Estava convencido que após o segundo prato não haveria mais. Dois anos depois, chegou à mesa um terceiro, inicialmente com a certeza de que seria composto apenas por chefs portugueses. A ideia rapidamente ficou pelo caminho quando percebeu que se valoriza o que é nacional colocando-o na “Liga dos Campeões Internacionais da Gastronomia” e que uma das maiores personagens deste mundo tinha de marcar presença. “Faltava aqui uma peça importante. Não posso estar a contar esta história sem ter o Ferran Adrià“, justifica Nelson Marques ao Observador numa conversa sobre Chefs Sem Reservas — Terceiro Prato, precisamente o terceiro livro desta edição de entrevistas do jornalista com chefs nacionais e internacionais. Com o objetivo de lhes despir a jaleca, Nelson sentou-se — presencialmente ou por videochamada — com cada um dos 15 durante, no mínimo, 45 minutos para terem conversas de vida, fazerem confissões e viajarem no tempo, até às memórias de infância de alguns dos nomes mais influentes do fine dining.
Desde Ferran Adrià, do elBulli, a confessar que cozinhar o aborrece, a Rui Paula que, em vez de chef, poderia ser hoje padre, passando por Louise Bourrat a afirmar ter sentido, em adolescente, vergonha de cozinhar, esta edição é composta por pessoas com as quais Nelson, afirma o próprio, queria conversar. Cada capítulo explora uma biografia onde os chefs, sem saberem, estão a comunicar entre si ao recordarem o início de carreira, a relação com a comida e os obstáculos que tiveram e que ainda têm de enfrentar.
Um livro sobre chefs sem ser um livro sobre comida, mas onde esta está bastante presente, sendo a chave que Nelson utiliza para desconstruir as barreiras dos entrevistados e levá-los até uma zona de conforto: a comida como memória emocional. Como é que isso se faz? Esta é uma conversa sobre os critérios dos prémios de cozinha, a falta de visibilidade das mulheres no Guia Michelin, a saúde mental na restauração, a gentrificação da gastronomia e a “importância de preservar a identidade gastronómica” de Portugal.
Pelo meio, seguem histórias de como o autor convenceu o chef Luís Gaspar de que, para a sessão fotográfica para o livro, teria de lhe despejar ovos crus em cima da cabeça ou de como, numa entrevista para o primeiro prato do Chefs Sem Reservas, passou um dia inteiro com Massimo Bottura, entrou na casa do chef italiano, almoçou com a família e visitou a escola do filho, ganhando a certeza de que é muito mais importante entrar no universo dos chefs do que entrar nos seus restaurantes — isto para quem os quer conhecer
Podia comer pão com manteiga para sempre, não gosta de cozinhar, não quer ser colocado em caixinhas e, se pudesse, sentar-se-ia à mesa com o chef Anthony Bourdain para conversar, porque “a cozinha é isso, é sentar a uma mesa para conviver“.
Há algo de que se arrependa de não ter feito nos outros dois livros?
Sim, arrependo-me muito de não ter mulheres no primeiro. Na altura, contra o conselho de algumas pessoas que me diziam que quando tens uma voz, deves usar essa voz para promover a mudança, eu acreditava, ainda jornalista, que tenho que refletir a realidade que existe. E vivo num país que tem mais de 30 restaurantes com estrela Michelin e nenhum tem uma mulher a chefiar a cozinha. Não os posso inventar. A minha desculpa era que a revolução tem de ser feita na sociedade, dentro das cozinhas, e depois eu posso refleti-la.
Como é que se faz a escolha dos chefs?
São os nomes que eu quero. Porque é muito difícil. Não é uma caderneta de cromos, onde vou pôr todos os que existem. Este livro tem um posicionamento. A maior parte destes chefs são chefs da área do fine dining, são estrelados ou têm muita notoriedade mediática, ou muita notoriedade dentro da classe. Portanto, é quase um hall of fame.
E a ordem em que aparecem?
É muito difícil. Os chefs estão a comunicar uns com os outros, muitas vezes. Quase todos os internacionais passaram pelas mãos do Ferran Adrià. À mesma altura estão os nacionais. Está o Vasco Coelho Santos que passou pelo Ferran Adrià. O Luís Gaspar a falar da experiência que teve com o António Boia. Há essa comunicação constante entre eles. E depois pensei em como tornar a experiência mais interessante para o leitor. Para mim, pareceu-me óbvio que o livro tinha que começar com o Ferran Adrià e com uns nomes mais fortes. A partir daí vai havendo alguma alternância, entre os nomes nacionais e os estrangeiros. Qual é o nome nacional que vem em primeiro? Pensei no Rui Paula porque tem duas estrelas Michelin. Mas, às vezes, digo a brincar, eu escrevo para a minha mãe. A minha mãe não sabe quem são estas pessoas. Ela vai querer ler a história do Rui Paula.
