Em 2021, Pedro Silveira escreveu o livro “Secretários de Estado – Conflito e Liderança no Ministério” depois de um estudo para uma tese de doutoramento sobre as divergências mais e menos graves dentro dos Ministérios de vários governos portugueses, longe de imaginar a sucessão de casos e casinhos que iriam atingir o Governo de António Costa e culminou na criação de um mecanismo de transparência. Hoje, não tem dúvidas: “Este mecanismo nada nos adianta sobre a eficácia das escolhas”.
Em entrevista ao Observador, o professor universitário manifesta muitas dúvidas sobre o novo mecanismo de verificação encontrado pelo Governo. Mesmo reconhecendo alguns méritos, mas Pedro Silveira antecipa que pode não ter “eficácia” e sugere que o bom-senso político não se decreta. “Não sabemos se o convite a Miguel Alves, por exemplo teria sido retirado [com este mecanismo]”, nota.
Ainda sobre o mecanismo, o investigador não tem dúvidas: “Acaba por formalizar algo que já deveria existir e que todos acabamos por perceber que não estava a ser feito”.
“A ideia de que iríamos a ter sistema bastante mais exigente não se verificou”
O Governo apresentou o questionário que cria este mecanismo adicional de verificação. Este modelo encontrado pelo primeiro-ministro acrescenta algum grau de formalidade ou passa apenas para o papel uma verificação que já devia existir informalmente?
Acaba por formalizar algo que já deveria existir e que todos acabamos por perceber que não estava a ser feito. Encaro como um instrumento de trabalho, um incentivo, para que os convidados e os que convidam poderem ter um momento de reflexão sobre potenciais riscos reputacionais e incompatibilidades. A ideia de que iríamos passar a ter um sistema bastante mais exigente, expectativa que o primeiro-ministro alimentou, acabou por não se verificar. Para além disso, este mecanismo nada nos adianta sobre a eficácia das escolhas.
Este mecanismo teria evitado algum dos casos das últimas semanas? O convite a Alexandra Reis ou as situações de Miguel Alves e Carla Alves?
É possível que sim, se alguns pressupostos se tivessem cumpridos. Por si só não evitaria, mas se as pessoas tivessem respondido afirmativamente, se tivesse sido detetado pelo ministro ou primeiro-ministro… Mas esta é a questão que me levanta dúvidas sobre o procedimento, em que medida é que se olharia para a resposta e acharia que nesse caso as pessoas já não deviam ter sido convidadas. Agora o contexto é diferente, há uma perceção pública diferente, mas no contexto anterior ficará a dúvida se estas perguntas teriam mudado a posição quando ao convite a Miguel Alves, por exemplo.
Há sempre uma informalidade no processo?
Sim e já não estou a considerar a possibilidade das perguntas não captarem tudo. É por isso que há uma última pergunta muito aberta, para que as pessoas reflitam um pouco sobre eventuais ou potenciais problemas e riscos. A pergunta estar lá não vai criar sensibilidade política em quem responde é apenas um instrumento de reflexão mas que não evita casos futuros.
“Pedro Nuno Santos não soube, mas deveria saber”
No livro diz que a autonomia dos secretários de Estado é na gestão do dia-a-dia e cita até um ex-secretário de Estado que diz que não ia chatear o ministro com “questões e questiúnculas”. É esta autonomia que provoca depois questões como a da indemnização da TAP, em que Hugo Mendes não comunicou a decisão da administração a Pedro Nuno Santos? Houve um erro de julgamento do secretário de Estado?
Parece-me que sim. Como dizia um dos entrevistados para a minha tese: impera a autonomia do bom senso. Essa questão do bom senso também está relacionada com as nomeações. Claro que depois podemos tentar formalizar, dar incentivos, mitigar riscos mas em última análise é bom senso e sensibilidade política. A relação entre ministro e secretários de Estado está muito pouco regulada o que faz com que seja muito variável e dependa muito das pessoas. É por isso que há secretários de Estado que são quase ministros e outros que são quase diretores-gerais mais do que governantes. Esse caso [de Pedro Nuno Santos e Hugo Mendes] parece-me ser o de alguém que teve um julgamento pouco adequado que acabou por ser decisivo.
Teria alguma vantagem regulamentar essa relação entre ministros e secretários de estado?
