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Floribella, Malucos do Riso, Narcos e Shameless — todos estes programas de televisão, por mais díspares que possam parecer, têm uma coisa em comum. Contam com Pedro de Matos Fernandes no seu elenco. O nome não lhe diz nada? É normal, há muitos, muitos anos que Pêpê Rapazote já não o usa. “Sempre me chamaram Pêpê, desde miúdo”, explicou ao Observador o ator que recentemente se juntou à curta lista de portugueses que conquistaram um lugar ao sol nos EUA, neste caso, graças à mega-produção da Netflix, “Narcos”.
Nesta Observador Summer Session, além do lado descontraído revelou um lado mais incisivo, opiniões mais sérias que vão do estado da saúde em Portugal, por exemplo, à forma como o nosso país ainda tem uma série de barreiras a ultrapassar no caminho rumo ao sucesso (económico, acima de tudo) no mundo do cinema ou da ficção, no seu todo. Até houve espaço para Pêpê explicar a forma como vê a Venezuela de Nicolás Maduro, opinião mais que fundamentada, dado que o ator chegou a viver nesse país sul-americano durante a adolescência, nos anos 80, no tempo em que Caracas “era um paraíso”.
Sempre com pinta de galã, este homem que em tempos trocou a arquitetura — sua área de formação académica — pela modesta Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul, em Lisboa (local onde deu os seus primeiros passos no mundo da representação) diz que quer “morrer a trabalhar” e fazer máximo uso do facto de o trabalho de ator não ter “data de validade”. Até lá, quer tentar ir mudando o pouco que conseguir para que áreas como o teatro (uma das suas favoritas), o cinema e outros recantos do audiovisual “made in Portugal” consigam exprimir todo o seu potencial, especialmente fora do país.
[Veja no vídeo o best of da entrevista a Pêpê Rapazote no terraço do Observador]
“Cá em Portugal não se recebem horas extraordinárias e lá sim, a 200% e 300%”
Escolheste um gin tónico com pimenta preta para esta Summer Session. Por alguma razão em especifico? Está muito calor e é uma coisa que, quando bem feita — não sei se é o caso [risos] –, é muito boa, muito agradável. Há muito tempo que a bebo, desde adolescente, dos primeiros copos. É muito equilibrada.
Quando estás nas gravações de um projeto internacional, como os dos EUA, no final, quando acabam de gravar tudo, vão todos beber um copo?
Há tempo para confraternizar, mas não propriamente uma happy hour a seguir ao trabalho. Às vezes as gravações acabam às duas da manhã, meia-noite… Terminamos em tempos separados: eu posso-me despachar primeiro mas a pessoa com quem gostava de beber um copo termina três horas depois, por exemplo. Nessa altura já fui à minha vida, naturalmente — ou vice-versa. Não é possível no final de um dia de trabalho fazermos isto porque não temos horários muito normais.
Como funciona a vossa agenda diária?
O normal são 12 horas de trabalho — desde o momento em que chegamos à altura em que saímos. Em qualquer lado: em decors reais, no sítio onde estamos, onde for, e podemos fazer um bocadinho de tudo, de cenas mais físicas, a coisas de conversa. Nos EUA, principalmente, os sindicatos funcionam tão bem, tão bem, e têm tanta força… Principalmente os dos atores, argumentistas, técnicos, etc. As horas extraordinárias são muitíssimo bem pagas, ninguém se queixa por trabalhar 15 ou 16 horas. Quando cá se pensa que “lá fora se trabalha muito menos”, não é nada assim. Ninguém te diz nada se já tiver ultrapassado o seu limite de horas. Quanto mais tempo extra, melhor. Há dias que podem ser como os nossos de cá, com 15, 16 horas de trabalho. A diferença é que cá não se recebem horas extraordinárias e lá sim, a 200% e 300% — como devia ser em qualquer parte do mundo. É muito interessante pensar nos técnicos do cinema, isto a propósito de um tema que me é muito caro, cá em Portugal.
