Tinha 45 anos, um marido e três filhos. A conta para uma casa cheia de homens. Não queria esperar mais tempo. Nem ter “uma criança muito crescida”. O desejo perseguia-a há anos: sempre quisera “uma menina”. Estava na hora. Os filhos propuseram, o marido concordou, a papelada seguiu e os telefonemas trocaram-se. O último levou Ana Pio até um refúgio em Faro onde estavam “institucionalizadas duas crianças de cor”, há quatro anos à espera de uma família. Foi, falou, “apressou o processo” e, um mês depois, estava a voltar para Ourém com Nelson, de quatro anos, e Diana, com seis. “Não tem muito corpo nem é robusta, mas tem um sprint que ninguém a consegue apanhar”, descreve-nos, com a minúcia de quem mais parece ter na análise de jogadoras a profissão diária.
Sintoma de uma “mãe babada” com as façanhas da filha que tornou sua. Ana Pio é médica, tem hoje 58 anos e coordena a Unidade de Cuidados de Saúde de Ourém. “Todo o concelho está debaixo da minha alçada”, brinca, com o à vontade de quem mistura um “fixe” ou um “iá” pelo meio da conversa com o jornalista. O mesmo que tem ao falar de Diana, a menina que, em 2001, aterrou numa “casa de desportistas” — os três filhos biológicos de Ana jogavam hóquei em patins. “Um deles até foi para o Benfica”, revela, para sublinhar o facto de Diana ter ido “por arrasto” na corrente. Na tal maré que lhe deu uma bola. “Foi através de uma amiga que a Diana começou a ir aos treinos do Ouriense. Tinha aí uns 12 anos na altura”, conta, sem deixar que o sorriso lhe fuja da cara, no interior do seu consultório em Gondmaria, a poucos quilómetros de Ourém.
Na altura aterrou nos iniciados. E, tal como nos recreios da escola, começou a lutar com os rapazes pela atenção da bola. Meses depois já estava nas seniores, entre as graúdas, feita “miúda a correr com mulheres de 20 e tal”, retrata Ana. Hoje vai com 19 anos, é avançada, bicampeã nacional pelo Clube Atlético Ouriense e já perdeu a conta às vezes que a seleção de futebol feminino a chamou. “Acho-a uma excelente jogadora, oiço isto também da boca de outros. Joga com bola e sem bola, é muito inteligente e tem boa visão de jogo. Consegue meter a bola no sítio correto”, descreve a “mãe do coração”. Sente-se “realizada” e “orgulhosa” com o que Diana já alcançou com uma bola nos pés. E não poupa palavras para o garantir. Mas também pouco faz para evitar uma confissão: “Embora o meu marido e filhos achassem muita graça, eu ao início não achava piada nenhuma ao facto de ela ser maria-rapaz.”
Culpa de Diana e do futebol, parceiros numa relação que fez Ana Pio reparar cedo no que aí vinha. “Na primária já jogava às vezes no intervalo, lá com os rapazes”, recorda a jogadora, ao falar dos tempos em que o irmão mais novo acabaria por ir bater à porta do Ouriense, a equipa ali da terra. “Como eu gostava de ir também, perguntei aos meus pais se podia. Eles não acharam muita piada, mas disseram que sim”, confirma quem hoje é responsável por recambiar para a baliza as bolas que lhe chegam aos pés ou à cabeça. É sempre por lá que anda, perto da grande área, a correr e a pedir a bola, no treino noturno que o Observador foi espreitar a Ourém. A conversa, essa, só viria depois, por telefone. Maldita pressa. E distância, pois assim que a cerca de hora e meia de prática terminou, Diana já tinha outra correria à sua espera — daí a pouco mais de 30 minutos arrancaria da estação, às 23h30, um comboio com destino posto em Coimbra.
É lá, na universidade, que vai no segundo ano a estudar Ciências Farmacêuticas. É de Coimbra que, três vezes por semana, “sempre que os horários permitem”, vem ao final da tarde e para onde volta à noite, após o treino a deixar. São quase 100 quilómetros de viagem. É complicado, admite Diana, mas “não é muito difícil” e “quem quer sempre consegue”. Palavra de quem já fez o suficiente para o provar. A mãe não a deixa mentir. “Nunca teve más notas”, assegura Ana, contente por, o ano passado, Diana não ter chumbado a nenhuma cadeira apesar de “mal ter ido” às aulas. Culpa do sucesso noutro campo, feito de relva, que a fez passar a época a ser convocada para a seleção nacional sub-19. Ninguém disse que era fácil, e não o é. Se Diana vem de Coimbra, há quem venha de Fátima, de Lisboa, Rio Maior e até da Guarda para treinar, correr e praticar a arte que já valeu dois campeonatos nacionais e a qualificação — inédita de uma equipa portuguesa –, para a fase a eliminar (dezasseis avos de final) da Liga dos Campeões. E todas, sem exceção, fazem-no sem receber um salário em troca. Aqui ninguém joga pelo dinheiro.
