Com o impulso certo podemos conquistar o mundo. Se a isso juntarmos um bom fato ou um bom vestido, podemos fazê-lo com ainda mais confiança. É esta a mensagem da Dress for Success, associação sem fim lucrativos, que nasceu há 20 anos nos EUA. São já 140 sedes da organização em 21 países e Portugal é um deles. Em quatro anos, a Dress for Success Lisbon já apoiou cerca de 2500 mulheres com a roupa certa, as dicas certas, o plano de carreira certo. São mulheres com um passado de abusos, de violência, pobreza ou simplesmente de anos e anos de desemprego.

Diretamente de Nova Iorque, onde fica a sede da Dress, veio a CEO Joi Gordon. Juntou-se em Lisboa à presidente da filial portuguesa, Teresa Durão, para uma conversa em exclusivo com o Observador. Afinal, qual é a importância da roupa numa mudança de vida? Como é que se faz a transformação?

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À esquerda está Joi Gordon, CEO da Dress for Success. À direita está Teresa Durão, diretora da Dress For Success Lisbon

Tudo começou com uma advogada e com as escolhas que o pai dela fazia, certo?
Teresa (T): Sim. A Nancy Lublin era uma jovem advogada, que tinha uma herança de cinco mil dólares do bisavô, e não sabia o que fazer ao dinheiro. O pai da Nancy era um advogado conceituado e ela estava a aprender com ele. Foi para o escritório dele e reparou que o pai escolhia as candidatas para trabalhar através da janela. Ele reparava logo na forma como elas se apresentavam e esse primeiro impacto contava muito para lhes ser dada uma oportunidade, ou não. A Nancy percebeu que a imagem era um passo decisivo para a entrevista, até porque muitas acabavam por nem sequer entrar. Então decidiu criar um projeto para ajudar estas mulheres. Começa por fazer uma recolha de roupa profissional para doar, agarra naquele dinheiro que tinha de herança e criou a associação. O conceito foi-se replicando.

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Joi, como é que a Dress for Success aparece na sua vida?
Joi (J): Vi uma entrevista à Nancy na televisão e ela estava precisamente a pedir às mulheres para doarem fatos ou vestidos. E eu pensei: ‘Eu posso ajudar’. Eu própria era advogada e, por isso, tinha imensos fatos no meu armário. Então decidi doá-los. Depois, comecei a doar também o meu tempo (risos). Tornei-me membro da organização, deixei a minha atividade como advogada e mais tarde fiquei CEO da Dress for Success. Apaixonei-me por esta missão e pela oportunidade de ver estas mulheres crescer, ficarem mais maduras e ganharem responsabilidade por si próprias. Têm sido 17 anos como trabalhadora na Dress e 19 anos como apaixonada por esta missão.

Quem são as mulheres que chegam à Dress?
J: São mulheres que vêm de grandes crises. Algumas são sobreviventes de violência doméstica, outras estiveram presas, outras simplesmente estão desempregadas neste momento. Não quer dizer que não consigam trabalhar, simplesmente não estão a trabalhar neste momento. Muitas são mães e precisam de trabalho também para cuidar dos filhos.

E nos casos de violência doméstica, há a questão da dependência económica dos maridos.
J: Exato. Que é aquilo que as impede muitas vezes de sair de casa. Para essa mulher se libertar daquela espiral de abuso, precisa de poder económico. Tem de conseguir sustentar-se sozinha para poder sair de casa. Nós tratamos de lhe dar o apoio, a confiança e as ferramentas de que ela precisa para chegar a uma entrevista e ficar com o emprego. Para que consiga ser independente.

Ter dinheiro é ser livre.
J: Exato, e é ter poder. Dinheiro é poder. Para ser economicamente livre e autossuficiente.

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A Dress for Success tem uma sede em Lisboa, onde recebe as mulheres que irão beneficiar do projeto.

Conte-me uma história de uma transformação gigante.
J: Olha, ainda recentemente no meu aniversário recebi uma mensagem pelo Facebook de uma das mulheres que passou pela Dress com uma das histórias mais brutais. Ela esteve 18 anos ligada à prisão: era detida, depois era libertada, depois voltava a cometer um crime e voltava a ser presa. Sempre neste vai e volta. Condenações por roubos, assaltos, consumo e tráfico de droga, prostituição. Foi abusada sexualmente quando era criança. Se a visses hoje, não acreditavas na história dela. Escreveu uma biografia sobre a sua história, publicou o livro, já escreveu outros livros. Trabalha com mulheres toxicodependentes, que passaram pelo mesmo que ela passou. Chama-se Zoe Sheppard. É um exemplo para todas nós. Quando a conheci, há 17 anos, ela não era a pessoa que é hoje. Nunca dirias que ela passou por aquilo tudo. Está tão cheia de confiança, tão tranquila. Não é uma vítima da vida, é um mulher vencedora. E há muitas Zoe Sheppard por aí.