Mudança de 180 graus, desculpa Diogo: os recibos verdes. Sempre fui independente como trabalhador. Era arquiteto antes, passei recibos de toda a variedade, até decoração cheguei a fazer. Sempre tive atividade aberta como verdadeiro profissional independente. Só se fala nos falsos recibos verdes e nas medidas a tomar relativamente a isso, sendo que o Estado é o que mais emprega. Eu pergunto-me muitas vezes: então e os verdadeiros recibos verdes? Isto é uma loucura! Temos de pagar 34% de Segurança Social porquê? Porque somos empregados e patrões? Esta esquizofrenia… Nos EUA, por curiosidade, quando vamos descontar, se formos solteiros, o número de dependentes é um porque se eu sou patrão e empregado para umas coisas, também sou para entregar o IRS, não é? Então tenho um dependente que sou eu mesmo. Vamos levar a esquizofrenia até ao fim, é muito engraçado isso. Outra coisa engraçada é que, relativamente às horas extraordinárias — e paramos já com este tema, que não é muito interessante — é que elas acumulam na Segurança Social . Ou seja, se eu trabalhar 20 horas por dia durante 25 anos, se calhar posso-me reformar daí a 25 anos… Eu descontei e paguei Segurança Social relativa a 45 anos ou 50 de trabalho, é lógico que me reforme cedo. É lógico que tinha profissionais a falar comigo que tinham 49 anos e já podiam estar reformados.
Já que falamos de reformas: vês-te a reformar-te, um dia destes?
Não. Uma das vantagens da representação — ou da arquitetura, antes disso — é o facto de ser uma profissão que nos permite, enquanto houver cabeça, levar o ofício até ao fim, até desejarmos. Ainda há uns dias o Robert Redford anunciou que acabava a carreira, tem 82 anos. Não é um tipo de anúncio que se possa fazer, mas sempre acaba com alguma especulação e representa um desligar devagarinho, mais simpático, para um ator grande como ele. Mas espero morrer a trabalhar! Haja cabeça para isso, porque acho que não há coisa mais importante que termos saúde mental. A física é muito importante mas, nos tempos que correm, em que somos cada vez mais vítimas de doenças neurológicas degenerativas, tenho um medo desgraçado em pensar em Parkinsons, Alzheimers e companhia.
“Os taxistas reconheciam-me só pelo retrovisor, gritavam logo ‘Chepe!'”
O Chepe, a tua personagem no Narcos, tornou-se bastante popular. Estavas à espera que isso acontecesse?
Não fazia ideia. Apercebia-me cada vez que saía um episódio — e alguns deles, que acabaram excluídos, tiveram cenas muito fortes, muito boas, algumas das favoritas do realizador principal, o Andrés Baiz, que ficaram de fora e eram minhas. Quando saíam os episódios, apercebia-me: “Espera aí, as melhores cenas foram escritas para mim…” É verdade! Era o que eu sentia! As mais emblemáticas… Uma das que falharam foi uma com a minha mulher, em Nova Iorque, muito engraçada: era uma cena enorme, com cinco páginas, em que estou a chegar a casa, precisamente do barbeiro, e a minha mulher que gostava muito de decoração, recebia-me estando eu a vestir umas “overalls”, jardineiras, uma coisa que ele vestia muito mesmo tendo em conta que morava em Park Avenue, com vista para o Central Park, num apartamento que era o mais luxuoso possível. O nosso decorador, muito enfemininado, disse-me: “Trabalhadores pelo elevador de serviço, ‘tá bem?”. Eu ficava a olhar para ele (porque o Chepe, entre outras coisas, não falava inglês. Viveu 15 anos em Nova Iorque e dizia duas ou três palavras, o que é sinónimo de grande poder — Queres falar comigo? Aprendes espanhol… Acho isto maravilhoso!). Tinha cenas muito muito engraçadas e não estava à espera que tivesse esse sucesso, mas sabia que as cenas eram boas. Cabia-me a mim executá-las bem.
Mas recoheciam-te na rua?
Na Argentina tive reações como nunca imaginei. Toda a gente me conhecia, não pagava um almoço. E não era oferta de um cliente, era do dono, mesmo, que me pedia para tirar uma foto com o letreiro do espaço por trás. “Amanhã volte porque aqui será sempre convidado!”, diziam-me. Isto é maravilhoso, um tipo sente-se mesmo bem-vindo. A Argentina, a seguir ao Canadá, é o país mais culto e com a história mais pesada. Tem um século XX absolutamente estonteante — de mau, mais do que de bom. Teve um período áureo, com a oitava economia do mundo, etc.. É um país cheio de peso, de histórias. Os taxistas reconheciam-me só pelo retrovisor, gritavam logo “Chepe!”, sem eu abrir a boca! Isto é maravilhoso, e aconteceu-me com uns cinco taxistas. Em um mês e meio! Eu nem andava muito de táxi porque comprei uma bicicleta, enquanto lá estive, em outubro, novembro e dezembro. Ao mesmo tempo, os mesmos taxistas eram capazes de contar-me histórias impressionantes, dizendo que em 1979 ou 1980 a polícia militar lhes entrou dentro de casa, pôs um saco na cabeça do irmão mais velho, levou-o e nunca mais o viu. A violência na Argentina, continuada e gratuita, foi horrível…
“Adoro Caracas. O que vejo hoje é uma desgraça”
Ainda no tema “América Latina”: tu viveste dois anos em Caracas, na década de 80. Como é que uma pessoa que viveu lá numa época áurea vê a Caracas de hoje?