Há miúdas que são da terra e que “só andam ali para jogar”. Mas há outras que vêm de Coimbra, Fátima ou até Lisboa, como já aconteceu, para não faltarem aos treinos da equipa. “Não é muito difícil, quem quer sempre consegue. Mas claro que é complicado”, admite Diana Silva.
Mas não parece. Mesmo nada. E o treino mostra-o. Às coisas da praxe — a palestra de alguns minutos, a corrida à volta do campo e os alongamentos dos músculos — seguem-se os exercícios com bola. Aí, a prioridade era só uma: intensidade. As coisas queriam-se feitas depressa e bem. As 21 jogadoras não desiludem e a bola sofre por isso: os pés batem-lhe com força, decididos e com a intenção de a lançarem rápido e a rolar pela relva artificial. A conversa, a que interessa, também há em fartura. “Tens polícia”, “tens pressão” ou “há cobertura” misturam-se com um ou outro palavrão, que também faz parte. Tudo é a sério. Uma prova? Num exercício de posse de bola, por cada vez que uma equipa ficava sem a companhia do bem redondo e mais precioso, as jogadoras deitavam-se no relvado e faziam abdominais ou flexões. E a dar ordens no meio de tudo isto estavam os 27 anos de Marco Ramos.
O treinador chegou em fevereiro, quando a época passada já ia a mais de meio. E mesmo com a vontade, trabalho e dedicação de todas, Marco sabe que em Ourém, por enquanto, o futebol feminino não se livra de ser apenas um passatempo levado mais a sério. Há “miúdas” de idades diferentes — a mais nova tem 15 — e objetivos distintos. “Umas querem chegar à seleção, outras pretendem ser profissionais e chegarem a um clube estrangeiros, outras, por morarem perto ou serem da terra, só querem andar aqui a jogar”, enumera, tricotando pelo xadrez de mentalidades que, por vezes, nota na equipa. “Temos umas que desejam isto a sério, com um ritmo acelerado. Outras, com 15 ou 16 anos, têm a mãe em casa à espera, enquanto outras têm o marido ou o filho. E isto por vezes é difícil de gerir”, desabafa, no final de mais um treino onde, apesar de tudo, o comprometimento parecia estar distribuído por todas na mesma dose.
O segredo, garante, está na “exigência, responsabilidade e respeito pelo trabalho”. E, claro, está também nos pontapés que todas dão para o mesmo lado. “Elas são miúdas ambiciosas, querem sempre mais”, explica, afirmando-se crente na teoria de “quando se quer e acredita é muito mais fácil chegar ao êxito”. E conseguiram-no. Quando Marco chegou ao Ouriense, em fevereiro, a equipa estava no terceiro lugar, a nove pontos do cume — e foi lá que terminaram, a espetar a bandeira do bicampeonato nacional. Depois ainda venceram a Taça de Portugal, no Jamor.
Agora, a 8 de outubro, vão jogar a primeira mão dos dezasseis avos de final da Liga dos Campeões (contra as dinamarquesas do Fortuna Hjørring). “Sabíamos que havia uma oportunidade que tínhamos de aproveitar. E só apareceu um cheirinho na comunicação social”, lamenta, embalado pelo hábito de, com muito ou pouco sucesso, a atenção não se virar muito para o futebol feminino. “Quando fomos campeões, claro, isto saiu na imprensa. Ganhámos a Taça de Portugal, aconteceu o mesmo, mas nada de especial, uma coisinha pequena”, diz, enquanto dá ordem ao polegar e indicador que formem um espaço mínimo, a ilustrar a parca atenção que na altura detetou nas páginas dos jornais.
E por Ourém, o que se ouve?
Bem no centro de Ourém, no largo com quartel de bombeiros, restaurantes e farmácias, a atenção existe. Mas também é pouca. Quando a manhã já fechava a pestana, António Perdigão, de 72 anos, estava na esplanada de um café, sentado, a folhear um jornal que lhe fazia companhia. Tem a desculpa de o futebol “não ser muito” consigo. Sabe que no Ouriense há uma equipa feminina bicampeã nacional, e pouco mais. “E eu até represento um bocadinho o sentir geral das pessoas, e não houve um entusiasmo aí por além”, suspeita, com a experiência de quem reside na cidade há quase 20 anos. Foi António, porém, quem nos falou de “uma médica, amiga da mulher, que há uns anos adotou duas crianças e que uma delas é hoje a melhor jogadora da equipa”. A pista veio dele.