Quem são as mulheres que chegam à Dress de Lisboa?
T: A maioria são mulheres que viviam na dependência do Rendimento Social de Inserção durante anos. São 180 euros, viviam em péssimas condições. Temos vários casos de sucesso, em que elas voltam ao mercado de trabalho, não querem voltar à vida que tinham, deixam de receber aquele subsídio e passam a ter a sua autonomia financeira. Têm a sua casa, pagam as suas contas, deixam de ter dívidas e passam a ter um contrato de trabalho. São sempre histórias de superação. Tivemos uma mulher que, aos 22 anos, fez tráfico de droga com o namorado e os dois foram condenados a pena de prisão. Entretanto ela saiu, ele continuou preso e ela é encaminhada para a Dress. Hoje tem um negócio de unhas de gel. Tem a vida dela. Vamos agora começar a trabalhar com a prisão feminina de Tires.

São mulheres que têm de começar do zero, é isso?
J: Sim. Quando estas mulheres nos chegam, não estão à espera de grande coisa. Não esperam que alguém as trate com dignidade ou com respeito. Chegam de costas curvadas, de cabeça para baixo. Vêm com um passado muito forte, com muita dor acumulada, com muita ansiedade e sobretudo muito medo. Não esperam ter grande sucesso na vida. Mas saem prontas para enfrentar o mundo. Conseguem olhar para o espelho e ver uma pessoa que já não viam há muito tempo, ou que se calhar nunca esperaram ver. A mulher que chega e a mulher que sai são completamente diferentes.

Mas porque é que a roupa é importante?
J: O vestuário pode definir o estado de espírito daquela mulher. A ideia é: “You feel like you look“. Se estiveres bem vestida, sentes-te bem. Um fato bonito, um vestido elegante e um par de sapatos representam poder. Representam segurança e confiança. Quando aquela mulher se vê ao espelho, sobretudo depois de um episódio devastador, vê a mulher que ela quer ser. A maioria delas foi chamada de “feia”, de “inútil” ou de “fraca” e aquele fato que ela veste é uma armadura. Para algumas é um colete salva-vidas.

É quase um efeito psicológico.
J: Absolutamente. Ela veste aquele fato e sente-se logo outra pessoa. Pronta para agarrar o que quer. Quando vestimos um fato, até parece que ficamos mais altas. Sentimo-nos bem connosco próprias. E se te sentes bem contigo própria, consegues entrar numa sala e arrasar naquela entrevista de emprego. Se não te sentes capaz, se te sentes mal contigo, não vais conseguir ganhar aquela oportunidade. Tem tudo a ver com autoconfiança, com controlar aquele momento. Na Dress for Success, quando está alguém a ajudar-te a escolher uma roupa enquanto te dá palavras de encorajamento — “aquele trabalho vai ser teu”, “vais conseguir” — tu vais com mais garra.

Mas como é que elas vos contactam? Qual é exatamente o trabalho que é feito?
T: Somos contactados por outras organizações. Algumas trabalham com casos de violência doméstica e têm casas abrigo. Chega a uma altura em que essas mulheres já estão preparadas para voltar à vida em sociedade e e é preciso fazer a transição para uma vida nova. Nós atuamos aí. Outras trabalham com mulheres com dependências, outras dão apoio alimentar. As situações são diagnosticadas através dos parceiros sociais que depois as encaminham para nós. Depois, nós marcamos as sessões com elas. Passam pelo centro de carreira e passam pela boutique de roupa, dependendo de cada situação. Os casos de contacto direto por parte das mulheres são muito raros, porque há alguma vergonha. Mas não têm de ter vergonha. Nós nem queremos muito saber o que é que aconteceu, queremos é saber o que vai acontecer.

J: A mulher que nos chega quer e precisa de arranjar trabalho. Nós preparamo-la para conseguir esse emprego. Sabemos se ela vai a uma entrevista para um banco, para uma retrosaria, para uma empresa de alarmes e segurança ou para um hipermercado. Então, nós vestimo-la e damos-lhe o apoio certo para aquela entrevista específica. Para chegar lá e agarrar aquele emprego. Para se tornar imprescindível para aquele empregador.

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Na sede há vários charriots de roupa. Há uma consultora de imagem que é voluntária na associação e aconselha o look indicado para a entrevista, tendo em conta o tipo de trabalho a que se destina.

