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Palomares. O risco tóxico do maior acidente nuclear da Guerra Fria, a 600 quilómetros da fronteira com Portugal, que continua por resolver

Uma colisão entre dois aviões em pleno voo. Quatro ogivas nucleares a bordo e uma fuga de plutónio que contaminou milhares de hectares. 60 anos depois, o lixo continua por limpar em Palomares, Espanha

“Broken arrow”, ou seta quebrada, na tradução para português. O nome de código usado pelos militares norte-americanos que é sinónimo de acidente nuclear. E de problemas sérios, como o que aconteceu há quase 60 anos em Palomares, uma vila do sul de Espanha, quando dois aviões das forças norte-americanas — um dos quais carregado com quatro ogivas nucleares de plutónio — embateram um no outro. Duas ogivas ficaram intactas. As outras duas espalharam cerca de 50 quilos daquele elemento “extremamente radiotóxico” por dezenas de milhares de metros cúbicos de solo, com riscos extremamente cancerígenos para o ser humano. Passadas quase seis décadas, continuam por remover 50 mil metros cúbicos de solos contaminados daquela zona, a pouco menos de 600 quilómetros de distância da fronteira com Portugal, na sequência daquele que foi considerado o maior acidente nuclear durante a Guerra Fria.

Madrid tenta agora reavivar um acordo estabelecido há oito anos (e nunca cumprido) com os Estados Unidos — país responsável pela contaminação dos terrenos, depois da colisão entre o KC-135 e o B-52 (que transportava as ogivas nucleares), durante uma operação de reabastecimento em pleno voo. Mas os calendários políticos dos dois lados do Atlântico, e o imbróglio jurídico à volta da classificação dos terrenos, faz crescer o receio de que a situação se arraste por tempo indeterminado. O diário El País recordava esta segunda-feira o acidente que esteve na origem da contaminação dos solos, naquela manhã de 17 de janeiro de 1966, e dava novos detalhes sobre a intenção, no Palácio de Moncloa, de ver concretizado um acordo informal com o governo norte-americano para a remoção daquelas terras radioativas.

Esquema do acidente de Palomares, a 17 de janeiro de 1966, recolhido pelo El País de um relatório de 1975 da Agência de Defesa Nuclear dos EUA

Logo após o acidente, a ditadura de Franco iniciou uma operação de descontaminação do terreno, com o apoio de algumas centenas de militares norte-americanos e a intervenção de funcionários da Junta de Energia de Espanha — estava em marcha a operação para resolver o problema daquela “seta quebrada”. Ao mesmo tempo, era posta em marcha uma operação de silenciamento da real dimensão e das possíveis consequências que o acidente poderia gerar.

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Apenas dois meses mais tarde, o ministro franquista Manuel Fraga era fotografado a tomar banho na praia de Palomares, num gesto que pretendia transmitir à população local um sinal de tranquilidade e a garantia de que aquele pesadelo nuclear estava resolvido. Palomares poderia ser considerado, a partir daquele momento, um local seguro para viver — de tal forma que um ministro do governo espanhol se banhava de forma descontraída naquelas águas mediterrâneas. Aos habitantes de Palomares e Villaricos (Almeria), duas localidades a cinco quilómetros de distância uma da outra, ambas afetadas pelo acidente, o governo de Franco e a administração norte-americana distribuíram indemnizações compensatórias e um certificado que atestava a descontaminação dos solos: com 900 certificados entregues, e depois de retirados 4.810 bidões com 242 litros de material radioativo cada, o incidente estaria resolvido.

Só que não estava. Foi isso que se percebeu em 2007, quando uma série de análises realizadas nos mesmos terrenos que foram alvo de uma primeira intervenção 40 anos antes revelaram a existência dos tais 50 mil metros cúbicos de solos contaminados.

