De fato e gravata, mas de galochas, Calvão da Silva caminhou pelas ruas enlameadas de Albufeira acompanhado de membros da proteção civil. O ministro da Administração Interna tinha tomado posse há três dias quando, por impulso (“outro naquela situação não tinha ido”, diz), desceu de Lisboa a Albufeira para ver o efeito das cheias na cidade algarvia. Era dia 1 de novembro de 2015, Calvão da Silva ainda nem tinha assessor de imprensa e disse o que queria e o que não queria. “Deus nem sempre é amigo”, foi uma das frases. Ao Observador recorda aquele momento: “Não estava preparado. E levei com o embate de famílias enlutadas. Chorei lágrimas furtivas com aquela gente. Não podia prometer dinheiro, restava-me dar àquelas famílias palavras de consolação. Sou católico e não tive problemas de dizer aquilo”.
Calvão da Silva falou, nessa altura, “na fúria demoníaca” e explicou que “embora os ingleses digam que é um ato de Deus, um ‘act of God’, nós temos que traduzir de outra maneira.” A oposição e as redes sociais caíram-lhe em cima, mas serviu de lição. Ainda hoje não compreende o que aconteceu: “Desde quando é que falar de Deus é pecado? Quantas pessoas, mesmo ateus, não dizem ‘Valha-nos Deus’? Ou o Obama, por exemplo, que está sempre a falar de Deus.” O que é certo é que, depois disso, o ministro aprendeu a lição. Esteve em vários eventos públicos, mas só respondeu ao que queria. Foi assim mais tarde numa missa organizada pela Cáritas, de homenagem às vítimas dos atentados de 14 de novembro em Paris. “Aí já fiz declarações e correu tudo bem”, conta cerca de um ano depois.
Apesar de o governo só ter durado 11 dias (até à queda), aos quais se juntaram mais 16 (depois da queda), Calvão da Silva recorda-se de “ter constituído um grupo de trabalho para combater os suicídios na GNR e na PSP, que chegou a reunir.” Além disso, Calvão da Silva conta que a prova de que não se sentia a prazo e é que desbloqueou a criação de um regime de procedimentos para atribuição de vistos gold: “O diretor do SEF disse-me que tinha um serviço parado e que não podia definir os procedimentos para a atribuição dos vistos gold. Eu só perguntei: ‘Do que é que precisa? Da autorização?’ Está dada. E foi resolvida a situação.”
Ainda como ministro, Calvão da Silva chegou a representar Portugal no conselho de ministros da Justiça e da Administração Interna, onde foi com o então ministro da Justiça, Fernando Negrão, numa reunião convocada para discutir a ameaça do terrorismo na Europa.
Sporting, Açores e idade: Pontos comuns não deram em Bloco Central
Carlos Costa Neves ficou surpreendido quando Passos Coelho o convidou para a pasta dos Assuntos Parlamentares, mas após aceitar o desafio, tornou-se num dos mais otimistas do XX Governo Constitucional. Como tinha que ser. Acreditava num acordo com o PS e não queria acreditar que o PS chegasse a acordo com a esquerda.
A posição sobre o acordo de esquerda, conta o ex-ministro dos Assuntos Parlamentares, era “como a saída do Reino Unido da União Europeia ou a vitória de Trump nas eleições americanas, são possibilidades que nós, mesmo que admitamos como possibilidade, de alguma forma não as interiorizamos“.
Filho de militar, Carlos Costa Neves aceitou o desafio com espírito de missão. Se era como ministro que o partido precisava dele, era ministro que seria. E acreditava mesmo que os socialistas podiam viabilizar o Programa de Governo. O ex-governante conta que “houve muito passar de mensagem, tanto em termos internos, como externos, de que era perfeitamente possível o entendimento com o PS.”
O seu trabalho foi de “encurtar as escolhas daqueles três partidos, nomeadamente o PS, chamando a atenção para as contradições em matéria de política económica, de política externa, da NATO, da União Europeia…” Ainda antes da discussão do programa de Governo, o PSD tentou agendar um debate sobre os compromissos europeus (como o Tratado Orçamental) para explorar aquilo que seriam as contradições dos partidos. A esquerda, não deixou. Estava a “‘geringonça’ à vista.”
