“Pais Suficientemente Bons.” É este o título do novo livro do pedopsiquiatra Pedro Strecht, que recupera a ideia desenvolvida por Donald Winnicott, influente pedopsiquiatra britânico (1896-1971), para contrariar a ânsia de perfeição dos pais de hoje e a pressão que exercem sobre os filhos para estes atingirem a excelência em todos os domínios. Uma tendência que, abrindo o caminho a constantes deves e haveres, cultiva a sensação de culpa e fracasso na relação entre pais e filhos, e contribui para o acentuar de problemas de saúde mental como a ansiedade e a depressão.
Pode não ser assim. Podemos ser “apenas” pais suficientemente bons e isso basta para sermos excelentes. Os filhos (que não têm de ser perfeitos) agradecem.
Título: “Pais Suficientemente Bons”
Autor: Pedro Strecht
Editora: Contraponto Editores
Páginas: 184
“Há cada vez menos capacidade de aceitar e de integrar miúdos e pais com perfis diferentes”
Quando acabei de ler o seu livro, lembrei-me daquelas peças de fruta perfeitas por fora, com a cor, o calibre e o tamanho certos, mas que por dentro não são assim tão perfeitas. Que problemas lhe têm aparecido no consultório que o levaram a escrever este livro?
Não me tinha ocorrido essa imagem, mas é pertinente, porque é como se cada vez mais imaginássemos que os miúdos, e nós também, enquanto pais, tivéssemos que ser perfeitos, sobretudo para fora, porque achamos que é isso que esperam de nós e nos pode dar segurança, mas, na verdade, o que interessa é a qualidade, aquilo que vamos conseguindo fazer de maneira suficientemente boa, assumindo que o normal é que todos nós, enquanto humanos, tenhamos fragilidades que às vezes não conseguimos resolver.
E, de facto, nos últimos anos, o que tenho sentido é, tanto da parte dos pais como dos miúdos, os mais crescidos, a ideia de que têm de ser os primeiros em tudo, os melhores, de não poderem falhar porque qualquer falha pode comprometer irremediavelmente todo o seu trajeto, por exemplo, na escola.
E essa pressão não é nada saudável, pois não?
Não, e por isso é que recupero este conceito do Winnicott, que já vem dos anos 1950/60, dos pais suficientemente bons, aqueles que percebem que se esforçam para dar o seu melhor e fazer o seu melhor e conseguem pensar sobre falhas ou dificuldades e aprender com elas, ultrapassá-las e, com isso, crescer, permitindo, portanto, um equilíbrio mais saudável.
Depois, há outra coisa que procuro abordar neste livro, que é, a propósito da ideia de perfeição, a forma como, hoje, a sociedade se centra muito no exterior, nas aparências, o tal aspeto da peça de fruta, e não tanto sobre o que está lá por baixo, o conteúdo.
A lógica bastante narcisista e maniqueísta das redes sociais, a competitividade, a importância da performance e do status, oito ou oitenta, tem contribuído para isso?
É mesmo isso, essa lógica do oito ou oitenta, mas na verdade, a maioria de nós situa-se algures entre o oito e o oitenta, oscilando entre várias coisas. E mesmo a propósito dos miúdos e do desempenho deles, o normal é que se, por exemplo, forem fazer uma avaliação psicológica do seu desenvolvimento intelectual, tenham áreas em que são, obviamente, mais fortes, outras em que são normais, e outras em que são mais frágeis.
Por isso é que todos temos perfis diferentes, mas hoje verifica-se uma cada vez menor capacidade de aceitar e de integrar miúdos e até pais que tenham perfis diferentes, porque há uma expectativa de formatação maior.
Por exemplo, uma coisa de que falo no livro é esta ideia de desencorajar os miúdos que querem seguir artes ou humanidades. Só se pode escolher ciências ou económicas, porque são as que têm mais saídas profissionais e empregos mais bem remunerados e, associado a isso, uma dita carreira de sucesso, digamos assim.
