Não é só do lado da receita que os especialistas em Segurança Social apontam fragilidades às contas do Governo enviadas ao Parlamento sobre os impactos que teria a lei das pensões na sustentabilidade do sistema, se fosse aplicada em 2023. Além de não ter em conta que as receitas contributivas estão a evoluir acima do orçamentado, também não assume uma provável redução das despesas com subsídio de desemprego. Ao mesmo tempo, há outras variáveis que são esquecidas, mas que têm um efeito contrário no sistema: como o impacto da atualização do Indexante de Apoios Sociais (IAS) — uma decisão ainda não tomada pelo Executivo — nos gastos com o subsídio de desemprego ou os estilhaços de uma eventual recessão em 2023 no desemprego, que retiraria receitas contributivas.

Nos cálculos que apresentou ao Parlamento sobre o impacto que teria a lei da atualização das pensões na sustentabilidade da Segurança Social caso não tivesse sido suspensa, o Governo apenas atualiza as projeções no lado da despesa, e não no lado da receita, onde mantém as mesmas previsões de quando apresentou o Orçamento do Estado para 2022, ou seja, há cinco meses. Mas, segundo avançou esta terça-feira o Negócios, as receitas com contribuições sociais estão a subir este ano acima do esperado. Por essa via, nas contas do economista Armindo Silva, citado pelo jornal, o Executivo estará a ignorar um contributo de 1.300 milhões na receita.

Pensões. Governo estará a ignorar mais de mil milhões de receitas das contribuições nas contas

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Ao Observador, o economista reitera que o Governo parte das receitas previstas no Orçamento de 2022, um valor que “está completamente ultrapassado”. A execução orçamental até julho evidencia um aumento das receitas com contribuições e quotizações de 12,5% face ao mesmo período do ano anterior. “Se essa variação se mantiver ao longo do ano, teríamos, no final do ano, acumulado uma variação das receitas em contribuições em valor nominal de 12,5%, um aumento bastante importante das receitas“, explica.

O documento do Governo, com base em cálculos do Gabinete de Estratégia e Planeamento (GEP) do Ministério de Trabalho, estima, tal como estimava em abril, que as receitas com contribuições se fixem em 21.166 milhões de euros em 2022. Um aumento de 12,5% faria subir as receitas para 22.436 milhões — um valor que está 1.270 milhões acima do orçamentado para 2022. “Há um problema de metodologia no cálculo. As receitas deviam ter sido ajustadas porque a diferença de valores é muito grande”, resume.

Armindo Silva não tem cálculos sobre em que medida é que essa revisão atrasaria as previsões do Governo para os primeiros défices do sistema e, por consequência, do esgotamento do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS), a “almofada” que serve para pagar as pensões quando o sistema é deficitário. Mas lembra que um valor superior da receita significa mais verbas para o FEFSS (que é alimentado, entre outros, pelos saldos positivos do sistema previdencial), “o que vai naturalmente, desse ponto de vista, influenciar a sustentabilidade futura“.

Manuel Baganha, que liderou vários anos o Instituto de Gestão de Fundos de Capitalização da Segurança Social (IGFCSS), que gere o FEFSS, também salienta esses ganhos para o FEFSS caso as receitas sejam superiores e a despesa inferior ao previsto. O especialista concorda que as receitas deviam ser atualizadas — por via dos aumentos salariais que, embora não igualem a inflação, tentarão compensá-la parcialmente. E isso terá efeitos nas contribuições. Mas não acredita que uma revisão desse segmento mude significativamente o destino do sistema. “Estou convencido de que com aumentos de 8%, considerando uma compensação pelo crescimento da receita, haveria sempre uma antecipação dos saldos negativos”, diz, embora “não tão negativos matematicamente” quanto diz o Governo.

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Nas contas apresentadas pelo Executivo, a atualização tal como definida na lei faria aumentar as pensões em entre 7,1% e 8%, o que teria um impacto na despesa de 1.076 milhões de euros (mais 5,5%), em 2030, face ao que se previa em abril, no OE. Os primeiros saldos negativos “seriam antecipados para o final da década de 2020”, uma cenário mais negativo do que em abril (no OE fala-se no “final da década de 2030”. Já a almofada das pensões iria esgotar-se “no início da primeira metade da década 2040“, em vez de na “primeira metade da década de 2050”, como previa em abril.

Por outras palavras, o Governo tem dito que a atualização tal como dita a lei retiraria 13 anos de vida ao FEFSS. “Tendo em conta a evolução entre o OE 2015 e o OE 2022 da sustentabilidade da Segurança Social, alicerçada no crescimento do emprego e dos salários, o aumento regular das pensões em 2023 colocaria em causa metade da evolução positiva já alcançada”, lê-se no documento.

Miguel Coelho, ex-vice-presidente do Instituto da Segurança Social e especialista em Segurança Social, também aponta ao Observador críticas à simulação do Governo, antecipando um aumento dos salários maior do que o esperado, o que fará fazer subir a base de incidência das receitas. “Eu não compreendo como é que num exercício desta importância não se seja rigoroso. À luz daquilo que é público, parece existir falta de rigor na apresentação das simulações“, refere.