Costa Neves recorda-se de reuniões tensas e desagradáveis com a esquerda: “Nessa fase, as conferências de líderes eram especialmente difíceis porque o que acontecia era: sempre que havia qualquer ponto de vista diferente, a questão era submetida a votação e a esquerda ganhava. Era um entendimento muito fresco e, sendo fresco, estava muito ciosa de o afirmar. Era uma reunião tensa, desagradável, ao contrário dos contactos que fiz com os partidos um a um, em grupo, à volta da mesa era uma situação tensa”.
Ainda assim, o ministro procurava manter o otimismo. Ocupou, durante o tempo que foi ministro, o gabinete na Assembleia da República destinado ao titular da pasta dos Assuntos Parlamentares. E até levou objetos pessoais: “É a minha maneira de tornar o espaço familiar, levo sempre esses objetos comigo que são dois carrinhos de infância, uma fotografia da família próxima e um símbolo em termos pessoais que me diz bastante, que são as tartarugas, a quem associo um pensamento que é: ‘Devagarinho e sempre’”.
Ornamentos à parte, o tempo era de procurar consensos com os outros partidos e de apostar as fichas todas no PS. Apesar disso, teve encontros com os restantes partidos com assento parlamentar. “Notava-se da parte do PCP, do BE e do PEV mais uma posição de: não temos razão nenhuma para não o receber, mas nós estamos noutra.” Já o PS tinha uma postura diferente: “A sensação que eu tenho quanto ao Carlos César, que vinha acompanhado pela Ana Catarina Mendes, é de que ouviram mais do que falaram e a parte em que falaram foi mais da relação cordial de quem se conhece há muito tempo. Foi mais uma abordagem pessoal. E, portanto, não reagiram às mensagens nem de uma forma nem de outra.”
O PS estava claramente a jogar à defesa e Costa Neves sabia isso, também, porque conhece Carlos César “desde sempre”. O agora deputado do PSD conta que, desde 1976, teve um percurso paralelo no PSD/Açores ao de César no PSD Açores. Desde esse tempo, garante:
Até ao fim, Carlos Costa Neves não deixou de acreditar. Sentia-se “muito vivo” e a fazer aquilo que gostava. Apesar do Governo ter caído e ter sido curto, guarda “boas recordações”. Pouco tempo depois do secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares de António Costa, Pedro Nuno Santos, ter tomado posse, Costa Neves voltou ao gabinete que foi seu durante 27 dias para felicitar o novo responsável. “Desde essa altura não voltei lá. Como diz a música do Rui Veloso: Nunca voltes a um lugar onde foste feliz.”
Ser ou não ser ministro a prazo, eis a questão
Fernando Negrão sentou-se à secretária e ficou “meia hora” a pensar. “Ora bem, o que é que posso fazer num Governo de gestão sabendo que posso deixar de ser ministro daqui a 15 dias?” Era a pergunta para um milhão de euros que ia na cabeça de todos mesmo que o primeiro-ministro, quando lhes fez o convite para integrar o executivo, não tenha feito essa ressalva. Pelo menos não com as palavras todas. Não era preciso, estava implícito. Tanto uns como o outro sabiam que podia durar pouco.
O ministro da Justiça sabia onde se estava a meter. “Fui vereador da câmara de Lisboa quando António Costa fez os acordos à esquerda, por isso já estava a ver o filme pela segunda vez“, diz ao Observador, explicando que nunca acreditou na hipótese de Costa falhar as negociações com os novos “best friends forever” e com isso perder a oportunidade de formar Governo. Ou seja, no fundo sabia quando aceitou o convite que não tinha muitas hipóteses. Mas nem todos tinham essa certeza.
Teresa Anjinho, a ex-deputada do CDS que foi secretária de Estado da Justiça durante este breve período, diz ao Observador que essa noção foi crescendo à medida que os dias passavam. Tudo podia acontecer e, na cabeça dos governantes, passava a imagem de ficar “em gestão” (sem plenas funções) mais tempo do que se poderia imaginar.
Mas nem por isso hesitara. Fernando Negrão garante que, passada a meia hora da reflexão, pôs mãos ao trabalho: conhecia os dossiês e estava familiarizado com a pasta. Por isso, a primeira coisa a fazer era “ouvir as pessoas” e “perceber quais os problemas” da Justiça em Portugal. Procuradoria-Geral da República, Serviços Prisionais, Supremo Tribunal de Justiça, um almoço com a bastonária dos advogados, uma visita ao estabelecimento prisional de Leiria, contactos regulares com a Polícia Judiciária, a quem chegou a pedir um memorando sobre os problemas mais urgentes. Ufa. “O diálogo estava a ser interessante e produtivo, as dificuldades orçamentais estavam a ser encaminhadas para as Finanças, e depois o Governo cai”, lamenta, embora reforçando que sempre encarou com “normalidade” a transição de poder.
