Paul Auster tinha oito anos quando, numa noite depois de um jogo de basebol, decidiu que andaria sempre com um lápis no bolso e contou que, com o passar dos anos, foi assim que se tornou escritor. Na última noite de abril, aos 77, morreu na sua casa em Brooklyn, Nova Iorque, a cidade cuja identidade se viria a misturar com a sua. Nos últimos anos perdeu um filho e uma neta e descobriu um cancro no pulmão que o manteve doente durante meses, naquilo a que ele a mulher chamavam de “cidade do cancro”. Chamam-lhe o escritor do acaso e dizem que escreve uma ficção pós-moderna. Como legado deixa dezenas de livros e textos traduzidos em mais de 40 línguas e um nome sem o qual o futuro não contará a história da literatura do seu tempo.
Em novembro, Paul Auster falou sobre o seu mais recente livro e confessou que talvez fosse “a última coisa” que escreveria. Em entrevista ao jornal The Guardian, o autor falou sobre a obra “Baumgartner”, que por sua vez aborda o luto. Este, tal como as outras obras, foi escrito à máquina e depois passada para computador por um assistente para seguir então para a editora. Contou também que recebeu vários incentivos de quem o rodeia. “Sinto que a minha saúde é precária o suficiente para que esta seja a última coisa que eu escreva”, disse ao jornal. “E se for o fim, então partir com esta bondade humana a envolver-me como escritor no meu círculo íntimo de amigos, bom, já valeu a pena.”
Paul Benjamin Auster nasceu a 3 de fevereiro de 1947 em Newark, Nova Jersey. Os pais eram judeus de ascendência austríaca, o pai era proprietário de imóveis e a mãe era decoradora de interiores. O casamento não foi feliz e viriam a divorciar-se quando Paul era ainda adolescente. Quando um tio que era um académico e tradutor partiu para Itália, deixou na casa dos Auster uma série de caixas com livros e o jovem ganhou a sua primeira biblioteca. Viria a ser um leitor compulsivo durante o tempo que passou na universidade.
Num ensaio que escreveu para a revista The New Yorker em dezembro de 1995 revelou que aos oito anos nada era mais importante para si do que o basebol e era um devoto apoiante dos New York Giants, quando houve oportunidade para ir ver um jogo ao vivo. Apesar de não se lembrar “de um único detalhe da partida”, conta como se dirigiu a um jogador, Willie Mays, para lhe pedir um autógrafo. O atleta disse que sim e perguntou-lhe se tinha um lápis, mas nem Auster, nem os pais nem ninguém por perto tinha. Sem lápis, não houve autógrafo. Houve muitas lágrimas, mas provocaria uma decisão que muda vidas. Depois daquela noite, decidiu trazer sempre um lápis consigo. “Os anos ensinaram-me isto: se houver um lápis no teu bolso, há uma boa possibilidade de que um dia te sintas tentado a começar a usá-lo. Como eu costumo contar aos meus filhos, foi assim que me tornei escritor.”
Depois de terminar os estudos de Inglês e Literatura Comparativa na Universidade de Columbia atravessou o oceano e em 1970 instalou-se em Paris. Entre outros trabalhos, fez traduções de obras, como por exemplo a Constituição do Vietname do Norte de francês para inglês. Viria também a morar no sul de França, onde foi caseiro de uma quinta na Provence, já na companhia de Lydia Davis, que viria a ser a sua mulher. Em 1974 regressaram os dois a casa e foi já nos Estados Unidos que Auster começou a publicar poemas e traduções, mas os rendimentos que daí tirava não eram suficientes para viver. Conta o The Times que foi uma herança deixada pelo pai que lhe permitiu dedicar-se à escrita.
O primeiro casamento de Paul Auster foi com a escritora Lydia Davis, mas viriam a divorciar-se em 1979. Juntos tiveram um filho, Daniel Auster, que foi motivo de várias notícias em 2022. Primeiro porque a filha, Ruby, de 10 meses morreu com uma intoxicação com fentanil e heroína. Depois porque, na sequência desse trágico acontecimento, foi detido e acusado de homicídio por negligência na morte da filha, uma vez que as drogas seriam suas. Por fim, Daniel Auster foi encontrado morto por uma overdose a 26 de abril desse ano.
