O Ministério Público recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra para não levar o presidente da Câmara de Pedrógão Grande a julgamento, no processo principal que investigou o caso, mas considera que há indícios de crime, por parte de autarca, no fogo de 2017 e quer que ele seja acusado num processo à parte. Foi isso que escreveu a magistrada Ana Simões, que acusou 12 responsáveis — entre autarcas, bombeiros e funcionários da EDP e da Ascendi –, num dos três recursos que enviou para aquele tribunal superior, depois de o juiz de instrução ter incluído Valdemar Alves na lista de arguidos a levar a julgamento pelas 66 mortes no incêndio de junho de 2017.
Dois anos depois de as chamas terem deflagrado numa aldeia do concelho de Pedrógão Grande, presidido por Valdemar Alves, ainda não se sabe bem quantos arguidos vão a julgamento. O processo chegou à fase de instrução — aquela que determina se o caso segue para julgamento — com 12 arguidos acusados pelo Ministério Público (MP). No lugar de Valdemar Alves, estava o seu vice-presidente como responsável.
Perante esta acusação, uma familiar de quatro vítimas do fogo (perdeu os pais e os avós) decidiu apresentar várias atas de reuniões de câmara que provavam que Valdemar Alves nunca tinha delgado no seu vice-presidente a responsabilidade da gestão de combustível nas áreas florestais, pedindo, por isso, para sentar também o autarca no banco dos réus. O juiz de instrução, Gil Vicente, acabou por decidir constitui-lo arguido — mesmo não tendo sido acusado pelo MP — e levá-lo a julgamento no lugar do seu vice-presidente. Decidiu também que os comandantes dos bombeiros Mário Cerol e Sérgio Gomes não podiam ser responsabilizados pela proporção que o fogo tomou e as suas consequências, ao contrário do que defendia o Ministério Público, que não gostou da decisão.
Num dos três recursos que enviou, depois, para o tribunal superior, e a que o Observador teve acesso, a procuradora Ana Simões explica porquê. No caso de Valdemar Alves, a magistrada considera que o despacho que o pronúncia é inválido por duas razões: primeiro, porque a instrução relativamente ao autarca foi pedida por uma assistente que, na ótica da procuradora Ana Simões, não tinha legitimidade para o fazer. Depois, porque o processo nunca visou Valdemar Alves.
Ainda assim, no recurso enviado para o Tribunal da Relação de Coimbra, em setembro, a procuradora não questiona que existam “indícios suficientes que permitam responsabilizar criminalmente Valdemar Alves”. Pelo contrário: diz que, “em razão da prova documental junta pela assistente, o MP recorrente entende que eles existem”. No entanto, para investigar essas suspeitas, o MP deverá mandar extrair uma certidão, ou seja, o autarca será alvo de um processo à parte, diferente do principal, que conta com 12 arguidos acusados dos crimes de homicídio por negligência e ofensa à integridade física também por negligência, lê-se no recurso.
Constituído arguido a pedido de um assistente
Carina Abreu foi admitida como assistente no processo por ser filha e neta de quatro vítimas mortais do fogo. A sua família, segundo descreve o despacho de acusação, morreu na EN 236-1, o que aos olhos do MP se tratou de quatro homicídios por negligência. Quando terminou a investigação, Carina Abreu pediu a abertura da instrução. Mas para a procuradora Ana Simões, a assistente só poderia pedir a instrução dos arguidos acusados pelos crimes cometidos contra a sua família — e não contra alguém que nem sequer era visado no processo. “Note-se que a acusação não é pelo crime de incêndio florestal”, lembra.
Para o Ministério Público, não podendo haver instrução nesta situação, também não podia o autarca ser pronunciado, ou seja levado a julgamento, pelo crimes. Se o autarca nunca foi investigado ou alvo do inquérito, também não podia ser alvo da pronúncia, porque nada havia a confirmar sobre a sua intervenção no caso. Essa decisão foi mesmo alvo de um esclarecimento por parte do MP, feito à data da entrega do recurso, dizendo que aquela contestação “assentou em razões meramente jurídicas, das quais não pode abdicar enquanto defensor da legalidade democrática”.