Como é que se faz com que os chefs façam certas confissões?
Uso sempre o mesmo truque. Levo-os para as sessões e digo-lhes sempre “vamos entrar na máquina de tempo”, e depois levo-os para a infância e geralmente eles começam a falar de coisas muito afetivas, muito ligadas à família. As defesas caem logo. Mais ainda na gastronomia, onde a comida é muito emocional, não é possível replicar os pratos da avó e da mãe, não só porque não existem as mesmas condições, mas porque se come o momento. E aqueles momentos já lá estão.
Houve alguma história que lhe tenha tocado mais?
Dei por mim a ficar genuinamente emocionado a ouvir o João Oliveira falar dos pais. Porque ele estava emocionado e porque eu me emocionei com essa conversa. Ele já perdeu o pai e a mãe. E estava a contar-me que ia sempre pescar com o pai e que às vezes no inverno, à meia noite, ele enfiava sacos de plástico na cabeça e abria uns buracos só para ter um bocadinho menos de frio mas que adorava aquilo porque estava a partilhar aquilo com o pai. Então ele ia fazer, no ano em que eu o entrevistei, uma viagem de auto-caravana sozinho para ir aos sítios onde ia com o pai. E é comovente ouvir essa história. Marcou-me também a conversa com o Ferran Adrià, falar com uma pessoa tão marcante na gastronomia a dizer que nunca gostou de cozinhar e nem sequer gostava de comer. E que foi parar à cozinha porque queria ir para a Ibiza de férias. Se nunca tivesse começado a lavar pratos, não tinha sido o Ferran Adrià do elBulli.
Houve alguma entrevista que lhe tenha dado mais gozo, alguma que lhe tenha ficado de forma especial na memória?
Isto é injusto para os chefs nacionais porque de facto quando falamos dos chefs internacionais estamos a falar do hall of fame e isso dá um gozo muito especial. Cada vez que me dão um “sim” a uma entrevista, há um gozo nisso. O Ferran Adrià, o Dabiz Muñoz, o Ramus Munk, a Ana Roš… Há um gozo especial em conseguir chegar a essas pessoas que, ao contrário das pessoas de Portugal, não fazem ideia de quem eu sou. Tornam o trabalho mais difícil.
E histórias de bastidores inesperadas?
A assessora de um chef tinha como uma das condições para aceitar a entrevista que esse chef tivesse mais destaque que os outros. Depois marcámos uma reunião, e ela dizia que tinha de ficar sucessivamente sublinhado o papel que o chef tinha. Mas eu disse: “por isso é que ele está no livro. Eu sei isso”. E ela insistia que tínhamos de puxar pela importância desta personagem. E faz-me um bocado de confusão porque nem sequer era o chef que estava a pedir isso, era a sua equipa. Ao mesmo tempo que me queriam dar pouquíssimo tempo para falar com ele. De resto, foi sempre fácil, com os chefs a colaborarem. Como quando tive de convencer o Luís, que por acaso foi fácil porque tem muito fair play, que lhe ia despejar ovos em cima da cabeça.
E de outro “Chefs Sem Reservas”?
Estava em Modena, sem saber quanto tempo tinha para entrevistar o Massimo Bottura. Estava muito nervoso, ele já estava atrasado. Até que uma senhora me diz que houve uma mudança de planos e que me iam levar à casa de campo do Massimo. Meteu-me num carro e levou-me. De repente, estou a entrar no universo dele, a ver a arte dele, a ver os discos dele. Conversámos e depois fomos almoçar. Fui com ele no Fiat 500 mas queria ter ido no Maserati, já agora queria experimentar. Fomos a casa dele em Modena. E eu pergunto-lhe, como é que alguém que está no topo, tem o número de telefone do Papa e do Obama, mantém os pés na terra? Ele diz-me, “já foi à escola do meu filho?”. O Massimo tem um filho com problemas cognitivos e criou uma escola para crianças autistas, e que fazem pasta com a família. E aquilo é um murro no estômago, porque são realidades muito difíceis. São histórias que só se conseguem indo lá.
Um chef que ainda queira entrevistar e não tenha conseguido?
O Gordon Ramsay e o René Redzepi, do Noma. A equipa do Ramsey nunca respondeu e o Redzepi negou já duas vezes.
De todos os chefs que entrevistou para este livro, quais foram os restaurantes aos quais já foi?