Isso é feito através da delegação de competências logo no inicio do mandato, em que o ministro distribui as responsabilidades por cada um. Na prática, a relação é mais fluída. É difícil regulamentar uma relação que é muito natural entre dois membros do Governo, com esferas de atuação e autonomia própria. No início do mandato o ministro pode fazer um julgamento sobre as matérias atribuídas aos secretários de Estado e que quer acompanhar diretamente. No caso do ex-ministro Pedro Nuno Santos a questão é que ele não soube, mas deveria saber. Deveria saber porque o secretário de Estado lhe devia ter dito mas deveria saber porque ao atribuir determinadas pastas isso não o inibe de continuar a acompanhar o trabalho dos secretários de estado e garantir que as decisões mais sensíveis continuam a ser controladas pelo ministro. Este controlo pode ser feito através dos assessores que estão mais próximos de cada um dos secretários de Estado para garantir essa articulação. Muita gente falou na demissão de Pedro Nuno Santos como ato de grandeza, mas é apenas um assumir de uma relação normal e de uma falta de controlo da ação do secretário de Estado.
Um ministro tem sempre a obrigação de se responsabilizar politicamente por uma decisão de um secretário de Estado? Pedro Nuno sentiu essa obrigação, mas Fernando Medina não sentiu isso?
Depende muito do contexto e do tipo de decisão. Depende muito da maneira como o ministro recebe essa desarticulação. Se a sente como uma deslealdade, se reflete um mau funcionamento da relação entre o ministro e o secretário de estado, mas depende do contexto. Não é razoável que cada má decisão que um secretário de Estado tome o ministro tenha que tomar decisões políticas. O princípio de que os ministros devem assumir responsabilidade política por decisões graves parece-me um bom princípio.
“É muito difícil um Ministério funcionar com desarticulação entre ministros e secretários de Estado”
Logo no início do livro aponta o caso da saída de João Wengorovius Menezes, que era Secretário de Estado da Juventude e Desporto e saiu no início do primeiro Governo de António Costa por incompatibilidade com o ministro Tiago Brandão Rodrigues. Isso aconteceu agora no Ministério de António Costa Silva. Assim que o ministro perde a confiança nos secretários de estado, o primeiro-ministro deve promover uma remodelação o mais rápido possível? O trabalho diário fica bloqueado?
Fica praticamente bloqueado. É muito difícil um Ministério funcionar com uma desarticulação entre ministros e secretários de Estado. Ou chega a um ponto em que o ministro acaba por retirar delegação de competências formal e na prática o secretário de estado não tem uma atuação mas mesmo que não chegue ai, afeta o dia-a-dia do ministério. O que acontece muitas vezes é que apesar do pedido de saída, o primeiro-ministro espera por uma oportunidade de remodelação mais geral fazendo um cálculo político sobre a melhor altura para essa saída. E isso pode demorar meses. Alguns secretários de Estado que entrevistei queixavam-se que o processo de saída chegava a demorar mais de seis meses. Uma remodelação conjunta não atrai tanto os holofotes sobre cada um dos casos.
De resto, estes dois secretários de Estado – João Neves e Rita Marques – criticaram publicamente António Costa Silva à boleia da redução do IRC. Lembra-se de alguma caso semelhante? Isto é sintoma de quê? De desgaste interno no Governo, crise de autoridade?
Uma contradição em público é uma das manifestações mais claras de divergência entre ministro e secretário de estado. Neste caso atinge outras proporções. Segundo o meu estudo, a principal razão para as divergências são as opções políticas, a seguinte, e muito associada a esta, está relacionada com a desarticulação na comunicação, sem ser necessariamente um desalinhamento de políticas. Mais relevante que isto é a causa das divergências. Esta causa leva-nos às questões das escolhas. Porque é que existem opções políticas divergentes? Porque é que isso não foi detetado antes da nomeação? Porque é que Costa e Silva não detetou que os secretários de Estado tinham uma perspetiva diferente em relação aquela questão? Isto tem a ver com escrutínio, para além das questões da incompatibilidade. Um escrutínio bem feito permite detetar o alinhamento entre prioridades políticas. A questão é entre quem é escolhido e quem escolhe.
Porque a indicação pode vir do primeiro-ministro?
Claro e os conselhos do primeiro-ministro neste contexto são ordens. Se foi Costa e Silva a escolher nada o impede de antes de começar a trabalhar fazer um alinhamento substantivo das políticas para ver se concorda. Depois, ao longo do mandato é preciso existir contacto, reuniões e uma comunicação efetiva que muitas vezes não acontece. O fundo da questão é conseguir prevenir estas divergências.
Esta questão envolveu ainda para Fernando Medina, ministro das Finanças, que também desautorizou o ministro da Economia.