Um risco tóxico que vive “centenas de milhares de anos”

Durante anos, depois de 1966, os habitantes de Palomares, Cuevas de Almanzora e Vera — todas próximas do local onde foi derramado o material radioativo — fizeram excursões regulares à capital. “Durante anos, Espanha manteve programas de controlo de saúde da população e as populações iam a Madrid fazer análises para perceber se tinham sido contaminadas”, recorda ao Observador Fernando Carvalho, investigador do Instituto Superior Técnico na área da proteção e monitorização radiológica do ambiente.

Os EUA enviaram para Palomares militares e equipamentos para primeira a busca das ogivas e operação de remoção dos solos contaminados

Aqueles resíduos libertados em Palomares podem ter “consequências graves para os tecidos biológicos e, uma vez que sejam inaladas ou ingeridas partículas, têm um efeito muito, muito grande na saúde”, contextualiza o especialista em materiais radioativos, que entre 2000 e 2001 chefiou a missão portuguesa de descontaminação de urânio empobrecido de partes do território do Kosovo, depois da guerra dos balcãs.

Ao longo das últimas décadas, “não foram detetados” números anómalos de pessoas no sul de Espanha que tivessem adoecido por efeito dos solos contaminados com que conviviam lado a lado. Mas o risco continua lá.

Parte da explicação para que não tenha sido registado um impacto na saúde das populações locais pode passar pelo facto de aquela zona ter sido rapidamente delimitada com uma rede de metal à volta de toda a área contaminada. “Área restrita — Proibida a passagem — Infratores serão responsabilizados”, lê-se nas placas colocadas na cerca verde que ainda hoje rodeia os terrenos tóxicos e onde se lêem as referências ao Ministério da Economia, Indústria e Concorrência e ao Centro de Investigações Energéticas, Meio Ambiente e Tecnologia”. Essa barreira impediu o acesso livre a toda aquela área, mas há outra parte da explicação para que eventuais consequências mais graves e generalizadas tivessem sido travadas: e está relacionada com a forma como, depois de libertado de forma acidental, o plutónio se instala no solo e não se dispersa pelo ar.

Ter aviões carregados de ogivas com este elemento radioativo a circular pelas várias bases norte-americanas, a meio do século passado, não era a situação mais improvável. Em plena Guerra Fria, os Estados Unidos temiam um ataque nuclear por parte da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e, de forma preventiva, faziam movimentar as suas próprias ogivas, na eventualidade de a tensão latente entre as duas potências se materializar num ataque soviético que obrigasse a uma resposta de Washington.

No livro “A História Secreta das Bombas de Palomares” (ed. Crítica), o professor universitário Rafael Moreno Izquierdo detalhava, tanto quanto possível, como as duas aeronaves colidiram em pleno voo quando sobrevoavam a costa mediterrânea de Espanha. O B-52, conta Moreno Izquierdo, tinha partido de “algum local do Mediterrâneo oriental” em direção à base aérea da Carolina do Norte, nos Estados Unidos. Quando voavam a mais de 9.300 metros de altitude, e no momento em que o cargueiro se aproximava do KC-135, para injetar 110 mil litros de combustível no bombardeiro, algo falhou. “Existe um protocolo muito rigoroso para o reabastecimento. Se o operador [da mangueira de abastecimento] considera que nos estamos a aproximar demasiado e que a operação pode ser perigosa, avisa: ‘Abortar!’ Mas não houve qualquer aviso, não vimos nada de anormal até que, de repente… tudo parecia um inferno”, conta Larry G. Messinger, um piloto veterano da Segunda Guerra Mundial e que seguia a bordo do bombardeiro.

A mangueira usada no reabastecimento perfurou a fuselagem do KC-135, destruindo uma parte estrutural do avião. A asa esquerda separou-se do resto do aparelho e o bombardeiro explodiu no ar. Alguns metros acima, o B-52 incendiou e começou a perder rapidamente altitude. A 500 metros do solo, também este avião explodiu. “Onze homens estiveram envolvidos na colisão, quatro como membros da tripulação do KC-135 e sete no B-52”, refere o “Relatório Sumário de Palomares“, um documento sobre o acidente produzido em 1975 pela Agência Nuclear de Defesa norte-americana. Apenas quatro sobreviveram, todos membros da tripulação do B-52.