O segundo casamento de Paul Auster foi com Siri Hustvedt, também escritora. Conheceram-se num evento de leitura de poesia e casaram-se em 1981. Tiveram uma filha, Sophie Auster, que é cantora e em janeiro de 2024 foram avós. Quando passou por Portugal em 2017, a propósito da sua participação no FIC — Festival Internacional de Cultura, em Cascais, o autor falou com o Observador e revelou algumas das suas rotinas, entre elas terminar o dia com a mulher “no sofá a ver filmes antigos, dos anos 30 e 40, no TMC”. Disse também depois que, habitualmente, após tomar um pequeno-almoço composto por “sumo de laranja, café e uma torrada”, se sentava a escrever durante horas, porque o via como “um trabalho das 9 às 5”.
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Logo após a notícia da morte de Paul Auster, o New York Times publicou um guia com os que considera serem os melhores livros do autor, a New Yorker republicou um ensaio com o título “Why write?” (“Porquê escrever?) que escreveu para a revista em 1995 e o britânico The Times titulou o obituário como “o escritor extravagante que misturou autobiografia e ficção” porque foram os acasos e as experiências pessoais que foram moldando a obra deste escritor. “Estamos continuamente a ser formatados pelas forças da coincidência”, disse Auster ao New York Times em 1995. “As nossas certezas de vida sobre o mundo podem ser abolidas num único segundo. As pessoas que não gostam do meu trabalho, dizem que as conexões são demasiado arbitrárias. Mas é assim que a vida é.” O autor deixa uma obra que conta com vinte romances, obras de não-ficção, uma dezena de livros de poesia e mais de uma dezena de volumes de ensaios. O trabalho do escritor foi traduzido em mais de 40 línguas.
A obra de estreia de Paul Auster foi “Inventar a solidão” (1982), um livro onde navegou pela própria infância e pela família, escreveu sobre a relação com o pai e revelou que o avô foi assassinado pela avó. Contudo, foram três histórias publicadas como “A trilogia de Nova Iorque” que deram a Auster fama e reconhecimento nos Estados Unidos e a nível internacional. “A cidade de vidro” (1985), “Fantasmas” (1986) e “O quarto fechado à chave” (1986) foram esses textos de ficção que mergulharam num estilo de investigação.
A história de um rapaz que se junta ao circo levou ao livro Mr. Vertigo (1994) e a uma amizade com o mágico David Blaine. O cão que adotou espontaneamente quando passeava pelas ruas de Nova Iorque com a filha pequena inspirou o livro “Mr. Timbuktu” (1999). Em 2012 e em 2013 voltou às memórias, primeiro com “Diários de inverno” e depois em “Relatório do interior”. No livro “A life in words” (2017), Auster reuniu três anos de conversas com o académico dinamarquês I. B. Siegumfeldt sobre as suas próprias obras.
Para “4 3 2 1” (2017), o ponto de partida foi uma experiência que mudou a vida do autor e que o próprio viria a descrever como o dia mais importante da sua vida e que sempre o assombrou. Num campo de férias, quando tinha 14 anos, Auster viu um rapaz ser morto à sua frente por um raio durante uma tempestade. Nesse ano, a obra chegaria à short list do prestigiado Booker Prize.
“Bloodbath Nation” (2023) aborda uma questão que tanto exalta os norte-americanos, a violência e as armas. O texto foi escrito para um livro de imagens que mostram os locais de tiroteios nos Estados Unidos e é assinado pelo genro, Spencer Ostrander. Sobre “Baumgartner” (2023), a sua última obra, Auster disse em entrevista ao jornal The Guardian que queria experimentar escrever um conto, algo que fez pouco ao longo da carreira. “Sempre escrevi livros de tamanhos modestos e com “4321” (2017) e “Burning boy” (2021) escrevi dois batentes de portas. Não foi de todo intencional”, disse o autor ao Guardian. “Se deixasses cair esses livros podias partir os dois pés, por isso quis algo mais curto e este homem mais velho veio ter comigo, sentado na sua casa e a olhar pela janela e a ver os pintarroxos a apanharem minhocas.”