Marco Ramos, treinador da equipa de futebol feminino do Ouriense, queixa-se de quem só houve “um cheirinho na comunicação social” de cada vez que o clube conquistou um título.
No alto da cidade, onde o castelo vigia a terra, também se sabe o que aconteceu no estádio que, lá em baixo, faz parte da paisagem. “Sei que são campeãs, mas nunca lá fui ver um jogo delas”, revela Josefina Silva, proprietária há 33 dos seus 78 anos de um café onde “a Amália e o José Hermano Saraiva já estiveram” a lanchar. “Estou velha, acha que vou lá a baixo para ver mais futebol? Já me basta o que dá na televisão”, desabafa, antes de, mais a sério, explicar que até lá iria “se tivesse alguma neta ou sobrinha a jogar” na equipa. O filho, José, também admite não prestar muita atenção, apesar de Ana Valinho, uma das capitãs de equipa do Ouriense, ter sido professora de ginástica da filha, o ano passado. “Mas a malta ficou contente com o sucesso, já que os homens não fazem nada”, garante, lembrando, como prova, os “os 12 autocarros” que, em junho, levaram pessoas até ao Jamor para apoiarem a equipa na final da Taça de Portugal.
Em dois anos, um par de títulos nacionais, uma Taça de Portugal e convivência com as melhores da Europa. Ourém é uma terra de campeãs e de sucesso. Mas houve ou não mais olhos curiosos a acompanharam a equipa? Quem lá joga desde que tudo começou, diz que sim. “Quando ganhámos coisas importantes as pessoas começaram a reparar mais. Agora até nos dão os parabéns e vão-nos reconhecendo”, realça Mafalda Neves, a capitã que, há oito anos, quando o futebol feminino renasceu no Ouriense, foi das primeiras a calçar as chuteiras e alinhar na aventura. Ela e a irmã, Ana Cláudia, têm a experiência de saber como tudo foi crescendo e aparecendo.
E quando se limpam os cantos à memória, ela diz que o futebol é coisa que sempre andou por li. “Desde que me lembro que gosto de jogar. Mesmo. Nos intervalos da escola havia sempre aqueles dez minutinhos para jogar à bola com os rapazes”, diz Mafalda, hoje já casada, com uma filha e 31 anos na idade. Os pontapés foram-se dando, as bolas foram rolando e o talento sobressaindo. “Jogava na escola, quando havia os interturmas e o desporto escolar, talvez desde os 13 anos. Para aqui vim com 17, e tu…”, recorda Ana, soltando uma deixa para a irmã mais velha pegar. “E eu apareci com 23”. E tudo começou por ser uma brincadeira. “Na altura, éramos umas 40 aqui, um exagero”, arrancou Mafalda. “Já tinha havido futebol feminino, depois acabou. E há oito anos voltaram a abrir inscrições, nós viemos, e hoje somos as veteranas da casa”, brincou Ana Cláudia, hoje com 25 anos.
As irmãs, as duas loiras, estão na equipa desde o início. Se há veteranas, se há tochas a carregarem o exemplo, são elas que o fazem. E por isso são elas que mais coisas terão visto a mudar. “Agora e no ano passado começámos a encher a casa, talvez até mais do que os próprios seniores [masculinos], e as pessoas já estão connosco”, congratula Ana, focando-se no presente antes de, à boleia de uns risos, Mafalda ir buscar as peripécias do passado. “No início estávamos felizes da vida, mas eram só grandes derrotas”, desvendou. Ao início era assim. E até Ana Pio se lembra: “Levavam 15-0, grandes cabazadas, até que o presidente atual investiu na equipa. Aí contratou o treinador [Mauro Moderno, com quem a equipa venceu o primeiro campeonato, na época passada] e a partir daí começaram a ter este percurso.”
Não foi fácil. Mas a aposta de João Santos, o presidente, estava no futebol feminino. Era nele que via uma oportunidade de “fazer algo diferente” e “achava estranho” como nunca, jamais, ninguém apostara nas mulheres da terra. E “provavelmente” até lhe chamaram maluco: na altura, a equipa “nunca tinha vencido um jogo oficial”. Pouco importava. E não importou. “Havia um grande potencial para se formar uma equipa a sério”, recorda, enquanto assiste ao treino e vê os frutos que caíram da aposta que o clube fez. E continuará a fazer. O objetivo, garante, passa agora por montar “um projeto de nível internacional” para ver o Ouriense “bater-se de igual para igual com as melhores” equipas da Europa — e, talvez “com um pouco de matreirice, enganar uma ou outra”.