Na colisão entre os dois aparelhos, duas das quatro ogivas foram danificadas. Se tivessem sido detonadas, a força de energia libertada “teria provocado um incidente semelhante a Hiroshima e Nagasaki”, na Segunda Guerra Mundial. “Só que com uma dimensão ainda maior, porque tudo o que foi construído depois desse momento tem uma potência muito maior”, explica ao Observador Fernando Carvalho, especialista em materiais radioativos e investigador do Instituto Superior Técnico. Se tal tivesse acontecido, uma parte substancial do sul de Espanha (e Portugal e, possivelmente, do norte de África) teria sido arrasada pela força de bombas com 70 vezes mais potência que as ogivas libertadas sobre as duas cidades japonesas, em agosto de 1945. Teria sido uma catástrofe sem precedentes na história.

Mas nenhuma das quatro ogivas foi detonada. Aliás, essa nunca seria uma consequência possível do embate no solo ou na água. “Desencadear a explosão de material nuclear é muito complicado, seria sempre necessária uma ação eletrónica, não basta o impacto para que a detonação aconteça”, garante o mesmo especialista. Em vez disso, as duas bombas que sofreram ruturas com o embate libertaram plutónio para aquela região de terrenos arenosos, próxima do Mediterrâneo. “O plutónio, no seu estado sólido, é uma poeira finíssima”, explica Fernando Carvalho. “Aquela camada de poeira, depois de libertada, misturou-se com as areias e com o restante solo” e por ali permaneceu, sem se espalhar pelo ar. “O plutónio que está no solo é emissor de radiação alfa. Alguns emissores têm um tempo de vida relativamente curto, isto é, de cerca de 400 anos; mas há outros com uma vida que se prolonga por centenas de milhares de anos. E está tudo misturado ali, entre a areia e o restante solo.” Não fazer nada e esperar que o tempo elimine aquelas partículas não é, por isso, solução.

O acordo informal que nunca passou de um aperto de mão

Há cinco décadas que a população de Palomares lida com a mancha nuclear provocada pelo acidente. “As pessoas estão cansadas, há muito que os terrenos deviam ter sido limpos e o problema é recorrente, é repetitivo”, desabafa ao Observador fonte da Câmara Municipal de Cuevas del Almanzora. O presidente da autarquia, o socialista Antonio Fernandéz — que não esteve disponível para falar sobre o assunto —, dizia esta segunda-feira ao El País que “o problema não é a limpeza da zona, mas o local para onde serão transportadas as terras contaminadas”.

E isso leva-nos de volta aos Estados Unidos e a um acordo informal com oito anos que, agora, Espanha tenta fazer cumprir antes de o calendário político tornar o problema ainda mais difícil de gerir.

Durante anos, Estados Unidos e Espanha mantiveram-se em silêncio sobre os verdadeiros contornos daquele que foi o maior acidente nuclear durante a Guerra Fria

Nesse ano de 2015, e no âmbito de uma visita do então secretário de Estado John Kerry — atual assessor do governo de Joe Biden para as questões climáticas —, Madrid e Washington chegaram a acordo para uma solução para aqueles terrenos: Espanha descontaminava os solos (recolhendo o material contaminado e colocando-o em contentores prontos a serem movimentados em segurança, por terra e por mar) e os Estados Unidos ficavam responsáveis por recebê-los no seu destino final (uma área militar no deserto do Nevada, a chamada “Zona de Segurança Nacional”). Foi um acordo informal, a expectativa era a de que fosse depois formalizado e posto em prática. Mas nunca passou de uma declaração de intenções.