No recurso de nove páginas, a procuradora aproveita ainda para justificar porque nunca visou Valdemar Alves na investigação: “a documentação camarária”, então entregu,e “sustentava a responsabilidade pela gestão de combustível nas vias” no vice-presidente José Graça e na técnica superior em Engenharia Florestal, Margarida Gonçalves. E foram as atas entregues pela assistente que vieram revelar que, afinal, ele não delegou as competências no seu vice-presidente.
Ana Simões pede, então, ao tribunal superior que revogue o despacho de pronúncia e o substitua por um outro que não leve Valdemar Alves a julgamento no processo principal. Já na parte do documento dedicada às conclusões, não volta a referir a questão dos indícios criminais e da necessidade de abrir um inquérito à parte.
Autarca também recorreu com argumentos semelhantes
Também Manuel Magalhães e Silva, advogado de Valdemar, recorreu para a Relação com um argumento semelhante: a instrução relativamente ao autarca era “legalmente inadmissível”. E foi mais longe, tendo em conta que, no requerimento de abertura de instrução de Carina Abreu, a assistente pede que Valdemar seja também acusado dos crimes infringidos a outras vítimas dos incêndios, com as quais não tem qualquer relação familiar, pedindo que seja pronunciado por sete crimes de homicídio por negligência e quatro de ofensa à integridade física por negligencia, três dos quais graves.
“A assistente (…) poderia ter requerido, com sucesso ou não, mas sem que lhe falecesse legitimidade para o efeito que [Valdemar Alves ] fosse acusado pelo homicídio dos seus avós e pais, por conduta análoga, como pretende no RAI [requerimento de abertura de instrução], à dos arguidos José Graça e Margarida Gonçalves. Mas para o que tinha legitimidade, não o fez”, lê-se no recurso a que o Observador teve acesso.
Valdemar Alves foi pronunciado por sete crimes de homicídio por negligência, quatro de ofensa à integridade física por negligência, dois quais graves, por não ter tratado ou mandado tratar cortar as árvores e a vegetação existente nos terrenos, tendo assim uma faixa de manutenção de combustível capaz de evitar a tragédia que se viveu naquele ano de 2017. Mas, para a defesa, “não há provável relação causal” entre as mortes e as lesões corporais. E, para tal, cita o relatório da comissão técnica independente que revela que não “não existem evidências” que permitam associar as mortes em espaço aberto ou dentro das viaturas ao não cumprimento de medidas de gestão de combustível. No limite, considera o advogado, devia aplicar-se o princípio do in dubio pro reo, ou seja, em caso de dúvida, favorece-se o arguido.
E o vice-presidente de Pedrógão, José Graça?
Se, por um lado, o juiz de Leiria, Gil Vicente, considerou que Valdemar Alves devia ser responsabilizado no lugar do seu vice-presidente José Graça, que acabou por não ser pronunciado, o MP pediu ao tribunal da Relação para o levar a julgamento pelos mesmo crimes, num outro recurso. A procuradora considera que, apesar de não ter havido uma delegação de poderes formal, não significa que tal não se lhe incumbisse. Ainda assim, das câmaras de Figueiró dos Vinhos e de Castanheira, apenas acusou os seus presidentes, Jorge Abreu e Fernando Lopes.
“É indiferente para a responsabilização criminal do arguido que a referida delegação tenha existido ou não”, refere, comparando o caso ao da arguida Margarida Gonçalves, também funcionária da câmara, que será levada a julgamento. “Ainda é mais incompreensível”, escreve a procuradora ao tribunal superior.
As atas entregues por Carina Abreu “em nada contrariam o que acima se disse, apenas indiciam que também ao Presidente da Câmara cabia tal tarefa”, justifica. Para o Ministério Público existem provas suficientes que mostram que o vice-presidente tinha o poder de facto de efetuar, por si ou por intermédio dos funcionários que lhe respondiam, pela gestão de combustível dos espaço florestais pelo que deve ser pronunciado pelos mesmos crimes que já tinha sido na acusação.