Eu não vou a Caracas desde final de 90. Adoro a cidade, era um sonho, um verdadeiro sonho nos anos 80. Riquíssima, com o petróleo a dar-lhe forte e feio, uma espécie de colónia norte-americana — toda a gente tinha as suas poupanças em Miami e foi isso que safou muitos venezuelanos depois da chegada do Chávez e das nacionalizações. O que vejo hoje é uma desgraça e não falo em termos de orientação política, falo daquilo que é o regime totalitário, opressivo, do Nicolás Maduro. Vê-se um povo a morrer à fome e [ele] a dizer que a culpa é dos imperialistas americanos e da CIA e, se calhar, de alguns países da União Europeia. No fundo, daquilo que ele quiser encontrar para justificar a não abertura do regime ou o não deixar entrar a ajuda humanitária. Por exemplo, uma coisa: eu sou muito amigo de quem está à frente da Jerónimo Martins na Colômbia e soube que houve um pedido muito forte para que se abrissem lojas — eles abrem imensas, mais do que uma por dia, o país é enorme — o mais perto da fronteira possível, para os venezuelanos se poderem abastecer. Os partos são feitos — quando há possibilidade para tal — em Cúcuta, uma das maiores cidades colombianas junto à fronteira. As pessoas estão a morrer… Trabalhei com o Francisco Denis, no Narcos, e ele é venezuelano. Ele contava-me que os sobrinhos lhe pediam sempre para trazer champô dos EUA, um Johnson que custa 35 dólares na Venezuela (e o salário mínimo são 18). Como é que se vive num país destes? As pessoas perderam à razão de oito quilos nos dois anos entre meados de 2014 e 2016 (isto já deve estar desatualizado)… As pessoas estão literalmente a morrer à fome. Como é que vejo tudo isto? Vejo uma desgraça. Não sei qual será a solução porque também acho as invasões de território algo [que me deixa] muito apreensivo. Quem é que é o juiz que terá de dizer: “Vamos invadir aquele país porque o seu líder está a matar o povo”? A comunidade internacional deve mexer-se, mas quais são os limites? Fala-se nisto relativamente à Síria, embora este exemplo seja diferente, já que há um ataque militar contra o próprio povo, mas na Venezuela não se trata disso. Vejo muito mal aquele país, é uma pena. Mas ao mesmo tempo vejo muita esperança, também, isto porque tem tudo para ser o paraíso na terra… É preciso é tirar de lá determinadas pessoas.
Os norte-americanos com quem trabalhaste tinham facilidade em pronunciar o teu nome?
É sempre “Pepe”, “Pepe” de “Josepe”… Aliás, “Chepe” quer dizer “Pepe” que quer dizer “José”. No geral acho que têm, sim. Alguns dizem “Pepi”. Tenho um grande amigo, o Matt Cimber, ou melhor, Matteo Ottaviano Cimber (é descendente de italianos e chegou a ser casado com a Jayne Mansfield. Hoje tem 82 anos e é casado com a Lynn Fero, a vice-presidente da CBS — é um casal muito poderoso –, um dia destes ela será presidente da CBS, a maior cadeia mundial de televisão) que me chama de “Pépi”, o que faz sentido, dada a terminação em inglês do “e”…
E a parte do “Rapazote”?
Era “Rapazôti”, aí não foge, é como quem diz “coyote”… “The fastest coyote in the west”! [risos]
O que é que é mais fácil: entrar no mercado norte-americano ou permanecer por lá?
Manter-se. Eu estou a sentir dificuldades imensas. Vamos lá ver, nós mudámos de campeonato, não é? Tive este grande furo, o Narcos, fiz um filme, mas é tudo muito difícil. Eu, por exemplo, já não vou a todos os castings, já não há uma coisa que eles lá têm muito e que nós cá chamamos de figuração especial, ou seja, um ator que vem fazer uma cenazinha, duas deixas. Isto lá chama-se “co-star”, uma pessoa pode dizer “co-estrela”, pode-se pensar que é uma coisa boa, mas não, é um gajo com uma deixa. Isto é estranhíssimo, mas pronto. Um “guest-star” é um convidado num episódio… Há coisas que eu já não vou fazendo, portanto, essa mudança de campeonato também me traz muitas e maiores dificuldades. Entram também outras influências, os agentes passam a ter muito mais importância…
É um meio tão selvagem como toda a gente o pinta?