Paul Auster também deixa obra no cinema. Em 1995 escreveu e dois filmes: “Smoke” e a sequela “Blue in the face”. O primeiro foi um filme independente com William Hurt e Harvey Keitel que teve sucesso. O segundo teve co-realização de Auster e contou com Madonna, Michael J. Fox e Lou Reed. Já o filme de 1998, “Lulu on the Bridge” não foi tão apreciado pela crítica. O autor tomou o gosto ao grande écran e em 2007 também escreveu e realizou o misterioso “The inner life of Martin Frost”.
Os prémios começaram a surgir em 1989 e da Europa, quando Paul Auster ganhou o prémio da cultura de França para a literatura estrangeira. Ganhou o prémio PEN/Faulkner para ficção em 1991 pelo romance “The Music of Chance” que viria a ser adaptado ao cinema. Recebeu o Prémio Príncipe das Astúrias de Literatura 2006 da mão do então príncipe Felipe de Espanha e a Medalha Grand Vermeil da cidade de Paris, uma distinção criada em 1911 e entregue pelo presidente da câmara da capital francesa. Em 2007, foi feito Comendador da Ordem das Artes e das Letras de França, é membro da Academia Americana de Artes e Letras desde 2006 e da Academia Americana de Artes e Ciências desde 2003.
A notícia da morte de Paul Auster surgiu numa noite em que a universidade de Columbia era palco de protestos pró-Palestina e que ecoavam além fronteiras. Foi lá que o autor estudou e em 1968 também se manifestou, mas na altura contra a guerra do Vietname. Esteve no conselho de administração do PEN American Center entre 2004 e 2009, uma organização que tem como objetivo defender a proteção da liberdade de expressão nos Estados Unidos e no mundo através da literatura. Assumiu a vice-presidência entre 2005 e 2007. Em 2012 insurgiu-se contra a Turquia e a China pela forma como tratavam os jornalistas e escritores. Disse que não iria visitar a Turquia e teve resposta do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan, que desvalorizou a presença do autor.
Paul Auster dizia ser eleitor do Partido Democrata, embora considerasse que as suas convicções estavam muito mais à esquerda do posicionamento do partido norte-americano. Quando Biden se candidatou nas últimas eleições não conquistou de imediato o autor, mas este viria a elogiar o atual Presidente com o decorrer do mandato. Já de Donald Trump, Auster nunca escondeu a sua opinião. Quando passou por Portugal, em 2017, descreveu-o como “zangado”, “instável” e “perigoso”. “Não sei como um homem assim consegue viver consigo próprio, a não ser que não tenha consciência”, diz, referindo-se às “mentiras constantes que saem da sua boca”, registava o Observador na altura.
Foi através do Instagram de Siri Hustvedt que o mundo ficou a saber que o marido, Paul Auster, sofria de cancro. A publicação de 11 de março de 2023, dava a conhecer que o autor tinha sido diagnosticado com a doença em dezembro de 2022 e que estava a ser tratado em Nova Iorque desde então. “Tenho vivido num local que passei a chamar Cancerland [Terra do Cancro]”, escreveu a autora. Para Auster era um local onde não há mapas nem a certeza de um passaporte que garanta a saída, disse no final de 2023 ao Guardian. “Há, no entanto, um guia que entra em contacto logo no início. Ele verifica se o nome está correto e depois diz: ‘Sou da polícia do cancro. Têm de me seguir’. E o que é que se faz? Dizemos: ‘Está bem.’ Não temos escolha, porque ele diz que se nos recusarmos a seguir ele mata-nos. Eu disse: ‘Prefiro viver. Leva-me para onde quiseres’. E tenho seguido essa estrada desde então”.
O que começou com “febres misteriosas” que chegavam pela tarde levou a um primeiro diagnostico de uma pneumonia, depois houve dúvidas sobre Covid prolongada e só depois foi definitivo que se tratava de cancro. Começou a fazer tratamento para a doença, que descreveu como “implacável” e o viria a impedir de trabalhar. Paul Auster morreu em casa, em Brooklyn, vítima de cancro do pulmão, a 30 de abril de 2024, esta terça-feira, tinha 77 anos.