Espanha entrou de seguida num longo processo de sucessivas eleições gerais que acabaram por afastar o PP do poder e, nos Estados Unidos, em 2016, Donald Trump vencia as eleições. Para desespero das populações e autarcas das zonas afetadas, seguiu-se um novo período de inação. Até Joe Biden impôr uma derrota eleitoral a Donald Trump e regressar à Casa Branca, desta vez já como Presidente.

É nesse novo contexto político que Madrid volta recentemente ao tema. O El País cita fontes diplomáticas para explicar que, na tentativa de tirar partido do retomar de relações mais próximas entre os dois países, há alguns meses o Ministério dos Negócios Estrangeiros espanhol pediu formalmente aos Estados Unidos que concretizassem a remoção dos terrenos contaminados com 50 quilos de plutónio.

A primeira reação à investida de Madrid “foi positiva”, garantem as mesmas fontes ao diário. Mas isso não significa que o processo tenha beneficiado de algum desenvolvimento prático. E o tempo corre a desfavor de uma solução definitiva: há eleições legislativas em Espanha no final deste ano que vão traduzir-se numa prova de fogo derradeira para o governo de Pedro Sánchez; e, em 2024, os norte-americanos voltam às urnas para eleger o Presidente da união, numa corrida que não será menos determinante para o futuro de Joe Biden — e para o acordo de Palomares. O objetivo passaria por fechar um acordo efetivo dentro de meses.

640 milhões de euros e dois anos de operação no terreno: a missão ‘limpar Palomares’

Ainda que a expectativa seja essa — aproveitar o atual momento político para pôr fim a um processo com quase 60 anos —, remover 50 mil metros cúbicos de terrenos contaminados está longe de ser uma operação imediata. Ou barata.

Entre a recolha completa dos solos em Palomares e o seu depósito no deserto do Nevada há um processo logístico complexo que envolve a contenção dos terrenos recolhidos em contentores específicos, que depois serão transportados por estrada até ao porto de Cádiz, banhado por águas atlânticas, a 500 quilómetros de distância do local de origem. Dali, os contentores seguem de barco até aos Estados Unidos, onde serão transportados novamente por estrada até à “Zona de Segurança Nacional”.

O custo total da operação foi calculado em 640 milhões de euros, a dividir em partes diferentes entre Espanha e Estados Unidos. A maior fatia desse bolo caberia às autoridades norte-americanas, uma vez que se prevê que a fase de armazenamento em terrenos próprios para o efeito rondaria um investimento de 500 milhões de euros. O restante valor (cerca de 140 milhões) seria destinado à operação de remoção dos solos em território espanhol.

O fator que, para o meio ambiente e para a segurança humana, é um fator positivo, para a operação de descontaminação revela-se uma dificuldade acrescida. “Este plutónio, que se espalhou naqueles hectares, é composto por partículas praticamente insolúveis”, explica Fernando Carvalho. “As plantas não as absorvem, os animais não as absorvem e os seres humanos também não”. Isso também significa que “são difíceis de colher” de forma isolada. “Como vão colher-se grãos que são quase microscópicos?”, atira.

A resposta está no processo oneroso que obriga a uma recolha em massa e ao transporte por milhares de quilómetros e milhas náuticas até ao terreno militar nos Estados Unidos onde, na década de 1950, se realizaram testes nucleares. Com uma contaminação generalizada dos terrenos naquela faixa do deserto, a zona acabou por ser convertida em local de depósito de resíduos altamente tóxicos. Será esse, à partida, o destino final do material tóxico de Palomares, caso se cumpra o acordo fixado em 2015 entre os dois países envolvidos no acidente nuclear. Pelo caminho, os contentores aproximam-se, por terra e por mar, de território nacional. Mas Fernando Carvalho não vê aí perigos de um novo acidente que afetasse território ou população portuguesa. “Os tambores que transportam o plutónio vão fechados. E mesmo que houvesse um acidente com navio, esses resíduos ficariam depositados no fundo do mar, nos contentores. Não vejo que haja esse risco.”

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