21 normalmente referidos -, podendo haver contágio num período em que já se pensava estar livre da doença.
O ébola ataca outros primatas
O homem não é único animal a sofrer com os efeitos do ébola. Os morcegos, apesar de serem o principal vetor da doença, não apresentam sintomas, mas os primatas sim. “O vírus ébola é geralmente visto como tão letal para os grandes símios africanos como para os humanos”, disse ao Observador David Greer, responsável pelo Programa dos Grandes Primatas Africanos do World Wide Fund for Nature (WWF), no Ruanda. “A conservação dos primatas está assim sob sério risco nos locais onde o ébola é endémico.”
No caso dos humanos a ingestão da carne de morcego, primatas ou outros tipos de carne de caça, pode estar na origem do contágio. No caso dos primatas há partilha de espaço de repouso e de alimentação – os morcegos alimentam-se das mesmas frutas e podem contaminar os primatas, quer porque comem o mesmo pedaço de fruta, quer porque os primatas entram, involuntariamente, em contacto com as fezes dos morcegos. “Peter Walsh, especialista em grandes primatas e ébola, estimou em 2008 que cerca de um terço da população de gorilas da África Central assim como uma parcela significativa da população de chimpanzés morreram devido ao ébola”, refere David Greer.
Mas o ébola não é a única doença que os primatas partilham com os humanos, na lista aparecem o sarampo ou várias doenças respiratórias. “Além do ébola, os vírus respiratórios humanos mataram mais grandes primatas do que qualquer outra causa”, aponta o membro da WWF. Uma vacina que venha a ser criada para os humanos poderá também ser adaptada aos primatas, embora a forma de aplicação constitua uma dificuldade acrescida. Apesar da preocupação com o impacto que o ébola tem nas populações de gorilas e chimpanzés, David Greer espera que os fundos de conservação não sejam desviados. Investir no controlar da caça ilegal – um problema bem identificado, contra o qual sabem que medidas tomar e que efeitos têm essas medidas – é, para o conservacionista, mais importante do que aplicar esses fundos na investigação de uma vacina contra o ébola em primatas, cujo resultado e aplicabilidade é desconhecido.
Para a equipa que trabalha neste programa de conservação de gorilas e chimpanzés a educação da população é fundamental, tanto para proteger os primatas como para evitar que os humanos sejam contaminados com o vírus, mas os esforços de sensibilização nem sempre têm os efeitos desejados. Alertar a população de que poderia ser contaminada se consumisse carne de primatas trouxe dois problemas, conta David Greer: “Em primeiro lugar, a sensibilização foi liderada por nós, estrangeiros, o que deixou os locais desconfiados – eles são muitas vezes ensinados que são os estrangeiros brancos que trazem as doenças, às vezes intencionalmente. As perceções culturais tornam assim mais difíceis as negociações. Em segundo lugar, como dissemos que os grandes primatas é que transmitiam a doença, algumas vozes sugeriam que os erradicássemos para acabar com o problema.”
Mas eliminar todos os primatas não acaba com o problema. David Greer refere que o impacto das atividades humanas no ambiente tem potenciado o aparecimento de certas doenças como o ébola ou o antrax. Os danos causados nos ecossistemas não terão efeitos apenas sobre os primatas ou sobre a vida animal em geral, mas também sobre os humanos.