Muito se escreveu nos últimos dias sobre os testes de stress na banca da zona, cujos resultados foram divulgados no domingo. As atenções voltaram a virar-se, como em edições anteriores, para o número de chumbos, que bancos passaram e quais chumbaram, quantos bancos chumbaram “na realidade“, e quanto novo capital será necessário ir buscar ao mercado para reforçar capitais.
Mas estes testes de stress, e sobretudo a avaliação exaustiva aos balanços que lhes serviu de base, terão de ser mais do que um exercício avulso de impactos passageiros. A expectativa é a de que o exercício, um passo decisivo para o início da supervisão única associada à União Bancária, inspire mais confiança no sistema financeiro, estimulando o crédito e o crescimento económico. E isso passará, também, por atenuar a diferença de custos de financiamento das empresas do centro da zona euro e da chamada “periferia”.
Justifica-se que duas empresas, uma portuguesa e uma alemã, com o mesmo volume de negócios, os mesmos custos e a mesma dívida paguem juros diferentes quando obtêm financiamento no mercado e junto da banca? Seja ou não justificável, é o que tem acontecido nos últimos anos. E foi, em parte, por essa razão, que se criou a União Bancária na zona euro, para tentar acabar com a diferenciação entre os vários bancos e, a prazo, entre as empresas dos vários países da zona euro. Uma união que, pelo menos nos planos originais, assentava em três pilares: o mecanismo único de resolução, o mecanismo único de supervisão e o fundo de garantia de depósitos comum. Nesta fase, o terceiro pilar é um plano para o longo prazo e é nos dois primeiros que estão centrados os esforços dos líderes europeus.
A 4 de novembro, o BCE vai assumir a supervisão direta dos maiores bancos da zona euro. Em Portugal, um conjunto alargado de instituições financeiras passará a ter uma supervisão direta do BCE. No caso das instituições de menor importância para o sistema financeiro europeu, continuará a haver uma supervisão por parte das autoridades nacionais competentes – isto é, o Banco de Portugal – sob a supervisão geral do BCE. “Vai mudar tudo” na supervisão da banca europeia, disse ao Observador Nicolas Véron, co-fundador do “think tank” Bruegel, em Bruxelas. “Vai haver uma supervisão mais rigorosa, comparativamente com alguns dos atuais bancos centrais”, nota o especialista, acrescentando que “será uma supervisão mais europeia e menos nacional, o que levará a uma maior disciplina no mercado”.
No fundo, um dos principais objetivos será a padronização da supervisão. Os técnicos do Banco de Portugal ou do Banco de França terão de estar preparados para analisar a situação de um qualquer banco de Itália ou Finlândia, por hipótese. “O BCE vai poder usar o que aprendeu com os bancos num país e usar esse conhecimento em outro” e haverá uma “maior sensibilidade dos efeitos de cadeia, ou seja, das repercussões que os problemas num banco podem ter nos outros”, diz Christian Schulz, economista do Berenberg Bank em Londres, ao Observador. A avaliação à qualidade dos ativos de 130 bancos de zona euro, que nos meios financeiros ficou conhecida como a AQR (“asset quality review”) é o exercício que o BCE teria de fazer, como sempre explicou Mario Draghi, o presidente do banco central, antes de assumir a responsabilidade pela supervisão dos maiores bancos da zona euro.
A avaliação à qualidade dos ativos (e os testes de stress associados), que envolveu mais de seis mil técnicos ao longo de cerca de um ano, ambiciona ser, no fundo, um “início limpo” para a banca da zona euro e para o BCE no papel de supervisor, na figura do Mecanismo Único de Supervisão liderado por Danièle Nouy. É claro que, sobretudo tendo em conta que a “fotografia” que o banco central tirou aos balanços dos bancos foi a 31 de dezembro de 2013, houve analistas que atribuíram à realização da AQR a razão pela qual a concessão de crédito na zona euro estava a abrandar no final do ano de 2013. E mesmo em 2014 os constrangimentos continuaram e houve especialistas a criticarem o exercício por estar a inibir os bancos.
Em especial até março de 2014, altura em que foi publicada a metodologia da análise à qualidade dos ativos, alguns bancos poderão ter assumido uma posição mais conservadora, para evitar “ficar mal na fotografia”. Além disso, o próprio investimento em ações da banca europeia terá estado constrangido, com receios quanto a eventuais surpresas negativas que pudessem surgir nos resultados. Ninguém quer investir em ações de um banco cujos rácios de capital se revelem, com o teste de stress, demasiado baixos e, portanto, obrigando a um aumento de capital que dilua o valor do seu investimento.