Acho isso muito relativo e digo sempre que o importante é os miúdos prosseguirem por aquilo que sentem verdadeiramente que tem que ver com eles. Se fizeram uma coisa de que gostam, podem ter muito mais destaque e o resto vem naturalmente.
Mas quando todas as expetativas estão depositadas nos filhos, que têm de ser todos “Cristianos Ronaldos” de alguma coisa, não é fácil deixá-los fazer o seu próprio caminho, sobretudo quando não é o sonhado ou imaginado pelos pais.
A propósito disso, há um exercício que proponho aos pais e filhos que me lerem, que é apontarem nas páginas em branco no fim do livro as áreas da vida em que se consideram mais aptos e aquelas em que mais facilmente poderão falhar. Porque, ao contrário desta ideia de perfeição aparente muito amplificada pelas redes sociais, em que se está sempre “top”, sempre “up”, a vida não é perfeita, e como dizia um adolescente em consulta: “Ninguém é tão feio como na fotografia do passe, nem tão perfeito como no que publica no Instagram.” E é verdade.
“Os momentos de pausa também são preciosos. Permitem recarregar alguma energia psíquica”
Será alguma coisa de intermédio. Mas o que resulta desta idealização e desta pressão para a perfeição?
Pode criar duas coisas. Por um lado, muita ansiedade para a atingir. E, às vezes, um fundo depressivo, não de falha ou de falta, mas sempre de insatisfação, porque eu já tenho, mas quero mais, nunca chega, que, obviamente, é prejudicial. Por outro lado, por vezes, aquilo que chamamos de vivências em “falso self”, que é um termo do Winnicott. Ou seja, as pessoas não estão sequer a ser verdadeiras consigo próprias porque estão a abdicar do que são para corresponder ao que imaginam ser a expectativa dos outros, do grupo, dos pais, dos outros pais… Isto passa-se tanto com pais como com filhos.
Vivemos então numa sociedade refém de uma ideia de êxito e sucesso, com expetativas e exigências tão elevadas em relação a nós próprios e aos nossos filhos, que semeamos frustração e infelicidade?
Sim, porque depois estamos a criar aquilo a que chamamos um ideal do eu distorcido, em que, mesmo quando as pessoas estão bem, parece que lhes falta sempre qualquer coisa. E, portanto, acabam por funcionar, ou podem acabar por funcionar, no registo de quem vai atrás da linha do horizonte e quanto mais a persegue, mais ela se afasta.
Aliás, há uns anos que a Organização Mundial de Saúde chama a atenção para o facto de as perturbações de ansiedade e do humor, muito ligadas a situações de burnout, serem a maior causa de morbilidade em saúde mental.
As pessoas depositam tanta energia psíquica neste desempenho que, obviamente, esgotam, até porque não conseguem parar nem dar espaço e tempo a si próprias e à relação com os outros. Muitas vezes isso acaba por minar, de uma maneira muito injusta, o funcionamento saudável dos pais e dos miúdos.
Aquela ideia que explora no livro, e em que eu própria me reconheci, de que temos de estar sempre a fazer alguma coisa útil, de que, se paramos, estamos a falhar, porque estamos a desperdiçar tempo que podia ser rentabilizado a cumprir as mil tarefas da lista interminável de coisas para fazer, é errada, não é?
É para isso que a sociedade atual nos orienta e acho que é mesmo uma coisa que só conseguimos mudar quando começamos a senti-la de uma maneira consciente e percebemos: “Espera, às vezes, quando tiro um bocadinho de tempo, não é tempo perdido.” Porque pode ser um tempo de integração da experiência, de “digestão”, ou até um simples tempo de recuperação física e mental para depois prosseguir.