Dos internacionais não fui a nenhum. Mas entrevistei muitos chefs, sem ir lá, e devo dizer que não acho relevante. Para conhecer os chefs, é mais importante entrar nas casas deles do que nos restaurantes. Qualquer pessoa que tenha alguma quantidade de dinheiro pode comer num restaurante destes. Poucas pessoas estão a entrar na casa do Massimo Bottura. Mas dos nacionais, só não fui à Casa de Chá da Boa Nova, do Rui Paula, e ao Euskalduna, do Vasco.
No livro, Ferran Adrià diz que é difícil fazer coisas novas hoje em dia. Qual é a sua visão sobre isto?
O que o Adrià fez não é fácil de replicar. Mas é mais difícil fazer coisas originais hoje porque há 30 anos não havia internet. É mais difícil porque há muito mais referências, há uma overdose de informação tal, como é que se filtra isso para daí sair uma coisa original? O Adrià diz “criar não é copiar”, é uma evidência. Existe de facto muita cópia, mas também existe outra coisa que não é cópia, que são as influências que se vão absorvendo. Não vou dizer que é impossível, a originalidade é mais difícil de brotar num contextos desses de replicação. Nisso acho que concordo também. Seria muito ousado da minha parte discordar do Ferran.
Que tendências acha que vêm aí?
Já está a acontecer, mas uma é o facto de o fine dining se estar a tornar menos formal. Como diz o Benoît Sinthon, “a bistronomy está a picar o fine dining“. Temos mais elementos de bistro, é mais relaxado, mais festivo. Começaram a desaparecer as toalhas e os espaços já não são tão cerimoniosos. Outra que está a surgir — e que eu espero que continue — é nós começarmos a olhar de outra forma e a valorizar, do ponto de vista mediático, a cozinha que não é o fine dining. Acho que há um pouco a ditadura do fine dining, do ponto de vista do reconhecimento mediático. Se não estiver no guia Michelin, não importa, se for internacional e não tiver no 50 Best, não importa, se não tiver no Chef’s Table, não importa. Temos que quebrar um pouco com isso. Era bom que nós também, idealmente, conseguíssemos criar outro tipo de reconhecimento, que não fosse tão alicerçado nesses chavões.
Que mudanças gostava de ver?
Gostava de ver maior paridade, maior diversidade, e maior atenção à saúde mental. Darmos mais visibilidade às mulheres e termos mais atenção à questão do equilíbrio entre a vida profissional e a vida pessoal, porque se o negócio para existir depende de explorar outras pessoas até à exaustão, não tenho um negócio, tenho que fechar as portas.
Como é que vê hoje a comida e a restauração?
Acho que temos uma idade de ouro, ao nível da alta gastronomia em Portugal, porque temos uma geração de cozinheiros incrivelmente apaixonados e formados e que, com o turismo, têm mais oportunidade de negócio, podem montar o seu restaurante e crescer. Mas tem também o outro lado que é, dentro desta gentrificação que nós temos nas cidades, como é que preservamos a identidade gastronómica? Esse é o desafio que eu vejo.
Um chef com quem gostava de ir jantar?
Eu adorava comer com o Anthony Bourdain. Mas isso significa que ele estaria cá. Porque, quando vamos comer, não vamos comer, vamos conversar, e eu acho que tínhamos coisas para conversar. Conversámos pouco naqueles 45 minutos. Pela pessoa em si, a Dominique Crenn.
Última refeição embaraçosa que teve?
Num date, aí há um ano e tal, num sítio de comida saudável, ela chegou para aí 45 minutos atrasada. Eu já estava quase para vir embora. Ela já vinha altamente alcoolizada. Aquilo era uma sexta-feira. O jantar começou às oito, acabou às nove, e eu disse “gostei muito de te conhecer e agora vou para casa” e estava a caminho de casa e pensei “porque é que não comi no McDonald’s? Ficava em casa e tinha sido espetacular”. Nem sequer comi bem.
O que é que acha que falta em Lisboa?
Com muita honestidade, acho que falta um restaurante onde se pode ir jantar e se pode curtir o ambiente a seguir. Algo para quem procura um tipo de gastronomia diferente, mais casual, pessoas que gostam de ouvir música indie. Gostava que houvesse um sítio assim, onde pudesse ir comer, ficar para curtir, com uma boa música, bom ambiente, uma noite interessante, uma pré-noite, ali até às 1 ou 2 da manhã.
Última reclamação que fez num restaurante?