Fácil, lá está, nunca será. Mesmo com as vitórias, os títulos e o sucesso, é difícil segurar uma equipa ganhadora num concelho com cerca de 40 mil pessoas e “numa cidade com sete ou oito mil”, lembra o presidente. Umas vêm de longe, outras estudam e várias trabalham. E depois há quem sirva para mostrar que, no meio de tudo isto, o azar, por vezes, lembra-se de complicar as coisas. Francisca Homem é um exemplo. Há dois anos, num jogo domingueiro, estava na baliza, fez uma defesa, levou uma pancada no joelho e “ele torceu para fora”. Aguentou. No dia seguinte levou outra pancada, fez uma rotura do menisco e “nunca mais [conseguiu] fazer nada”, lamenta. Isto num treino, na segunda vez que, com 19 anos, era chamada à seleção nacional.
Isto quando a baliza surgiu por acaso. Francisca começou a jogar aos 13 anos. Escolheu ser avançada. Um dia, porém, a guarda-redes do Ouriense desapareceu. “Já nem me lembro se foi por causa de uma lesão ou se decidiu ir embora”, duvida, ao falar do tempo em que, uma a uma, todas as jogadoras meteram umas luvas nas mãos e mostraram o que valiam na baliza. “Até gostei daquilo, gostaram de mim, e acabei por ficar”, contou, ao falar do início da aventura de parar as bolas rematadas por outras.
Até que o corpo cedeu. Na primeira época em que o Ouriense meteu as mãos no título nacional, Francisca ainda tentou. Fez a pré-época, com “trabalho específico”, mas sempre que tentava “um treino mais puxado” o joelho dizia-lhe para ficar quieta. Contudo, ainda chegou para ser campeã. “Mesmo lesionada, o treinador pôs-me a jogar nos primeiros dois minutos do último jogo”, diz, sorridente, a mostrar tantos dentes quanto os que desvendou ao recordar os tempos em que a equipa “andava nas distritais, nos campos pelados” e a pular em “derrota atrás de derrota”. Hoje tenta ajudar no que pode. Na fase de grupos da Liga dos Campeões, por exemplo, serviu de diretor e tratou dos “equipamentos, das águas, dos materiais e da ligação entre elas”, as jogadoras, e o treinador.
Agora resta-lhe apoiar. Torcer para que nada dependa do azar. Ou até da sorte. “Ninguém a teve aqui: tudo isto foi fruto do trabalho e do sofrimento”, resume Marco, o treinador, ciente de que hoje dá ordens a uma equipa “pensada com calma” e “para vencer no longo e não no curto-prazo”. Toda a gente, defende, “acreditou que era possível” ter sucesso e “fez por isso”. Agora, diz ele, o presidente e as jogadoras, só falta o resto — mudar a mentalidade e fazer mais pelo futebol feminino. “Desde treinadores, diretores, clubes, federação e imprensa, todos temos de melhorar”, defende Marco Ramos, antes de pegar no primeiro exemplo que lhe vem à cabeça. “O campeonato feminino arranca em setembro. Ou seja, a pré-época é em agosto. Mas nesse mês há estágio da seleção e elas vão para lá, num mês que é importante para forma a identidade de uma equipa”, lamenta.
O mesmo fez João Santos, o presidente, o homem do leme que anda em busca de um patrocinador que, a pouco e pouco, lhe permita “ajudar algumas jogadoras”. Ou melhor, a pagar um ordenado, porque ajudas já há várias — e cobrem os custos de quem vem de longe ou “tem uma deslocação” ou “despesa extra para fazer”, quando a faculdade ou a barriga vazia a isso obrigam. Tudo enquanto espera por uma “visão concertada” para o futebol feminino, entre a federação e os clubes. Que não passará por trazer o Benfica, Sporting ou FC Porto para a modalidade, “como alguns dizem”, pois isso “só vai fazer com que venham buscar jogadoras ao Ouriense” e a outros clubes que “fazem muito com pouco” — como o Albergaria, o Futebol Benfica (‘Fófó’) ou o A-dos-Francos.
Mas nenhum fez o que se conseguiu cozinhar em Ourém. “Se fosse um treinador no futebol masculino, não fazia mais nada para o resto da vida: tinha capas, tinha destaque, tinha Chelsea, Real Madrid e tudo. Nem o Mourinho fez isto, ganhar tudo em quatro meses”, desabafou Marco Ramos. Enquanto tudo isso não chega, na bancada estará Ana Pio, a médica e mãe babada, a “mandar uns berros valentes” ou a recorrer ao “megafone ou à vuvuzela” quando a voz lhe falhar. Afinal, garante, já são “todas [suas] filhas”. Com adeptas assim, são precisas mais recompensas?