O especialista em Segurança Social concorda que, mesmo com receitas mais otimistas, o sistema continuaria a tornar-se deficitário, ainda que não tão cedo quanto estima o Executivo. “Mesmo que seja feita essa correção [no lado da receita] vai haver desequilíbrio, não será é tão acentuado. Porque se corrigir o lado da receita ela nunca lhe vai compensar a despesa. Isso posso garantir”, afirma.

Porém, se por um lado admite que as receitas sejam superiores ao projetado pelo Executivo, há um efeito que antecipa contrário nos anos seguintes, 2023 e 2024, por via de uma recessão que considera muito provável, e que terá efeitos nos anos seguintes. “Estamos nas vésperas de uma enorme recessão, as perspetivas de emprego, ou de quase pleno emprego, também deviam ser corrigidas. Para 2023 e 2024 vamos ter um agravamento do desemprego e consequentemente menos receita”, antecipa, admitindo mesmo que a taxa de desemprego chegue aos 8%, 9% “no horizonte de dois anos” (em agosto, estava nos 6,4%).

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Despesa também não conta a história toda

Mas não é só do lado da receita que há fragilidades na metodologia do Governo. O economista Armindo Silva refere que, “devido à boa situação no mercado de trabalho este ano, é muito provável que a despesa com o desemprego baixe” em relação ao orçamentado para 2022. A execução orçamental até julho indica que a despesa com as prestações de desemprego (que inclui não só o subsídio de desemprego, mas também o subsídio social de desemprego, por exemplo) caiu 23,4% até julho face ao mesmo período do ano anterior.

A manter-se esta redução, “isso representaria uma poupança de 316 milhões de euros (20%) em relação ao orçamento para 2022″, calcula. Esse cálculo, alerta, inclui despesas não só do sistema previdencial — o das pensões — mas também do sistema de cidadania, que abrange as pensões não contributivas, pelo que o valor da poupança não pode ser todo alocado ao sistema das pensões. Mas ilustra a fragilidade das projeções do Executivo.

O Governo também não tem em conta a possível atualização do Indexante de Apoios Sociais (IAS), que serve de referência a prestações sociais como o limite máximo e mínimo do subsídio de desemprego, ou no subsídio por morte. O Executivo ainda não disse o que vai fazer ao IAS, um referencial atualizado anualmente com base na inflação e no crescimento da economia, como as pensões. Com a inflação em alta, o IAS poderia disparar, mas o Governo pode optar por travar esse aumento (também tal como fez com as pensões). Questionado sobre o tema, o ministro das Finanças e a ministra da Segurança Social já disseram que o Governo não tomou nenhuma decisão e que essa decisão só será conhecida no Orçamento do Estado para 2023, que será apresentado a 10 de outubro.

Os cálculos do Governo foram enviados ao Parlamento após insistência do Bloco de Esquerda, que numa audição parlamentar na semana passada, pediu várias vezes à ministra Ana Mendes Godinho que explicasse os cálculos que levavam o Governo a assegurar que o cumprimento da lei das pensões tiraria 13 anos de vida ao Fundo de Estabilização da Segurança Social. Segundo o Executivo, essa lei daria aumentos entre 7,1% e 8% aos pensionistas em janeiro; sem ela, os aumentos nesse mês vão variar entre 3,43% e 4,43%. E se é certo que em 2023 não há perda para os pensionistas (já que esse aumento conjugado com o bónus de meia pensão pago de uma só vez em outubro totaliza o valor de atualização que a lei determina), o mesmo não acontece em 2024 e adiante: nesses anos, a base de atualização será menor do que poderia ser se a lei fosse aplicada.

Ana Mendes Godinho não explicou nessa audição em que cálculos se baseou, mas acabou por ceder após um requerimento feito pelo Bloco e pedidos de transparência por parte do Presidente da República. A coordenadora dos bloquistas, Catarina Martins, não ficou satisfeita com as explicações e considerou que os cálculos do Executivo “são uma profunda aldrabice”. O partido vai pedir a audição do Grupo de Estudos e Planeamento da Segurança Social. O Chega também já disse que vai fazer o mesmo.

“Acho absolutamente inaceitável que o Governo tenha dito que precisava de cortar na evolução das pensões sem nunca mostrar cálculos. E depois de o BE exigir esses cálculos, ter mandado um documento para a Assembleia da República que é ele, também, mais um truque, mais uma aldrabice”, criticou Catarina Martins. A ministra Ana Mendes Godinho respondeu que as contas “são transparentes“, insistindo que revelam “que as opções que o Governo tem tomado são sempre opções com base em responsabilidade e em prudência”.

O Observador questionou o Ministério da Segurança Social sobre os impactos não considerados nos cálculos no lado das receitas e das despesas, e se vai pedir alguma estudo ou avaliação do impacto na Segurança Social a outras entidades, mas não obteve resposta.

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