É uma questão da coordenação política do Governo que é feita pelo primeiro-ministro e na prática pela ministra da Presidência e pelo centro do Governo.
Faz sentido existir quase uma triplicação de funções de coordenação? A ministra da Presidência, uma ministra adjunta e um secretário de estado Adjunto do primeiro-ministro. Não são demasiados cargos com o mesmo foco?
Não, se existir uma divisão clara de tarefas. A ministra da Presidência tem um conjunto de pastas setoriais assinaláveis como o Secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro pode ter funções mais especificas, como a comunicação entre os vários ministérios. Se a divisão for clara não é um problema, especialmente neste contexto atual.
“Escolha de governantes? Presidente não pode ser envolvido quase a meias”
Tem memória de uma sucessão de casos desta natureza em tão pouco tempo? Consegue traçar algum paralelismo? Há quem compare ao período do fim do cavaquismo
Podemos comparar com momentos específicos em que existiram várias saídas e remodelações. No primeiro Governo de Guterres existiram várias saídas. Tivemos governos com três ministros da Economia e três das Finanças. O que é mais excecional é termos tantas saídas por questões de escândalos, de casos, de pressão mediática. Não foram todas. O primeiro-ministro enfatiza isso. Mas, mesmo considerando isso, neste período de tempo é muito difícil comparar com outro. Uma dissertação de mestrado que orientei traça as razões das demissões e não só vai existir um pico neste governo, em proporção de ministros, mas sobretudo as razões vão ser muito mais do que o costume.
António Costa chegou a sugerir uma maior articulação com o Presidente da República na escolha de governantes – a solução final acabou por ser mais recuada nesse aspeto. Mas, ainda assim, acredita que o Chefe de Estado deve ter um papel mais vigilante e/ou ativo? No passado, já houve nomes vetados por Belém.
Não me parece que esse seja o caso aqui. Mesmo o poder do Presidente, que é efetivo. Entre a proposta do primeiro-ministro e a nomeação há uma margem de manobra mas isso não significa que o Presidente possa ser envolvido num processo quase a meias.
A responsabilidade tem que continuar a ser do primeiro-ministro?
Sim, a questão de hoje não se resolve alterando o nosso sistema semi-presidencialista. Isso não resolve o fundamental. A responsabilidade é do primeiro-ministro que escolhe as pessoas adequadas para a função e é responsabilizado por isso. A introdução do Presidente da República ou até da Assembleia da República, embora aí pudesse ser feito com algumas vantagens, parece-me que podia ser contraproducente que é a desresponsabilização do Governo. Tem é que se exigir ao Governo que faça boas escolhas e se este questionário ajudar, ótimo, mas ainda está por provar.
Neste Governo em particular, muitos secretários de Estado passaram a ministros. Isso é positivo ou traz riscos para a gestão política?
Traz essencialmente o risco de dar incentivos aos secretários de Estado mais ambiciosos de, ainda durante o mandato, poderem minar o trabalho do ministro para alcançarem uma posição superior. Sinaliza que qualquer secretário de Estado é um potencial ministro e de que ser secretário de estado pode ser uma etapa de aprendizagem para se ser ministro ainda durante o mesmo governo. Existem casos, mas em Portugal não é muito tradicional. Julgo que com Sócrates havia uma indicação informal dos secretários de Estado não subirem a ministros, por causa de más experiências anteriores. Existe depois uma vantagem muito interessante, para além do primeiro-ministro querer escolher pessoas que já conhece, que é a redução do tempo de aprendizagem. Quando um secretário de Estado sobe a ministro, principalmente na mesma pasta, o tempo que tem para se adaptar e criar dinâmicas é muito menor. Um ministro novo precisa de alguns meses para se inteirar dos dossiers.
Há secretários de Estado que, pela relevância das pastas que assumem ou pela dimensão do ministério, são quase equiparados a ministros. No livro cita o exemplo de Sérgio Monteiro, que era praticamente “um ministro das privatizações” – a expressão é minha. É natural que isso aconteça em algumas pastas? E porquê?
A principal é o tamanho do ministério e para isso temos que ver o tamanho do governo. A tentação de fazer governos pequenos dá origem a mega-ministérios e isso origina secretários de Estado com pastas que seriam de ministros, o que dá autonomia, peso político, exposição mediática. Fora desse contexto de super ministérios, depende muito do perfil do ministro e do secretário de Estado. Há secretários de Estado que são grandes especialistas numa área e podem assumir uma autonomia mais relevante, se o ministro lhe der essa liberdade.