Quando lançámos o primeiro livro no Porto, o lançamento foi do Alex Atala e eu ia estar com amigos e convidei-o para vir jantar connosco. Fomos e escolhemos um sítio onde os donos eram brasileiros e nós estávamos no restaurante e as pessoas ficaram como se ele fosse um Deus, só a pedirem fotos. A partir daí, disseram “está por nossa conta”. Começaram lá a servir e nós não tínhamos pedido nada. Chegou a um ponto em que só já estávamos a comer por simpatia e começámos a questionar se iríamos ter de pagar. No final, fui lá perguntar e a senhora apresentou a conta. Não vou descrever o valor da conta, porque era absolutamente astronómico, mas aquilo criou-nos um embaraço, porque, ao mesmo tempo, estava lá o Alex Atala. Pensei “vou pagar metade disto, para não parecer muito para o resto da malta”. Estava o problema resolvido e quando nós saímos alguém disse que estava tudo errado porque não pedimos nada e eu disse: “Imagina que só pagaste metade”. A partir daí, as pessoas ficaram muito incomodadas, depois fizemos uma exposição, a pessoa acabou por devolver o que nos tinha cobrado. Foi muito chato, foi muito desconfortável.
Um sítio que mereça elogio.
O Mãe Cozinha com Amor. É um lugar que tem um nome maravilhoso. É sempre ótimo. Por exemplo, um dos melhores tacos que comi em Lisboa foi lá, um dos melhores croquetes que comi em Lisboa foi lá. Aconselho muita coisa. Vale mesmo a pena.
Último melhor prato que comeu.
Foi esse taco do Mãe. Esse taco era inacreditável. E eu nem sequer sou fã, comi como um snack, mas de facto foi o melhor taco que comi, de sempre. São os tacos de atum do Mãe.
Último pior prato que comeu.
Foi um hambúrguer absolutamente banal que comi há uns 15 dias numa praia no Estoril. Tornei-me um pouco mimado. Não gosto de comer mal. E custa-me pôr no meu organismo comida que não seja boa. Adoro comer, mas para comer mal, prefiro não comer.
Um prato que comeria todos os dias para sempre.
Um bom pão com uma boa manteiga e sou feliz. Às vezes tenho vergonha, mas garanto que esse pão com manteiga me sabe melhor que algumas refeições que eu faço em alguns sítios.
Gosta de cozinhar?
Gosto pouco de cozinhar. Sei fazer uma cozinha de sobrevivência. Não tenho prazer nisso. Mas acho que é um bocado vergonhoso as pessoas não saberem cozinhar. A sociedade tem alguma culpa. Devia ser ensinado a cozinhar nas escolas. Tive aulas de ponto cruz. Fiz tapetes. Preferia que me tivessem ensinado a cozinhar e a preencher impostos.
Sendo mais seletivo nos sítios onde vai comer, acha que se torna mais difícil para quem vai consigo?
Sim, é mais difícil. Não valorizam tanto a comida como eu e tenho noção. Mas tento agradar aos meus amigos e escolho restaurantes onde posso levar o vinho e pagar a taxa de rolha, porque já alivia a conta.
Um restaurante que mereça estrela.
Vou fazer batota. Acho que a Marlene merece uma estrela e acho que o João Oliveira merece a segunda estrela com o Vista. Porque não sou assim tão consumidor de fine dining. E, já agora, gostava de ver um mundo onde um restaurante como o Mugasa, que é um restaurante de leitão, pudesse receber uma estrela, ou que um Canalha pudesse ter uma estrela. Gostava que, às vezes, os critérios do guia fossem mais alargados.
Tem alergias?
Que eu saiba não. Mas como tenho gastrite, quando bebo cenas cítricas, cenas ácidas… Não tenho alergias, mas tenho outra coisa que também é chato.
Há algo fora de Portugal que tenha inveja e gostava que houvesse cá?
Gostei muito, em Madrid, de um conceito que é o Amazónico. Gostava que estivesse cá, mas na realidade há conceitos muito próximos. É um restaurante para ver e ser visto, para quem tem algum dinheiro. Mas o que me interessa é que para ir para um piso de baixo, tinha lá um jazz bar, com um ambiente muito fixe. Vai um pouco ao encontro daquilo que dizia antes, só que eu faria daquilo uma coisa menos posh. Faria um Amazónico menos elitista, talvez. Mais popular.
O que vem a seguir ao terceiro prato do Chefs Sem Reservas?
Não sei o que vou fazer a seguir. Vou escrever um livro, seguramente. Não sei qual. Mas gostava que o próximo não fosse sobre chefs, porque sempre evitei que me metessem em caixinhas. Mas gostava de levar o livro lá para fora. Esse será o plano para os próximos tempos. Tentar internacionalizar o Chefs Sem Reservas.