E essa é de facto uma luta muito grande, quer para os pais, quer para os miúdos, porque para muita gente a ideia de “Ah, não está a fazer nada” traz a noção de culpa, de falha, de desperdício, de inutilidade. “Podias já estar a estudar para o exame e estás a ver filmes.” Ou, como me contava em consulta um jovem do 12.º ano, que queria entrar para um curso com média muito alta, a dada altura, queria muito ir ver um jogo do Benfica, mas isso era uma angústia porque tinha de estudar para os exames e o tempo que gastaria a ir para o estádio e a ver o jogo era tempo precioso de estudo que ia perder.
Mas, de verdade, estes momentos de pausa também são preciosos, porque permitem recarregar alguma energia psíquica. As três horas que ele dizia que ia “perder” eram horas de descontração que, com certeza, fariam render mais o tempo de estudo antes e depois.
Isso não quer dizer uma apologia do não fazer nada ou da mediocridade, não é? Mas a verdade é que o suficiente é uma coisa com que ninguém se contenta. E, no entanto, o que o seu livro nos mostra é que a excelência na parentalidade consegue-se sendo suficientemente bom. Como é que funciona?
As traduções dos originais para a língua portuguesa são sempre difíceis. O termo original é “good enough”, “good enough parents”, traduzindo à letra “bons quanto baste”, mas “Pais Suficientemente Bons” é a melhor tradução e na capa o suficientemente até aparece a encarnado para dar algum destaque, porque de verdade a ideia é exatamente essa, a de aliviar a pressão. Claro que não é uma apologia da mediocridade, da desistência, da apatia, da negligência ou da ausência de objetivos. É exatamente o contrário. É a procura de retirar a pressão que, na prática, resulta muitas vezes nessa desistência, apatia, sofrimento e até negligência.
A ideia de pais suficientemente bons tem que ver com a qualidade da educação, com cuidarmos melhor de nós e dos filhos, com termos tempo para eles, num processo em que está subjacente saber que ninguém é perfeito. Estes pais conseguem lidar bem e integrar a frustração e momentos em que naturalmente falhamos, analisar e perceber falhas e dificuldades e não ficar presos nem na repetição das falhas nem numa certa culpabilização injusta pela forma como se agiu ou decidiu, que acontece muito com os adultos, mas também com os miúdos.
“Estamos a perder a capacidade de ouvir”
A culpabilização e a ruminação podem ser paralisantes e, sobretudo, são muito pouco produtivas?
Sim. Nem tudo é uma linha reta. Ou seja, às vezes subimos três degraus, depois paramos um bocadinho no patamar, subimos mais três e depois descemos um. O trajeto não tem de ser linear, pode incluir vacilações, mas se o percorrermos com alguma leveza, empatia, compreensão e cuidado, chegamos aonde queremos, mas de uma maneira muito mais harmónica. Porque a ideia de perfeição pode criar uma rigidez tão grande no desempenho e até na relação que, depois, não dá espaço a uma entrega emocional genuína.
Há uma frase muito comum que os pais me dizem: “É uma pena que eles não venham com manual de instruções.” Eu respondo sempre que ainda bem, porque é por aí que vamos seguindo, aprendendo e construindo.
Não vêm com manual de instruções e por isso também é importante ouvir mais os miúdos, perceber o que querem?
Há um déficit de escuta no ambiente em que vivemos hoje, claramente. O Tolentino [de Mendonça] disse uma frase muito engraçada num artigo do Expresso, que era que, se calhar, no futuro seria necessária a profissão de escutador ou ouvidor profissional.
Mas a ideia é que, de verdade, numa sociedade com imenso ruído, estamos a perder a capacidade de ouvir, que implica disponibilidade para nos descentrarmos de nós e nos centrarmos no outro, implica o reconhecimento de que o outro existe para além de nós, que pensa e sente de formas que podem coincidir com as nossas em alguns aspetos e noutros não e que podemos entender-nos e construir o caminho por aí. Isto vale para pais e filhos, quando já são mais crescidos.