É, e com um poder totalitarista, muito por culpa das “major five”, as cinco grandes agências nos EUA, que mandam na indústria. Fora alguns fundos de investimento, com muito dinheiro, quem manda são essas cinco agências, inclusive na escolha de realizadores, de produtores… O “wrap up”, o embrulho, é dizerem que organizam tudo — mesmo quando até nem chegam a organizar nada. Dizem: “Eu é que junto as peças todas e tal, mas fico com 20% de todos os lucros que vierem daí”. A Netflix tem isto, com a CAA [Creative Artist Agency] e ela não faz rigorosamente nada, é tudo trabalho da Gaumont, uma produtora francesa com filial em Nova Iorque (foi ela que começou isto tudo). Depois há o trabalho dos produtores executivos, dos autores, etc… A Netflix não tem nada a ver com isto, a não ser receber o produto final e pagar, naturalmente. A CAA não tem absolutamente nada a ver com isto, nem vê, nem sabe o que se passa, mas não interessa: fica com 20% das receitas da produção Netflix e assim acontece com muitas outras. Só consigo supor qual é a receita mundial de uma série como Narcos, não é?
Como é que foste parar ao elenco de Narcos?
O primeiro casting que fiz foi em julho, até era para outra personagem, mas depois pediram mais um ou dois, e em setembro soube a decisão final. Foi um processo de casting, audições, em que me pediram para fazer uma coisa em “self-tape”, ou seja, filmei-me cá a fazer a audição, e depois enviei para lá. Era uma cena muito, muito engraçada em que eu chegava a casa com uma dose de Kentucky Fried Chicken [frango frito] e estava a comer enquanto falava com o decorador de interiores, que estava com umas amostras de tecido na mão. Eu decidi aproveitar isso: levei mesmo franguinhos assados de uma churrasqueira, estava a comer imenso e ele estava a mostrar à minha mulher essas peças de tecido. Eu pego nelas e, à porco, à Chepe, limpo as mãos. Ele está a dizer-me que as mudanças custam uns 400 mil dólares (estamos a falar em 1980, numa casa alugada! [risos]) e eu comecei a mandá-lo embora, dizendo depois “não se esqueça dos guardanapos”, e atirei-lhos. Ainda fiquei a comer, e fiquei sujo. Eles depois pediram-me para repetir o casting, mas com menos frango: “Faz a mesma coisa mas com menos frango, Pêpê” [risos]. Foi exatamente o frango e o abrutalhado que os cativou, pelos vistos. Eu gosto muito de fazer castings, audições, porque me preparo muito. Sinto uma excitação enorme, a dopamina das redes sociais para mim é a das audições. Mas atenção, é uma excitação imensa quando o trabalho é interessante, se não for, epá, preocupo-me o menos possível.
Vais ter um filme a estrear este ano, não é?
Em Nova Iorque vai haver um special screening. É estranho, mas eles reduziram imenso o tamanho da estreia — já não é uma premiere, é um special screening. A estreia é a 29 de agosto, nos EUA. Por algum motivo, quando já estava marcada a estreia aqui em Portugal, para 27 de setembro (porque o tema não é o mais leve de todos, está tudo ainda na praia e temos de pensar “hoje à noite vamos comer um gelado ou vamos ver o sequestro do arquiteto da Solução Final?”. Não, vamos comer um gelado. Quem está no Algarve não vai ver o Ben Kingsley numa história destas), a MGM anulou à última hora e não vão passar cá o Operation Finale. É muito estranho, inusitado e uma pena para mim, até porque estavam muito entusiasmados na NOS, já que desde o Joaquim de Almeida que não havia uma estreia de um filme grande com um português, e é porreiro ter alguém assim num filme grande…. Paciência.
Porque achas que continua a ser mais fácil alcançar o sucesso fazendo projetos no estrangeiro?
