Ronald Reagan, presidente dos EUA, desce da Mesa para discursar e enquanto se dirige ao púlpito é aplaudido pela esmagadora maioria do hemiciclo na Assembleia da República. Os 44 deputados comunistas presentes na sessão abandonam a sala antes do discurso e Reagan não resiste a fazer uma piada:
– “Lamento que algumas das cadeiras à esquerda pareçam desconfortáveis”.
Ouviram-se sorrisos dos que ficaram. Numa das bancadas, perto dos deputados do PCP, está uma gaiola com uma pomba branca, símbolo da paz, viva. Se o PCP (mais precisamente, a APU, que incluía 41 deputados do PCP e 3 do MDP/CDE) fez o número de abandonar a sala, houve quatro deputados da UEDS (União da Esquerda para a Democracia Socialista), eleitos nas listas do PS, que nem sequer compareceram à sessão (um deles era António Vitorino, mais tarde ministro do PS). A postura da UEDS a 8 de maio de 1985 foi assim a que será adotada pelo PCP esta quinta-feira no discurso do presidente ucraniano ao Parlamento português: os comunistas não vão marcar presença no plenário.
Reagan era profundamente anti-comunista e pelo fim da União Soviética e a visita do presidente dos EUA a Portugal foi até anterior à perestroika, pelo que a reação do PCP, então liderado por Álvaro Cunhal, foi natural, tendo em conta que havia um alinhamento total dos comunistas portugueses com Moscovo (que hoje já não existe).
Nos diários da sua estadia na Casa Branca, Reagan classificaria aquela quinta-feira em Portugal como um “dia cheio” e dedicou as seguintes palavras àquele momento: “Perante os deputados, o presidente [Fernando] Amaral fez um discurso de abertura e apresentou-me, momento em que um grupo à minha esquerda — física e filosoficamente se levantou e saiu. Mas a grande maioria [dos deputados] respondeu de forma calorosa em às minhas observações.”
Precisamente um ano depois do abandono do PCP do discurso, em maio de 1986, Cunhal foi a Moscovo reunir-se com Mikhail Gorbatchov, onde líder comunista soube que era o escolhido do politburo da URSS para intermediar as relações entre Moscovo e Pequim, então tremidas devido ao Camboja, Afeganistão e outras disputas territoriais.
Era, por tudo isto, insustentável o PCP — reputado partido marxista-leninista entre os partidos comunistas europeus — ficar na sala a ouvir o líder do mundo capitalista. Que, ainda para mais, defendeu a NATO e como a aliança atlântica era importante para a paz.
Os Descobrimentos e outra piada
Voltemos à sessão. Ronald Reagan começou a discursar às 12h30, em frente a cravos vermelhos, símbolo da Revolução de Abril, mas também brancos e azuis, numa alusão às cores da bandeira norte-americana. Reagan dizia que estava “profundamente honrado” por estar numa Assembleia “tão rica em história” e onde é “ouvida a voz do povo português”.
O antigo presidente dos EUA lembrou que, depois de passar por Alemanha, Espanha e Parlamento Europeu não havia sítio mais apropriado para um americano para se despedir da Europa que Portugal. Reagan disse que “como ensinam os livros de história dos alunos na América” foi destas margens (do Tejo) que “partiram os primeiros exploradores marítimos” rumo à descoberta de um “novo mundo”, que abriria caminho para o surgimento de novas nações, como os EUA.
Apesar da referência aos Descobrimentos, Reagan não se colocou na polémica sobre a nacionalidade de Cristóvão Colombo. Lembrou, antes, que teve duas carreiras: “Uma em Hollywood [onde foi um conhecido ator], outra em Sacramento”, ambas no estado da Califórnia. O norte-americano dizia então ter uma “dívida ao povo português”, já que foi o português João Rodrigues Cabrilho que descobriu “uma extensão muito longa da costa norte-americana que mais tarde vinha ser conhecida como Califórnia.” E fez uma piada: “No meu país dizem que estou cá há tanto tempo que o meu rancho nas montanhas de Santa Ynez me foi vendido pelo próprio Cabrilho”. Houve sorrisos, já sem o PCP na sala.