Mas não é também importante estabelecer regras e limites e criar disciplina. Os miúdos não precisam também de balizas para crescerem bem?
Claro e essa é uma das questões de que falo no livro. Há realmente uma fatia significativa de pais que têm dificuldade em impor limites, em dizer não, e, portanto, em dar aos filhos a capacidade de gerir situações de contrariedade e de frustração, por mais pequenas que sejam, criando pequenos tiranos.
Outra face desta moeda é aquele clássico de que, quando alguma coisa não corre como esperado, a culpa nunca é do filho. Se o problema é na escola, a solução é mudar de escola porque aquela não está a funcionar. Se o miúdo não é o melhor da equipa de futebol, a culpa é do treinador. E depois ainda há outra situação frequente que é a filha teve 18 a Matemática e a pergunta é logo “quanto é que teve a não sei quantas?”. Isto é muito mais comum do que possamos imaginar e os miúdos acabam por interiorizar o discurso dos pais, de que têm de ser as estrelinhas, os melhores e isto resulta num funcionamento muito rígido, omnipotente e com má gestão da frustração e da contrariedade.
“Os pais suficientemente bons conseguem um equilíbrio em que há sempre uma aprendizagem mútua”
Ao contrário do que se poderá pensar, isto não tem nada que ver com o conceito de amor incondicional de que Donald Winnicott também fala como elemento fundamental da relação dos pais suficientemente bons com os filhos. De que amor incondicional fala o Winnicott?
É exatamente o oposto. O conceito de amor incondicional do Winnicott parte muito da ideia de que, sobretudo na relação com os filhos, damos sem esperar automaticamente um retorno. Damos porque simplesmente é a nossa função como pais, que é altruísta. Criar na criança ou adolescente ou adulto a firme certeza de que é possível ultrapassar situações sentidas como problemáticas e que nesses difíceis momentos não estará só, podendo esperar do outro o que Donald Winnicott descreveu como o conceito de amor incondicional.
O que acontece muito hoje, mesmo na relação entre pais e filhos, é que tudo é muito pautado pelo retorno e pela cobrança?
Sim, claro que, se descascarmos tudo isto, o que predomina, como é óbvio, é a ligação afetiva dos pais com os filhos e o querer o melhor para eles, mas há pais que, por exemplo, no discurso, são capazes de dizer coisas como: “Eu já lhe disse que se continuar com estas notas, o tiro das explicações (ou vai para o público, no caso de andar numa escola privada), porque não vale a pena o investimento que estou a fazer.” Dizem mesmo isto. É uma lógica de deve e haver, que como é óbvio não é mal-intencionada, mas que pode passar mensagens erradas, que em última análise podem levar à desistência.
São estímulos que acabam por ser negativos?
Sim, acabam por ser paralisantes. A fasquia é tão elevada e a pressão tão forte que alguns miúdos, sentindo que não conseguem, nem vão a jogo. É muitas vezes desta lógica que resulta um grupo importante, sobretudo de jovens, a que se convencionou chamar os “nem-nem”, que nem estudam nem trabalham, não querem crescer, mas também já não são miúdos, e acabam por estar paralisados, numa posição que inconscientemente é de medo, de não ter o desempenho esperado, do julgamento dos outros, da responsabilidade e da autonomia.
Como é que se consegue o equilíbrio?
Os pais suficientemente bons conseguem um equilíbrio, que é um equilíbrio evolutivo, ao longo da vida, em que há sempre uma aprendizagem mútua. Nós aprendemos com eles e eles connosco. E evolutiva porque, obviamente, as coisas também vão mudando e avançando, de acordo com as fases da vida. E nesse processo integramos as coisas que correram bem, que esperamos que sejam a maioria, e as coisas que correram mal, que aceitamos e corrigimos, aprendendo com elas. Acho que a ideia do balanço é isso.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
Uma parceria com:
Com a colaboração de: