As medidas anunciadas pelo Governo no ano passado para contrariar o impacto da pandemia no acesso e qualidade da habitação tiveram um grau “insuficiente” de execução — que no seu global foi de 16% — e não se revelaram eficazes no cumprimento de objetivos, pelo menos até ao final de 2020.
O diagnóstico surge numa auditoria do Tribunal de Contas que analisou a resposta dada pelo Ministério das Infraestruturas e Habitação ao impacto adverso da pandemia no setor da habitação. A análise debruça-se sobre cinco medidas, das quais quatro fizeram parte do plano de estabilização económica e social lançado em junho do ano passado: Conservação e reabilitação do parque habitacional do Instituto de Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), proteção do arrendamento habitacional, parque habitacional público a custos acessíveis, reconversão de alojamento local e mecanismos de redução, suspensão e isenção de rendas por entidade pública, o IHRU.
Nas conclusões o Tribunal de Contas considera que se verificou uma “desarticulação entre a implementação das medidas extraordinárias e prossecução do interesse público”, alertando para um levantamento prévio das necessidades deficiente. Aponta uma inadequada estrutura de monitorização e controlo das medidas extraordinárias, considerando que a falta da previsão de metas para os resultados a obter “revela desconhecimento da dimensão da sua necessidade e urgência”. Indica também informação incompleta e insuficiente no reporte das medidas.
Conclui igualmente que se verificou um “insuficiente” e mesmo “incipiente” grau de execução das medidas extraordinárias em 2020″, detalhando os desvios de cada uma delas. Foram previstos 63,5 milhões de euros e gastos 10 milhões de euros (16%).
- A conservação e reabilitação do parque habitacional do IHRU foi a que teve maior nível de execução. Estavam previstos sete milhões de euros para reabilitar 300 fogos ao abrigo do programa de reabilitação dos imóveis geridos pelo instituto público (14 mil fogos). Este programa prevê reabilitar 4 mil fogos com um investimento de 43 milhões de euros até 2024. No final do ano passado, tinham sido reabilitados 295 fogos (98% do previsto) e gastos 5,5 milhões de euros, cerca de 78% do orçamento.
- Proteção do arrendamento habitacional. Foi feita uma estimativa de quatro milhões de euros para apoios públicos através de empréstimos sem juros, e reembolsáveis a partir de 2021, concedidos pelo IHRU. Destes, 1,5 milhões de euros podiam ser convertidos em subsídios não reembolsáveis. Dos 3.069 pedidos, foram aprovados em 2020 748 e atribuídos 1,2 milhões de euros, o que corresponde a 29% do valor orçamentado.
- Parque habitacional público de habitação a custos acessíveis. Foram inscritos 48 milhões de euros para promover a criação de um parque público de casas acessíveis, através da construção nova e reabilitação do património do Estado devoluto ou vazio. Foram gastos 3,3 milhões de euros (7%) sem que tivesse sido disponibilizado qualquer fogo no ano passado.
- Reconversão do alojamento local. Foram destinados 4,5 milhões de euros para comparticipação anual, ao abrigo do programa de transferências de casas de alojamento local para o arrendamento acessível, ao qual estavam ainda associados benefícios fiscais de 12,9 milhões de euros. A medida não foi executada em 2020.
- Mecanismo de redução, suspensão e isenção de rendas pelo IHRU. Não chegou a ser previsto o valor do adiamento ou perda de receita do instituto público. Dos 48 pedidos foram aprovados 30, representando uma despesa de três mil euros.
O Tribunal de Contas destaca por fim que o objetivo de prossecução do interesse público implicava que as medidas fossem adequadas e eficazes na recuperação do setor da habitação do impacto da pandemia. “Ora, até 31/12/2020, a auditoria verificou que a RIAPSH (…) se resumia a cinco medidas, como reportado pelo Ministério das Infraestruturas e Habitação e pelo IHRU. Verificou também que das cinco medidas tomadas como RIAPSH, duas não apresentavam resultados, só uma tinha uma meta definida, sem a ter atingido, e nenhuma se revelava eficaz para alcançar o seu objetivo nem recuperar a situação inicial (anterior ao impacto adverso da pandemia).”
O horizonte temporal avaliado nesta auditoria vai até ao final do ano passado e esta opção é um dos pontos fortes do rebate feito pelo ministério tutelado por Pedro Nuno Santos à iniciativa do Tribunal de Contas onde também acusa a entidade de ignorar o contexto extraordinário da pandemia. No exercício do contraditório na própria auditoria, o gabinete do ministro questiona a iniciativa do órgão de fiscalização do Estado, ao abrigo das suas competências, assumindo não compreender o “escrutínio político de medidas em curso que deverá ser nas instâncias adequadas, nomeadamente na Assembleia da República, nos termos constitucionalmente previstos”.
No comunicado que divulgou à mesma hora — a auditoria Tribunal de Contas foi libertada às 00h00 de sexta-feira — o Ministério das Infraestruturas sublinha que a pandemia foi “um fenómeno novo, inédito, para o qual nenhum país estava preparado e que obrigou a uma resposta imediata e a uma constante aprendizagem em processo”. E este quadro “é essencial na hora de avaliar as medidas” porque é necessário perceber se era possível prever ou planear numa “situação cheia de incógnitas”. Algumas das medidas tinham um horizonte de médio e longo prazos e foram adaptadas a reação à pandemia. As medidas de resposta imediata para garantir a estabilidade da habitação “não são quantitativamente qualificáveis”, argumenta ainda o Ministério, “mas têm um valor absoluto para quem viu essa estabilidade garantida”. E exemplifica:
“Como pode a suspensão dos despejos, ou o regime especial de proteção dos arrendatários (e que passou por suspender os efeitos das denúncias e caducidade dos contratos) ser medido quantitativamente se, precisamente, o que dita o seu sucesso é não terem existido despejos, ou os contratos terem permanecido válidos e por isso as pessoas não terem perdido a sua habitação?”
“Como pode ser medido o efeito do apoio no pagamento de rendas a quem teve quebras de rendimento, convertido em comparticipação não reembolsável para os que mantêm a quebra de rendimento, ser medido pelo facto de não ter esgotado a verba que o Governo em contexto pandémico e de incerteza alocou? Não teria sido dramático que, pelo contrário, algum arrendatário tivesse ficado sem apoio por não haver dotação suficiente?”
Na mesma nota, o Ministério das Infraestruturas e Habitação realça que: “Não se compreende, por isso, as conclusões tiradas do relatório seja quanto à definição à partida de uma meta orçamental (desfasada da excecionalidade da situação que estávamos a viver, seja quanto à conclusão de que as medidas foram insuficientes (desfasada no número de famílias que foram apoiadas com medidas excecionais criadas, muitas delas sem impacto orçamental direto”.
Na resposta à resposta (no quadro da própria auditoria), o Tribunal de Contas assinala que quatro das cinco medidas que faziam parte do plano tinham um horizonte temporal de sete meses e foram implementadas já depois da resposta inicial do Governo. O objetivo era estimular a retoma económica, tendo sido previsto um financiamento de 63,5 milhões de euros. “Porém, mesmo sem serem medidas de resposta imediata e tendo previsão financeira, não foram reportadas metas para três das medidas e só para duas foram obtidos resultados, tendo sido apenas utilizado 16% (10 milhões de euros) do financiamento previsto. Além disso, a restante medida teve um resultado imaterial”.
O órgão presidido por José Tavares lembra que o Tribunal de Contas ajustou o seu plano de ação para avaliar a reação pública aos impactos económicos e sociais da pandemia e à necessidade de estímulos à recuperação. E destaca que a crise pandémica veio amplificar a importância da habitação na vida das pessoas que tiveram de suportar longos períodos de confinamento que muitas vezes foram acompanhados de perda de rendimentos para pagar empréstimos e rendas.