Agora, com o exercício concluído, “termina um período de stress e incerteza para os bancos da zona euro“, diz Christian Schulz, economista do Berenberg Bank, em nota enviada aos clientes a que o Observador teve acesso. “Antecipamos que os bancos vão agora recentrar os seus recursos na gestão do negócio, o que deverá gradualmente melhorar a disponibilidade de crédito onde ela estava condicionada”, acrescenta o especialista. Será que, a confirmar-se, isso terá um impacto significativo nas taxas de crescimento das economias? “O impacto no próximo ano será pequeno (entre 0,1 pontos percentuais e 0,2 pontos percentuais no produto interno bruto na zona euro) mas nos países da ‘periferia’, onde a disponibilidade de crédito tem estado condicionada, o impacto pode ser maior“, acrescenta o economista, lembrando que “o BCE está a disponibilizar financiamento em condições generosas para os bancos que quiserem conceder novo crédito”.
Os economistas chamam-lhe “fragmentação financeira”. Verifica-se quando há discrepâncias na perceção de risco e nos custos de financiamento das empresas que partilham um mesmo espaço monetário, neste caso a zona euro. É certo que as garantias que o BCE fez quanto à integridade da união monetária fizeram diminuir a diferença entre os juros pagos pelos vários Estados – ou seja, estreitou-se a diferença entre o que paga a República Portuguesa e o governo federal alemão para se financiar – mas isso não tem acontecido com a mesma magnitude nos custos de financiamento das empresas. Segundo dados do BCE, as taxas de juro cobradas a empresas de pequena e média dimensão em Portugal continuam próximas de 5%, as empresas espanholas e italianas pagam, em média, juros na ordem de 4% e os custos de financiamento das empresas alemãs bem menos de 3%.
Enquanto se mantiver esta “fragmentação financeira”, dificilmente a zona euro poderá ter outra coisa que não a “recuperação moderada e desnivelada” que há longos meses o BCE identifica na zona euro. Isto apesar de todo o debate do “ovo e a galinha” sobre se os bancos não concedem mais crédito porque não há procura por parte das empresas ou, por outro lado, se isso acontece porque os bancos estão inibidos de conceder mais crédito. A descida na concessão de crédito poderá estar a acontecer por várias razões, entre as quais o efeito inibidor da AQR e a falta de confiança entre os bancos do sistema. O certo é que não está a ser suficiente o BCE reduzir as taxas de juro para mínimos históricos e aceitar cada vez mais ativos como garantia para a concessão de nova liquidez: a concessão de crédito ao setor privado na zona euro (famílias e empresas) caiu pelo 29º mês consecutivo em setembro, segundo dados do BCE.
É no problema da falta confiança que quis incidir a Avaliação Completa, ou “Comprehensive Assessment”, que o BCE acaba de realizar, que englobou a avaliação à qualidade dos ativos e o teste de stress. Além da informação sobre quem não cumpre os rácios de capital mínimos no cenário de base e no cenário adverso testados pelo BCE, os investidores ganharam um olhar privilegiado a um conjunto de informações relevantes sobre cada um dos 130 bancos analisados, desde a exposição à dívida pública e ao mercado imobiliário até ao nível de provisões. Existindo informação que o BCE pretendeu ser detalhada e padronizada, poderá existir mais confiança entre os bancos e, por outro lado, mais confiança dos investidores em relação aos vários bancos da zona euro? Poderá, agora, existir um maior dinamismo na concessão de crédito e uma maior convergência dos custos de financiamento entre as empresas dos vários países?
“A conclusão do exercício era uma condição essencial mas não suficiente para uma recuperação generalizada na economia“, responde Christian Schulz, do Berenberg Bank. “No curto prazo, o abrandamento da economia alemã deverá trazer mais dados económicos pouco animadores. Mas a conclusão do teste [do BCE] é mais uma razão para estarmos otimistas em relação ao crescimento da zona euro após a fraqueza recente”. Outras razões? “Mais estímulos monetários, a descida do euro [que tende a tornar as exportadoras mais competitivas], a queda do preço do petróleo e um crescimento da procura a nível global”, acredita o economista alemão.
Menos otimista está a agência de “rating” S&P. Reconhece que as medidas que os bancos tomaram para reforçar os capitais antes e durante a AQR “foram um dos grandes benefícios do exercício”. Mas “os testes à banca, por si só, não irão resolver todos os problemas” da zona euro. “O peso da dívida elevada nos setores público e privado e a baixa competitividade internacional das economias persiste”, receia a agência de “rating” norte-americana.
Ainda assim, o economista Christian Schulz diz que as medidas anunciadas pelo BCE em junho e a Avaliação Completa poderão contribuir para uma aproximação dos custos de financiamento das empresas do centro da zona euro e da “periferia”. Qual é a ponta que falta? “Os governos não devem inverter os esforços já realizados na consolidação orçamental”, repete Mario Draghi a cada conferência de imprensa, uma frase a que recentemente foi adicionada uma segunda parte: “sem prejuízo de que seja utilizada qualquer margem de manobra para tornar as políticas orçamentais mais amigas do crescimento”.