Depois de falar sobre a importância dos Descobrimentos na história da civilização moderna, Ronald Reagan foi às referências literárias para dizer que a “maioria dos americanos” partilhariam o “sentimento da vossa epopeia, “Os Lusíadas“: Não falemos mais de Ulisses e Enéis e das navegações grandes que fizeram, nem de Alexandre e Trajano a fama das vitórias que tiveram. Do que vos falo é da ousadia e da reputação dos portugueses.”
Reagan, apenas 11 anos depois do 25 de Abril, falaria depois na escolha do povo português pela “liberdade”, elogiando o facto de o país “embarcar na grande aventura da democracia”. Minutos depois, começam as indiretas à União Soviética, com Reagan a atacar os Governos “cujos líderes e ideologias glorificam o Estado e fazem um culto ao poder pessoal”.
“A NATO tem funcionado. Mantivemos a paz durante 40 anos”
O presidente norte-americano lembrava ainda que, no final da II Guerra Mundial, a Europa e o mundo esperavam assistir ao fim “dos conflitos e da corrida ao armamento”. Mas, reconhecia, isso não era possível e que era necessário levar “a sério aqueles que ameaçavam acabar com a independência das nossas nações e dos nossos povos”. Foi por isso, concluía, que “nos juntámos [EUA e Portugal] numa grande aliança [a NATO]“.
Seria mais uma parte do discurso que o PCP não gostaria de ouvir caso estivesse na sala. Para exaltar a importância da NATO, Reagan lembrou a aliança luso-britânica: “Ninguém sabe melhor do que o povo português, que tem com a Grã-Bretanha o mais antigo tratado de defesa mútua da história europeia, o valor de tais alianças e de tamanha prontidão na prevenção de agressões e guerras.” E deixava outra garantia:”A NATO tem funcionado; mantivemos a paz durante 40 anos. Vamos manter a paz por mais 40 anos e outros depois disso.”
Reagan destacava ainda que “a contribuição de Portugal para a aliança ocidental era de uma importância crucial”, enaltecendo que o país era dotado de uma “localização geográfica estrategicamente vital” (a Base das Lages, nos Açores, ou a RARET, no Ribatejo, eram símbolos dessa importância). O presidente dos EUA confiava ainda — algo que não se realizaria em pleno — que as forças armadas portuguesas estavam “a modernizar-se para reforçar o seu papel na NATO”, o que representava um “amor pela indepedência nacional” que 0 remetia novamente para a epopeia nacional.
O presidente dos EUA lembrou ainda que “o Portugal democrático enfrentou problemas políticos, sociais e económicos”, mas reduziu isso a dores de crescimento: “A democracia, sobretudo nos seus primeiros anos, nem sempre corre bem.” Mas esta, lembrou, só pode ser avaliada e julgada a “longo prazo”, citando depois Winston Churchill: “A democracia é realmente a pior forma de Governo, à exceção de todas as outras”.
Num regime democrático, continuava Reagan, “o povo e seu direito à auto-expressão política são a melhor proteção contra o inimigo mais antigo e poderoso da liberdade — o crescimento descontrolado e abuso do poder do Estado.” Mais uma vez o comunismo ficava com as orelhas a arder pela boca de Reagan, um anti-comunista militante.
O presidente dos EUA elogiava ainda a liberalização da economia portuguesa, a entrada no mercado livre e na CEE, ao mesmo tempo que avisava: “A experiência democrática e o desenvolvimento económico andam de mãos dadas”. E acrescentava: “A história mostra um vínculo forte e inquebrável entre liberdade política e crescimento económico, entre democracia e progresso social.”
Reagan chega a dizer que “de certa forma, Marx estava certo” ao dizer que o desenvolvimento económico acabaria por destruir a velha ordem mundial. Por outro lado, acrescentava, “Marx estava errado sobre onde tudo isso e de que forma iria acontecer, já que é o mundo democrático que é flexível, vibrante e crescente – trazendo aos seus povos padrões de vida cada vez mais altos, mesmo quando a liberdade cresce e se aprofunda”. E deixava mais críticas ao comunismo que o PCP não ouviu: “É no mundo coletivista que as economias estagnam, que a tecnologia está atrasada e que as pessoas vivem oprimidas e infelizes com suas vidas.”
No mesmo discurso, o presidente dos EUA atacava os “velhos clichés do coletivismo” e defendia o “poder das pessoas” por oposição ao “poder do Estado”. A liberdade, defendia Reagan, “pode garantir a paz”. Segundo o líder dos EUA, o país estava a desenvolver tecnologia que ajudaria a dissuadir o surgimento de novas guerras, reduzindo a “dependência de uma estratégia baseada na ameaça de retaliação nuclear.”
“Pastorinhos de Fátima mais poderosos que todos os grandes exércitos do mundo”
Reagan utilizaria também o facto de Portugal ser um país profundamente religioso. Na defesa da dignidade humana, Reagan lembrava João Paulo II como um grande defensor desses valores, lembrando a ocasião em que o então líder da Igreja Católica foi vítima de um atentado em Fátima. É então que revela que quando encontrara João Paulo II um ano antes no Alasca lhe agradeceu e lhe disse que “homens como ele e orações de pessoas comuns de todo o mundo, como os pastorinhos de Fátima, têm mais poder que todos os grandes exércitos e estadistas do mundo”.
Já na fase final do discurso, Reagan referiu “uma palavra na língua portuguesa” que um dia se lembrava de ter utilizado “num discurso no primeiro ano de mandato: uma palavra muito útil que evoca a lembrança de coisas passadas — e que espero ter acertado: saudades“. E acrescentava: “Mesmo no pouco tempo que estamos convosco em Portugal, eu e Nancy, criámos uma profunda ligação com esta palavra. Sentiremos a vossa falta. Sentiremos saudades de Portugal. Esperamos um dia voltar a visitar-vos.”
Até lá, Reagan desejava e preconizava um futuro de “democracia e liberdade” para Portugal e antecipava que os portugueses iam escrever “um grande e inspirador capítulo da história.” Para o fim ficou uma das muitas referências à fé dos portugueses, nada laica e ao bom estilo norte-americano: “Obrigado, e que Deus vos abençoe a todos“.
Filipe VI, a outra reação do PCP (que não foi sair do hemiciclo)
O caso da visita de Reagan ao Parlamento não foi o único em que os comunistas se comportaram de forma diferente da maioria do hemiciclo. Aconteceu noutra ocasião, em 2016, embora, nesse caso, a bancada até tenha sido elogiada pela direita.
É preciso recuar a 30 de novembro de 2016, quando Filipe VI, coroado Rei de Espanha há pouco menos de dois anos, discursou na Assembleia da República, tal como já tinha feito no passado o seu pai, Juan Carlos. Na ocasião, todas as bancadas marcaram presença.
O discurso decorreu com toda a normalidade, mas na parte dos aplausos, a Assembleia da República levantou-se a aplaudir com duas grandes exceções: o PCP, que se levantou, mas não aplaudiu; e o Bloco de Esquerda, que ficou sentado (tal como o então deputado único do PAN). Nesta ocasião, o PCP chegou a ser elogiado pelas bancadas à direita por ter tido o respeito institucional de se levantar, mesmo não aplaudindo o discurso.
Esta é a diferença: PCP não bate palmas mas demonstra respeito pelo interesse nacional. BE é apenas mal educado. pic.twitter.com/nYiZUtX3bV
— Duarte Marques (@DuarteMarques) November 30, 2016
O Bloco de Esquerda foi, nessa ocasião, alvo de todas as críticas. Os bloquistas apresentaram-se no hemiciclo com t-shirts e pins com a bandeira da Segunda República Espanhola. Os deputados do partido liderado por Catarina Martins não só não se levantaram para aplaudir, como depois não marcaram presença na fase protocolar de cumprimentos, que se seguiu ao discurso. O PCP não faltou nessa ocasião.
O Bloco de Esquerda teve com Filipe VI, porém, uma postura mais suave do que aquela adotada em 2000 quando o rei Juan Carlos foi à Assembleia da República. Nessa ocasião, os dois deputados bloquistas Francisco Louçã e Luís Fazenda não marcaram presença na sessão.
São comuns este tipo de sinais políticos na Assembleia da República — até quando chefes de Estado visitam a Assembleia da República sem sessão solene, surgindo apenas durante alguns minutos numa das galerias laterais. A grande diferença é que, desta vez, é um chefe de Governo que está à distância, em guerra e a ser invadido por outro país.