Eu nunca fui muito de grupos, nem quando era arquiteto. Nunca tive grupos de faculdade, de amigos específicos. Depois, como ator, comecei a fazer teatro mas não pertencia a nenhuma companhia — embora depois tivesse recebido alguns convite (eu adoro teatro). Gosto de estar assim, livre. Não papo grupos, nesse sentido. Nunca fiquei ligado a ninguém, sempre fui muito independente. Pode ser um dos motivos. Cá em Portugal, o teatro — não é muito pequeno, mas é sim muito caracterizado, o cinema idem aspas, depois há os subsídios de cinema, os problemas que o ICA tem há tantos anos… O ICA fez tão bem quanto mal ao cinema português porque manteve-nos agarrados a um passado onde parece que vamos numa carroça a puxar as rédeas aos cavalos. Acho que tem sido um travão muito grande, principalmente pela política, pela distribuição de subsídios, etc. A verdade é que depois há tribos e essas tribos, como no reino animal, dão de comer aos seus, primeiro. Sempre fiz um caminho muito independente e admiro quem o faça assim também, cá, e a verdade é que quem quer romper com algumas normas neste país, tem de o fazer sozinho. Esta minha aventura no estrangeiro começou em 2005, por Espanha. Ia de carro conhecer agentes, foi assim que eu fiz. Não há um agente em Portugal que tenha relações com agentes espanhóis e isto, para mim, é muito estranho. Revela a limitação que existe. Se muitas vezes dizemos que não queremos ser tratados como estando na cauda da Europa, neste caso específico, estamos precisamente nessa posição. Somos tão pequeninos, estamos tão no Condado Portucalense, que nem em Espanha temos contactos. Isto aborrece-me um bocadinho. Acho que estamos a passar para outra fase, não será na minha geração — eia bem! Isto soa estupidamente velho! –, mas acho que teremos outra abertura.
A emigração qualificada que tivemos nos últimos tempos vai permitir que haja uma abertura enorme. Hoje em dia, muita gente vai visitar os seus melhores amigos ou amigas à Dinamarca ou à Estónia. Hoje em dia é o que acontece e isso permite uma abertura muito maior, já não é o rapaz, coitado, que emigrou. Se arranjou um bom trabalho, interessante, lá fora, até foi a sorte grande que lhe calhou. Quem ficou para trás, se calhar, é que não ficou tão bem como poderia estar. É como se dizia antigamente das aldeias, quando as pessoas iam para fora, só que agora Portugal inteiro é como se fosse a aldeia. Até porque o investimento é cada vez mais curto, a começar com, por exemplo, exemplos governativos, não é? As famosas cativações do recente, do atual e, se calhar, do futuro. Sou muito apologista de mantermos as contas de casa acertadas. Podemos ser “treinadores de bancada”, mas sabemos também que lá em casa não se pode gastar mais dinheiro do que aquele que se ganha num mês, corta-se. Por isso é que a dívida pública sempre foi uma coisa que me fez bastante confusão. Uma coisa é fazer-se um investimentozinho: “vamos comprar um automóvel porque, caramba, já estamos na Europa. Compramos um carrito, com quatro lugares, ar condicionado, um 1200 com rádio FM e AM”. Outra coisa é ter taxas de endividamento nos 100%, 120%, 130%… Sou um bocadinho radical nestas coisas. A punição dos políticos nas eleições seguintes não me chega. Acho que devia haver um enquadramento penal para determinadas gestões ruinosas que tivemos aqui. Lá fora há, nalguns países. Acho que isto só afere a seriedade das pessoas que nos governam e dos seus intuitos e propósitos quando se candidatam a um cargo público.
“O estado da Saúde revolta-me brutalmente”
Mas aparentemente, o país atravessa uma fase económica positiva… Achas que ela é real ou falaciosa?
Questões como a do desemprego não acho que sejam falaciosas, desde que não seja o Estado a contratar 100 mil pessoas. Se estamos a ter empregos no privado também, ótimo! Mas o estado da Saúde, por exemplo, revolta-me brutalmente. Revolta-me pessoas que morrem no caminho — que pode ser de dois anos à espera de uma primeira consulta de oftalmologia que serviria para saber que essa pessoa tem um tumor por trás da córnea e que era perfeitamente operável. Chega a altura dessa consulta e descobre-se que há um buraco, não está lá ninguém: as pessoas já morreram. A Saúde é fundamental, é aquele serviço público que se vê na hora, que salva vidas. Ah, devíamos investir mais em investigação, a justiça está uma desgraça, o ensino… Onde vai o nosso ensino desde o primário ao secundário… Não. Epá, se aquela pessoa está a morrer, a esvair-se em sangue, a primeira necessidade, a primeira, é a Saúde. Não há cativações para a saúde, para mim, não pode haver. O Estado da nossa saúde é absolutamente desgraçado e se antigamente tinha orgulho em termos um SNS, hoje em dia acho que é absolutamente essencial termos um seguro de saúde que nos permita ir ao privado, porque esse mesmo Serviço Nacional de Saúde não funciona.
Divergindo agora um pouco…
Desculpa! Tu vai aligeirando que eu hoje estou super dramático! É do sol, da temperatura. Estamos no verão, eu fico sempre assim no verão. É a depressão do sol. Silly Season? O que é isso?! [risos]
Gostas de te ver na televisão?