Falta de meios, erros do Governo e a força da natureza. As defesas dos arguidos de Pedrógão Grande
MP também recorreu da decisão de não levar dois bombeiros a julgamento
O juiz de instrução decidiu também não pronunciar Sérgio Gomes — na altura, comandante distrital de operações de socorro de Leiria — e Mário Cerol — o seu adjunto. Para o magistrado “as ações e omissões” destes arguidos não contribuíram para que o incêndio fosse contido numa fase inicial. Cerol, diz a decisão, quando assumiu o comando, pelas 16h30, “viu-se forçado a ver uma realidade que em nada tinha contribuído” e, de facto, mudou o posto de Comando de Escalos Fundeiros, onde o fogo deflagrara, porque essa ocorrência não estava resolvida, “tendo o Comando necessidade de fugir, pois havia perigo para si e para os outros”. Já quanto a Sérgio Gomes, desde o momento em que a Proteção Civil justifica a sua ausência, “tudo o resto é irrelevante, pois não lhe era exigível outra conduta”, considera Gil Vicente.
“O sucesso da extinção do fogo ocorreu vários dias depois, o que indica que estava imparável após uma hora de ter eclodido. De facto, o que resulta à saciedade dos autos, é a demora dos meios, atentas as distâncias a Pedrógão Grande, fator esse de grande importância, atenta a rapidez do percurso do fogo, como documenta a prova”, lê-se na decisão instrutória. Até mesmo em relação a Augusto Arnaut, o comandante dos Bombeiros de Pedrógão, que foi o primeiro a chegar ao terreno e é que é o único bombeiro pronunciado para ir a julgamento, o juiz considera que a acusação contra ele é atenuada pelo facto de haver um vento muito forte e a negligência pública e privada da gestão de combustível.
Para Ana Simões, no entanto, também estes arguidos devem ser julgados. Sérgio Gomes, acusado de 63 crimes de homicídio por negligência e 44 crimes de ofensas à integridade física por negligência, 14 dos quais graves, devia, aos olhos do Ministério Público, ter previsto a mobilização de meios para um ataque inicial em caso e incêndio, como um meio aéreo e mais meios terrestres. A procuradora acredita que, se tal tivesse sido feito nas primeiras duas horas de incêndio, o fogo teria sido contido, baseando-se nos relatórios feitos pela comissão independente. Para a magistrada, é “inócuo” que o comandante tenha justificado a sua falta, que estivesse a exercer as suas funções a partir do hospital — para onde se dirigiu, por causa de uma indisposição —, por telefone, com autorização superior e que na nível disciplinar nada lhe tenha sido apontado, porque as medidas deviam ter sido tomadas antes. Assim que soube das condições meteorológicas, devia ter ter pré-posicionado meios de combate, mesmo aéreos.
Quanto a Mário Cerol, acusado do mesmo número de crimes que os do seu comandante, o Ministério Público contraria a informação de que, pelas 16h30, o fogo estivesse descontrolado — mas sim pelas 19h00, referindo que a mudança de comando, o não acudir às chamadas de socorro que lhe chegavam e o não ter evacuado algumas zonas e cortado algumas estradas mostram que deve ser responsabilizado. O MP considera que todas estas decisões contribuíram para o desfecho
O fogo que deflagrou em Escalos Fundeiros, Pedrógão Grande, matou 66 pessoas, feriu 250 e consumiu 50 mil hectares de floresta, acabando por chegar aos concelhos à volta, alguns dias antes de começar o verão de 2017. O debate instrutório do processo que procura os culpados arrancou este ano de 2019 no Tribunal de Leiria, com os arguidos a argumentarem com a falta de meios de combate aos incêndios, mas também com uma questão incontornável: as condições meteorológicas. O juiz de instrução decidiu levar dez dos treze arguidos a julgamento e agora cabe ao Tribunal da Relação de Coimbra pronunciar-se sobre todos os recursos, incluindo os três do Ministério Público.