A normalidade daqueles dias é, de resto, ponto assente para aqueles que acabaram por ser governantes por menos de um mês. Com a diferença de que não podiam tomar decisões de caráter legislativo. O chip era “mexer o menos possível”. Na Justiça, os gabinetes mantiveram-se quase intocáveis, com a equipa da anterior ministra Paula Teixeira da Cruz a transitar maioritariamente para a equipa de Fernando Negrão. À exceção do chefe de gabinete, saíram duas funcionárias que optaram por regressar aos tribunais e não chegaram a ser substituídas, e Negrão, assim como a secretária de Estado Teresa Anjinho, levaram cada um uma pessoa “de confiança” para o seu gabinete. Tudo o resto, incluindo assessores, vinha de trás ou ficaria para depois. Quando o futuro fosse mais certo.
Calvão da Silva nem deixou Passos Coelho terminar a chamada para lhe dizer que, “desta vez” — ao contrário de outros convites que lhe foram feitos para integrar governos PSD — não precisava de pensar e aceitava ser ministro. Primeiro por uma “questão patriótica”, pois “estava iminente a golpaça que acabou por acontecer”, mas também pelo “dever histórico”. Aos 30 anos, Calvão da Silva tinha sido secretário de Estado adjunto do vice-primeiro-ministro Mota Pinto, num governo Bloco Central liderado por Mário Soares.
No caso de Calvão da Silva, Passos Coelho foi claro: “Ele disse-me logo que podia ser o governo mais curto da história da democracia.” O mesmo aconteceu com o ministro da Modernização Administrativa, Rui Medeiros, que garante que “ninguém foi ao engano: Passos disse-me logo que o Governo podia ser de curta duração, mas ainda havia a dúvida, no início, se a esquerda chegava ou não a acordo”.
“Entendi que me devia chegar à frente. Estávamos em circunstâncias especiais e, apesar de ser independente, queria ajudar a garantir um Governo credível e disponível para assumir a governação”, recorda Rui Medeiros. Ao Observador, conta que o princípio que assumiu foi que “o Governo não é infinito, mas é eterno enquanto durar” e que a postura foi sempre a de “não estamos aqui a brincar”.
Logo no dia da tomada de posse, Rui Medeiros decidiu transmitir ao grupo com quem ia partilhar o gabinete que tinham de te trabalhar “como se o Governo fosse para a legislatura”. Era uma questão de adotar a atitude correta: “Logo a seguir à tomada de posse, no final da sexta-feira, reuni a minha equipa e disse-lhes que não sabíamos se estaríamos muito ou pouco, mas cada dia que estivéssemos no Governo, teríamos de estar de corpo inteiro. Cada dia, teria de ser um dia com sentido.”
Num primeiro momento — “até ao chumbo” –, a equipa de Medeiros trabalhou no programa de Governo. Aliás, o ministro da Modernização Administrativa chegou a discursar e fez um aviso à esquerda: “A coligação cai de pé e quem cai de pé não morre”. O Governo ficou então demissionário (e continuou em gestão) e o que “mobilizou o gabinete”, conta Medeiros, “foi pensar em questões estruturais e em deixar documentos que propusessem soluções que fossem as mais adequadas na área da modernização administrativa.” Desencadeou um processo de monitorização das leis que acredita ter ajudado em programas que a ministra Maria Manuel Leitão Marques acabou por lançar mais tarde, como upgrades do Simplex.
Para Margarida Mano, porém, a surpresa maior não foi o convite de Passos Coelho para ser ministra da Educação, foi antes o convite para integrar as listas como deputada independente. Ao contrário da decisão de aceitar o convite para o Governo, difícil foi a decisão de aceitar o convite para sair de Coimbra, deixar a vida de vice-reitora e rumar a Lisboa. A partir daí, durava o tempo que fosse preciso. “Quando assumimos um cargo, estamos a assumir que é para valer enquanto for necessário“, diz. Ao mesmo tempo, reconhece que, na vida como nos cargos que se ocupa, “estamos sempre de passagem”. Por isso, nunca se sentiu uma ministra a prazo. Chegou a ir ao Conselho Europeu de Educação e foi em representação do Governo a eventos como a apresentação do plano nacional de leitura. É sobretudo essa “responsabilidade de representar o Estado português” que guarda da experiência.