Como é que o processo começa?
J: Primeiro, é preciso ir buscá-la à porta e tratá-la pelo nome dela. Convidá-la a sentar, oferecer-lhe um café ou um chá, e tratá-la com dignidade. Depois, começamos a falar sobre o que ela quer fazer, qual é o desejo dela, porque é que quer encontrar trabalho, onde é que ela se vê no futuro. Passinhos de bebé.

Como é que funciona o Centro de Carreira?
T: Fazemos um plano de carreira. É uma coisa muito simples e há empresas que até fazem dos planos de carreira uma área de negócio. Basicamente é uma análise ao que se fez e ao que se quer fazer: “acabei aqui”, “isto correu mal”, “para onde é que eu quero ir a seguir”, “o que é que eu tenho que fazer para conseguir aquilo”, “o que é que eu tenho que estudar para ir para aqui”. Criar um plano com um foco. Na maioria dos casos, as pessoas quando ficam desempregadas disparam em todos os sentidos. E isso é mau porque não têm um foco. Depois recebem muitos ‘nãos’ e ficam a acreditar que ‘não servem para nada’. É isso que se evita neste centro. Não é só fazer um currículo ou uma carta de apresentação, é muito mais que isso. É trabalhar com ela. Uma entrevista correu mal, volta para trás, o que é que aconteceu, como é que podemos melhorar, etc.

O desafio é esse: agarrá-las para que elas não voltem ao passado.
T: Sim, temos de conseguir evitar que elas sejam engolidas pelo sistema e que não voltem à vida que tinham. Que sejam canalizadas para o mercado de trabalho e que se mantenham lá. Às vezes é difícil, às vezes há mulheres que deixam de aparecer ou das quais perdemos o rasto. Por isso é muito importante segurá-las logo no início

J: O primeiro mês é determinante. Sabes, às vezes as pessoas da tua família ou os teus vizinhos não são as melhores para te encorajar, porque a situação deles é igual à tua. Às vezes precisas de alguém de fora para te puxar. Os voluntários e as pessoas que trabalham na Dress não conhecem aquelas mulheres de lado nenhum. Mas dão-lhes imenso amor, coragem, força. E aquelas mulheres bebem aquilo tudo. E é esse encorajamento que as ajuda a deixar a dor no passado e começar uma vida nova. No início, elas vêm com uma atmosfera negativa brutal. Por isso sim, é muito importante segurá-las, insistir, puxá-las para outro lado até elas deixarem de voltar ao passado. E depois é um clique, de um momento para o outro. É aí que começa a transformação.

Quanto tempo é que uma mulher fica na Dress?
J: A vida inteira (risos). É um projeto de uma vida. Ela chega até nós, agarra na roupa, recebe as ferramentas, consegue o trabalho, torna-se membro do nosso grupo e passa a contar a sua história de superação às outras mulheres. E assim se faz o ciclo. E elas continuam a vir a todos os encontros, para aprender formas de melhorar e de crescer ainda mais.

Vocês são quase como psicólogas.
J: Sim, acho que todas as mulheres são um pouco psicólogas (risos). Os conselhos que damos às nossas amigas nas conversas de horas no sofá, a ajuda mútua, é fantástico. Quando tens mulheres que se preocupam e que ajudam outras mulheres, o mundo torna-se um sítio melhor. Eu própria já fui muitas vezes buscar força a conversas que tive com estas mulheres na Dress.

Que conselhos de carreira dariam a quem está a ler esta entrevista?
J: Encontrem alguma coisa que vos apaixone e nunca terão de trabalhar um dia na vida. Descubram qual é o vosso propósito neste mundo. Descubram o que é que devem fazer com o vosso tempo. O vosso objetivo de vida. Quando descobrirem isso, tudo vai tornar-se mais claro. Vão desfrutar mais da vida. Para aquelas mulheres que estão a passar por um mau bocado neste momento, digo-vos que a tempestade vai passar. É o que digo à minha filha e às minhas amigas. Vocês vão sair desse ciclo duro. Mas para o conseguirem talvez tenham de se rodear de um novo grupo de amigos, ou afastar-se de alguns membros da vossa família. Têm de se rodear de referências mais positivas. Arranjem uma “manta de pessoas” que se preocupem realmente convosco. Às vezes é preciso mudar o ambiente em que estamos para chegar a um objetivo.

T: Acho que é muito importante que as mulheres acreditem nelas próprias. Se têm um sonho, têm de trabalhar para o conquistar. Há uma grande diferença entre o querer e o fazer acontecer. Há muito trabalho. Digo isto tanto a pessoas mais velhas como a pessoas mais novas. A lógica é sempre a mesma: criar o foco e acreditar.