Uma das poucas vezes em que Pedro Nuno Santos há-de ter pensado em António Costa nesta ida às regiões autónomas foi quando se sentou a bordo do voo da SATA a caminho dos Açores. Só tem dois anos a memória do embaraço criado pelo primeiro-ministro, enquanto candidato, quando aterrou a bordo da Ryanair nos mesmos Açores também para a campanha das legislativas. Havia então um contencioso entre a companhia e o Estado e Pedro Nuno Santos, ministro, estava no meio. Agora, ex-ministro e já líder do PS, o socialista foi cauteloso e viajou para e entre as ilhas sempre em companhias nacionais (Sata e TAP). Mas esta esteve longe de ser a mais significativa separação que fez face ao costismo neste arranque eleitoral.
É aguardado na segunda semana de campanha, quando a caravana socialista tiver o seu comício de Lisboa, na terça-feira que vem, mas por agora António Costa desapareceu dos discursos. O PS de Pedro Nuno Santos copiou-lhe a rota de 2022 e começou a campanha oficial pelas ilhas — e até foi ao costismo beber o ataque à oposição que não passou por lá neste período –, quer os resultados da governação dos últimos oito anos, mas também quer espaço para se afirmar. E foi assim que as referências ao nome do ex-líder passaram ao recato. No PS há quem ache que tenha chegado tarde e há quem assuma a necessidade de “um sentido crítico seletivo” em relação ao costismo.
Certo é que se vai assistindo a um processo de descostização em curso nas intervenções mais recentes do PS em campanha e entre socialistas assume-se que a linha é “aproveitar os bons resultados de António Costa, mas também aproveitar o que não está bem para dizer que precisa de um novo impulso”. “É ele o candidato, é ele que deve ser valorizado“, comenta ao Observador um alto quadro do partido quando confrontado com o desaparecimento e até a reafectação de resultados: é que agora, em vez de Costa, já se diz que esses mesmos resultados são do “Governo onde estava Pedro Nuno”.
Nos Açores, esta segunda-feira, Vasco Cordeiro fez, aliás, desta frase o refrão do seu discurso, ao enumerar conquistas, no salário mínimo, pensões e por aí fora, concluindo a cada uma das ideias que “no Governo que resolveu o assunto estava Pedro Nuno Santos, o próximo primeiro-ministro de Portugal”. Era liderado, por António Costa, é certo, mas isso é um passado que é preciso ter nesta campanha apenas “com conta, peso e medida“, como diz um dirigente socialista.
No partido, a leitura é que os votos conquistados pelos “feitos” de Costa já estão no PS e que são os que “terá perdido que têm de ser recuperados”. “Isso implica esse sentido crítico seletivo. Falar de corrigir, alterar, mudar, concluir”, explica um outro alto quadro ao Observador ao mesmo tempo que reconhece que “António Costa continua a ser, obviamente, um capital a reter“.
“É um equilíbrio que temos de fazer”, que permita defender o legado ao mesmo tempo que “se faz a afirmação da nova liderança”, “mas não há nenhuma descostização” programada, garante outro dirigente do topo do partido. Embora se reconheça que a linha já não é a que é usada pelo mesmo Pedro Nuno na campanha interna, ou logo depois dela, quando era necessário falar ao partido ferido e jurar que, com ele, não vinha aí nenhum grande cisma.
Mas agora no PS tem sido notada a necessidade de cortar as amarras com António Costa e as referências diretas ao ex-líder desapareceram nestes primeiros dias de campanha oficial. Nos Açores, nem Vasco Cordeiro, nem Francisco César, nem Pedro Nuno o referiram. Na Madeira, Paulo Cafôfo não tocou no nome do ex-líder e Pedro Nuno só o referiu quando foi para dizer a Luís Montenegro que se pensa como Costa, que saiu perante um caso de justiça, não pode dar respaldo a Miguel Albuquerque, se este se quiser recandidatar mesmo na Madeira.
De resto, nesse mesmo comício de Machico, o líder do PS assumiu, sim, o “orgulho pela governação nos últimos oito anos”, mas logo a seguir também o reconhecimento de que “há coisas que foram feitas que não correram bem” e também do que “precisava de ter sido feito e não foi”: “Queremos fazer de novo e fazer diferente”, disse garantindo “mudança” no PS. A ideia não é nova, mas até aqui convivia com rasgados elogios a António Costa. Agora essa segunda parte deixou de existir e a ideia de “mudança” procura fazer caminho sozinha com Pedro Nuno a aplicar sempre o mesmo molde: pede que se façam fact checks a afirmações como “o país está a crescer mais”, “dívida pública está mais baixa”, “o desemprego está mais baixo”, “os salários e pensões estão mais altos”, “o abandono escolar desceu”. E no fim conclui: “Está tudo bem? Não, não está“.