Odeio. Não gosto de me ver nunca, nem ao espelho…
Nem este trabalho irás ver?
Este… Vou ler, se calhar não vou ver o vídeo, vou ler só. Não gosto de me ver, nem ao espelho. Não sei bem porquê… Isto ate podia parecer arrogante, mas nem sei porque é que sou assim. O Lobo Antunes tem uma expressão clássica, já escrita várias vezes, que é: “Chegamos a uma determinada idade em que deixamos de gostar de nos ver ao espelho, já temos um certo peso, fisicamente já não estamos bonitos, temos amargura, o cinismo que a idade nos pode trazer, as preocupações, etc.” Comigo não se passa nada disto. Nunca fui de [simula que se penteia] “Looking good!”. Nada. Hoje em dia quanto menos, melhor. É só quando lavo os dentes, para ter a certeza que os lavei bem, e de resto… É-me perfeitamente indiferente. Passo as mãos pelo cabelo e siga. Em relação à televisão é a mesma coisa. Vou ficar sempre a achar que podia ter feito melhor, podia ter dito melhor, podia ter respondido melhor às tuas questões, por exemplo,… Vou sempre arranjar defeitos em todo o lado e portanto prefiro não me ver.
Voltando ao filme que, infelizmente, não vai passar cá em Portugal. Curiosamente, vais voltar a interpretar outra vez um vilão…
É um vilão sem dúvida. Diria que é mais do que o Chepe. Podíamos dizer que o Chepe é apenas vítima das circunstância, o que quer que isso queira dizer. Ele só quis ganhar uns trocos. Foi com cocaína como podia ter sido com outra coisa qualquer. Depois, para proteger o seu espaço, teve que matar. Mas a minha personagem no Operation Finale é um capitão das SS, o Carlos Fuldner, que era metade argentino, metade alemão e foi um dos responsáveis máximos no processo de importar alemães nazis no final da guerra — sabendo que ela ia acabar e acabar mal — para a Argentina. Reuniu com o governo do Perón em Madrid e começou a fazer essa passagem…
Mais um traficante, portanto…
Exatamente! Mais um traficante e de drogas, se calhar, bem mais duras. Piores ainda. Para a Argentina havia um grande percurso por Madrid e pelo Vaticano. Mas esta história conta o encontro e sequestro do Adolph Eichmann, o comandante das SS que foi, supostamente, o arquiteto da Solução Final. Ele é encontrado em Buenos Aires e… Bem, no fundo, é como uma Missão Impossível do Tom Cruise, só que passada em 1959. A equipa da Mossad que é enviada para apanhar o Eichmann tem um especialista em interrogatórios, outro em comunicações, uma médica para o drogar, para que ele não ofereça resistência.
Como é que divides a tua agenda, entre o tempo que estás em Portugal e nos EUA, por exemplo?
Eu tenho andado a recusar algum trabalho em Portugal, até bastante. Gosto muito do que faço aqui, como ator, mas sinto-me novamente como se tivesse vinte e poucos anos e estivesse a batalhar pela primeira vez. Enquanto tiver energia, vontade e sangue na guelra quero continuar a lutar. Estaria muito bem cá, a fazer novelas, algumas séries, teatro… Provavelmente até estaria melhor financeiramente do que estou neste momento (lá está, porque estou a recusar trabalho). Tenho estado quase a ser escolhido para umas boas produções, mas acabo por ficar de fora. Tenho tido um percurso muito sinuoso. Ando entre lá e cá, basicamente. Mas por exemplo, gosto francamente de fazer novelas, mais do que vê-las (não só pelo facto de entrar nelas, como te dizia). O trabalho que está por trás de uma novela é francamente complexo e muito bem conseguido para o tempo e o dinheiro que se tem. É admirável.
Tens estado quase a garantir alguns papéis em boas produções. Como lidas com a rejeição?
Eu tenho uma percentagem, apesar de tudo, razoável de “sins” nos castings, mas a regra, nos EUA, é o “não”. Se eu conseguir um papel em vinte, é muito bom. Cá em Portugal a média é muito superior. Se lido mal… Há alguns papéis que me fazem pensar “isto podia ter sido meu”, mas depois acabas por perceber que afinal, os diretores de casting mudam de ideias e querem uma pessoa 15 anos mais nova, alguém que não pode ter mais de 1,60 metros… Há coisas que te fogem completamente. Eu tento explicar isto a muitos atores de cá e até alguns de lá — já fui convidado para falar numa faculdade, a malta nova — dizendo-lhes para não se preocuparem. Se chegarem lá e derem o seu melhor, ao ponto de até pensarem “Epa, isto está no meu top cinco de audições”, mesmo que não sejam escolhidos, essa já vos ficou na memória. Depois o que pode acontecer são pormenores como não gostarem das tuas orelhas, do teu nariz… Há justificações tão variadas, por pormenores estúpidos, que às vezes pesam mais do que a representação propriamente dita. Muitas vezes chega também a “palavrinha” from the inside que acaba por ser sempre a de uma agência poderosa. “Epa, put my boy in, now”… Há algum poder em produções especiais onde, se for preciso, telefona-se ao padrinho para pedir um favor. Acontece, claro.