Um enjoo matinal e uma corrida ao Constitucional
Quando Teresa Anjinho aceitou o convite para integrar o ministério da Justiça como secretária de Estado, estava grávida de cinco meses e “isso preocupava-a”. “Se o Governo durasse mais tempo iria ter de interromper”, pensava. Bem, não seria a primeira. Antes dela já Assunção Cristas tinha tido um filho enquanto estava em funções como ministra da Agricultura. Mas era para si uma questão relevante.
Tanto que, no dia simbólico da tomada de posse, Teresa Anjinho até se esqueceu da caneta com que teria de assinar o livro porque, na sua cabeça, ia uma e só uma preocupação: não vomitar a meio da cerimónia. As gravidezes têm destas coisas e a governante sabia que se não comesse de duas em duas horas, pelo menos, teria sérias probabilidades de enjoar. Por isso, conta ao Observador, levou uma pequena merenda com castanhas cozidas (em novembro é o tempo delas) e foram a salvação. Correu tudo bem, não enjoou e lá conseguiu arranjar uma caneta de última hora para formalizar a sua entrada em funções no executivo mais curto da história da democracia.
Os dias seguintes decorreram com a normalidade que um governo de gestão obriga. Foi criado um e-mail e um login para todos os governantes, porque tinham de assinar despachos de gestão corrente. De resto, a secretária de Estado manteve o computador pessoal e o telemóvel. Não contratou ninguém porque “não fazia sentido fazer convites às pessoas se não sabia se iria ser para um ano, dois anos, um mês”. Teresa Anjinho lembra-se bem do grupo de trabalho sobre a reforma do mapa judiciário que reuniu para ver “quais eram as situações com mais urgência” e da necessidade de renovar um despacho sobre determinados tribunais. “Não sabia se devia avançar ou não, mas havia urgência”, diz, acrescentando que o que mais a surpreendeu foram as dificuldades orçamentais do ministério. “No Parlamento é uma coisa, no Governo é outra. Ali vi e senti os constrangimentos orçamentais”, atira.
Mas do que Teresa Anjinho se recorda é de outro episódio caricato: a necessidade de entregar um sem número de declarações de rendimento e património no Tribunal Constitucional em tempo recorde. Uma declaração no momento da cessação de mandato enquanto deputada, outra no momento da entrada em funções no Governo, outra da cessação de funções e ainda uma outra do início de funções como dirigente do CDS. Foram quatro declarações em pouco mais de um mês e, mesmo assim, foi notificada pelos juízes por carta, porque disse ser secretária de Estado sem acrescentar “da Justiça”. “Às tantas já estava baralhada e como não queria ter o susto de ter um polícia à porta tive de ligar para lá para saber o que era preciso, tudo direitinho”, conta.
Sr. ministro? “Trate-me por Carlos”, respondeu um ministro ao primeiro-ministro
Os governantes ouvidos pelo Observador não estiveram no Governo tempo suficiente para que se habituassem a que lhes chamassem senhor ministro. Rui Medeiros diz que, para ele, essa parte é um alívio: “Ainda bem que não me habituei, porque não gosto”.
Carlos Costa Neves lembra que teve sempre uma excelente relação com Passos Coelho, a quem deixa rasgados elogios, mas destaca que o contacto com o líder do partido começou por ser institucional. Daí que, “no princípio, ele tratava-me ou por sr. ministro ou por dr. Costa Neves e eu lembro-me logo na primeira reunião lhe ter pedido: trate-me por Carlos senão sinto-me muito distante.” E assim foi.
Curiosa foi também a tomada de posse de Carlos Costa Neves. O deputado foi de boleia com um amigo e companheiro de partido, o ex-deputado Carlos São Martinho, e a polícia — como não era um carro do Estado — não o queria deixar passar. Teve de se identificar para conseguir chegar ao Palácio da Ajuda e lá conseguiu assinar o livro de posse. Foi também Carlos São Martinho que deu boleia a Costa Neves quando deixou de ser ministro: chegou de carro do Estado, saiu à boleia. O mesmo aconteceu com Calvão da Silva: “Cheguei no carro do ministério e à saída o meu motorista já conduziu a nova ministra.” A aventura chegara ao fim, 27 dias depois.