A pressão para o distanciamento
Ainda há dois anos praticamente os mesmos protagonistas destes dois dias (a exceção é Paulo Cafôfo) estiveram com António Costa no mesmíssimo terreno e corrida eleitoral e ouviram-no até usar o argumento agora repetido por Pedro Nuno Santos contra os seus adversários: que foi o único a ir às ilhas em período oficial de campanha e que os outros têm medo. Dois anos depois, só essa linha não mudou. O líder do PS é outro e é preciso cortar em definitivo esse cordão.
“Demorámos a mudar esse discurso”, comenta um socialista, que tem notado esse distanciamento mais recente face ao ex-líder. Na sexta-feira passada, na CNN, Sérgio Sousa Pinto já fazia a apologia da separação de águas o quanto antes. “Ao fim de oito anos existe um natural cansaço e, mesmo setores que tenderiam a preferir o PS, também são tentados pelo desejo de mudança e esse podia ser aproveitado vantajosamente pelo PS se enfatizasse a novidade da solução de Pedro Nuno Santos”, disse o socialista.
Sousa Pinto foi um dos mais críticos de Costa nos últimos anos, com quem cortou ligação em 2015, quando o então líder do PS montou a “geringonça”. De Pedro Nuno diz agora que “é realmente uma pessoa muito diferente da situação anterior, foi membro do Governo anterior mas protagoniza um projeto diferente, é uma pessoa diferente com características diferentes.” E concluiu que “o dilema eleitoral do PS” é estar “um pouco espartilhado entre a necessidade de assumir o legado da sua governação com todos os aspectos positivos que tem — e merecem ser valorizados — e ao mesmo tempo protagonizar uma nova esperança de liderança”.
O processo que vai agora tomando curso não é, no entanto, hostil. “Costa e Pedro Nuno estão muito articulados“, garante um dirigente já citado. Os dois continuam a falar — o próprio líder já assumiu numa das várias (e únicas) entrevistas a programas do daytime que deu, que continua a procurar conselhos do antecessor — e, logo num primeiro momento, conversaram longamente, no dia seguinte às diretas do PS. À saída desse encontro o próprio líder cessante prometeu não “assombrar” a nova liderança, baixou-lhe a fasquia ao referir que Pedro Nuno não estaria obrigado a ganhar as eleições seguintes e valorizou-o face aos adversários políticos — “dão 10 a zero”.
Os dois alinharam um congresso de transição pacífica e o novo líder nunca viu vantagens em cavar um fosso em relação a Costa, ainda que a sua saída tenha sido traumática e envolta na sempre sensível nuvem de uma situação judicial. Havia resultados da governação — com as “contas certas” à cabeça — para fazer render.
O “novo impulso” que Pedro Nuno fez de slogan não é mais do que a tentativa de estabelecer uma ponte entre esse legado e a sua proposta de futuro. Com o PS em choque com a saída inesperada de um líder e as eleições antecipadas, havia que encontrar uma fórmula que permitisse manter o partido sem fraturas internas e capaz de disputar as legislativas marcadas para dali a tão pouco tempo.
Ex-líder desajuda sempre?
Já quando o PS olha para o lado social-democrata vê a aparição de Passos Coelho na campanha eleitoral da AD como nociva para Montenegro. Uma perspetiva que não surpreende, mas além do óbvio aproveitamento da relação que recentemente se tornou mais tensa entre as duas figuras do PSD, no PS existe também uma leitura mais teórica destas aproximações dos líderes do passado mais ou menos recente.
“Ninguém vota no número dois”, comenta o mesmo dirigente, argumentando que a presença de ex-líderes traz uma certa ideia de subalternização do atual. Sobre o PS acrescenta que se “Costa está a dizer ao país que tem a solução de Pedro Nuno Santos é para o empoderar e não para ser omnipresente. Isso seria uma tutoria“. “O abuso da imagem do Costa não é boa ideia”, remata.
Quanto ao que os ex-líderes aparecidos em campanha trazem para os opositores, aí os primeiros dias de campanha socialista falam por si. Passos Coelho apareceu em Faro, ao lado de Luís Montenegro, nesta segunda-feira e, desde então, Pedro Nuno Santos não fez outra coisa que não seja apontar à colagem entre os dois sociais-democratas para assombrar com as promessas feitas em campanha que não são cumpridas quando chegam ao Governo. À cabeça apontou logo duas de Passos: a promessa de não cortar subsídios de férias e natal aos funcionários públicos, feita em 2011, e o corte nas pensões. São as únicas assombrações com que os socialistas queriam ter de lidar nesta campanha.