“Quem dera, à malta da América do Sul, ter as aventuras, a história que nós temos”
Qual foi a cena mais difícil que já tiveste de fazer?
Ui… Não sei. Há cenas das quais saio fisicamente desgastadíssimo, todos os atores têm disto, de vez em quando, muito em teatro (dependendo das peças). Nesses casos percebes que isso “saiu-te do pêlo”, mesmo que na altura nem tenhas pensado nisso. Há uma cena, na novela portuguesa “Laços de Sangue” — que já foi vendida para todo o mundo, até já teve um Emmy –, de violação, nada, nada explícita, com a Joana Pereira da Silva. Uma cena fantástica, que acho que saiu muito bem, mas que, lembro-me, deixou-me um bocadinho derreado, embora eu na altura achasse que “olha, foi fixe, fiz isto com uma perna às costas, até parece que sou violador profissional”. Lembro-me que só mais tarde me apercebi que tinha posto muito mais peso naquilo do que achava. Mas não quero falar só dessa, referi-a porque tirei esse trecho para pôr no meu site, onde mostro algum do meu trabalho a produtores e realizadores. Curiosamente, é um vídeo que já tem 26 milhões de visualizações… Um trechozinho de novela… Porquê? Fiz upload do vídeo associando-o aos vários nomes que a novela “Laços de Sangue” já teve, quando foi exportada. Eu depois vou ao Google Analytics e percebo que estão uns 5 milhões de turcos a ver, por exemplo. Isto acontece porque a novela está lá a passar, nesse momento, e é algo que já aconteceu com a Índia, o Paquistão… Daí os 26 milhões. Este tema leva-me a outro ponto, os direitos conexos. Lá fora existe o SAG (“Screen Actors Guild”), o sindicato dos atores, que é extremamente poderoso. Cada vez que passa um filme meu, um episódio meu, em qualquer parte do mundo eu recebo meio cêntimo, nem que seja. É uma propriedade de direito conexo. Não é intelectual, mas é como se fosse, mais ou menos. Nós cá ainda temos muito poucos acordos com instituições internacionais, isto para dizer, precisamente, que uma novela portuguesa passada na China, de certeza que pelo menos um bitoque, num restaurante razoável, já me pagava. Não percebo porque não temos mais acordos como este. Isto a propósito da GDA, o nosso “SAG”. Fico um pouco revoltado com isso ao ver o nosso trabalho exposto no outro lado do mundo, com muita gente a ganhar dinheiro menos os atores. Os atores não ganham… Nem os realizadores, nem as pessoas que supostamente teriam direitos de autor e direitos conexos. Não vem cá parar.
Voltando agora muito atrás…
Eu nasci… [risos]
Não tanto, não tanto! Falava mais concretamente nos tempos do “Malucos do Riso”…
Sim, o The Crazys of the Laughter. Diz assim que dá um ar mais coiso… [risos] Gostei muito, muito…
Quando recebiam os guiões e liam as cenas que iam ter de fazer, achavam piada às rábulas?
A maior parte das piadas eram de um humor tão óbvio, tão simples… Era um humor muito óbvio. Não nos podemos esquecer que “Malucos do Riso” tinham de atingir 10 milhões de portugueses, tinham de ser entendido pelo reitor da Universidade Nova — sem me referir a ninguém em especial — até ao senhor Zé, que estava a ver televisão na cozinha depois de um dia a plantar feijão em Trás-os-Montes. E é por isso que tinha de ser assim. Se achávamos piada? Rapidamente entravámos pelo trabalho de ator, com alguma correção de texto, na medida do possível, que depois era afinada com a realização. Como e que eu dou a volta a isto? Como é que lhe dou piada? Ou seja, íamos muito mais pelo trabalho de autor do que pela crítica. Antes de eu ser convidado o programa já existia, eu já sabia ao que ia. Já era completamente acrítico ao nível intelectual das piadas e da rábulas — embora houvesse algumas com a sua piada. Uma coisa que eu sempre me recusei a fazer foi as reações para a câmara, mas a verdade é que ninguém mas pediu. Aquela coisa de acabar um texto e olhar para a câmara assim [faz cara de admirado] foi algo que nunca percebi… Talvez ao princípio fosse obrigatório, mas disse-lhes que não queria fazer isso. Nunca devemos buscar a cumplicidade do público, isso é uma coisa que aprendemos sempre. Ou o público é cúmplice connosco e está mesmo connosco, é empático e está no mesmo comprimento de onda…. É como no teatro, ninguém faz isso no teatro, a menos que seja na revista. Quem faz isso está mesmo a pedir uma gargalhada seca. No geral havia uma forma acrítica de olhar para os textos e só pensávamos: “Vamos tornar isto o mais eficiente possível”. E essa é a parte porreira, a mais interessante da representação.
Para terminar: Estás em contacto com muita gente da indústria do cinema e da televisão “lá de fora”. Que imagem é que eles têm dos seus congéneres portugueses? Eles sabem daquilo que se faz cá?
As pessoas lá fora não conhecem o que se faz cá. De todo. Os brasileiros podem saber de algumas coisas, precisamente pelo que os atores brasileiros vêm cá fazer e depois levam em críticas ou conversas. Na melhor das hipóteses têm uma ideia muito genérica , a noção de “ouvir falar”. Mas no geral, não há conhecimento do que se faz cá e acho que o que se faz faz-se com imenso valor. Essa é uma coisa que eu gostava de abraçar com mais intensidade um dia destes mas… Acho que há um medo grande, no audiovisual, de ficção, em abraçar projetos de qualidade internacional, isto porque já se fizeram algumas experiências malfadadas, com péssimos resultados. Uma pessoa que gasta cinco milhões de euros, quer ter a certeza de que isto terá sucesso de vendas e que se consegue vender para o estrangeiro. A desculpa sempre foi a língua… Já não me lembro como se chama aquela série dinamarquesa que fala dos bastidores da política…
Borgen…
Exatamente, Borgen. É sempre o exemplo que dou quando me querem falar de impedimentos de língua. Os brasileiros dizem que o alemão não é uma língua, é uma doença de garganta: se o alemão é uma doença de garganta, o que é o dinamarquês?! Não me venham dizer que é um impedimento. Cada vez se perde mais a coragem de dar um passo destes. É muito importante fazermos cinema para o mercado nacional, mas um objetivo de 100 mil espetadores é sinónimo de cinema mal pago para toda a gente: do investidor, ao realizador, ao ator… Fazer filmes a 600 mil euros, a não ser que seja um filme com muito baixa produção e um filme de guião, de autor — que os há e muito bons. Se só temos esse dinheiro, sou apologista que o façamos para depois seguir o circuito dos festivais internacionais. Por outro lado, se gastarmos um milhão ou mais num filme, temos de ter perspectivas de vendas internacionais firmadas. Voltando ao que perguntavas: Se eles lá fora sabem o que se faz cá? Não, nós só fazemos para nós… O português só faz para ele. Acho que agora há uma abertura muito maior com o Brasil e isso é óptimo, ele vai ser o nosso passaporte de saída para o mundo. Enquanto continuarmos a pensar que o nosso mercado são apenas 10 milhões de habitantes (cada vez menos), ninguém fará dinheiro aqui. Sobrevive-se. E o trabalho artístico e intelectual vai ser cada vez mais difícil. O meu ponto de vista, para mim, como investidor de trabalho ou dinheiro numa produção, é: vamos fazer uma coisa em português mas que possa apelar ao mercado brasileiro, norte-americano, francês, italiano e que o consiga vender para o alemão ou até para o russo, tendo distribuição internacional assegurada. Ainda por cima nós temos tanta história… Mil anos dela! As aventuras mais incríveis! Quem-lhes dera, à malta da América do Sul, por exemplo, ter as aventuras, a história que nós temos. Temos isto tudo mas não se pega numa produção internacional, com dinheiro, em co-produção europeia — há muito dinheiro a ir buscar ao Conselho Europeu do Cinema… Há tanta coisa interessante a fazer, mas até nisto há desinformação. É uma pena. Tem de haver uma capacidade maior de internacionalização. Há uma frase que já disse várias vezes: O Narcos fez pelos Institutos Cervantes mais do que… ou melhor, fez pela Língua espanhola, mais do que todos os institutos Cervantes espalhados pelo mundo inteiro. Os chineses dizem “malparido” e querem aprender a falar espanhol por causa do Narcos. Quando é que nós fazemos o mesmo pelos nossos Institutos Camões e pelo português?